Um escrevedor fala de memória musical II.
Nesta segunda incursão no recanto da memória deste
escrevedor, coletivamente construída, se fará um mergulho no tempo até o ano da
graça de 1969. Aquele fora um ano bastante movimentado, em vários campos do
viver cotidiano dos habitantes do mundo ocidental que vivia o auge da chamada “Guerra
Fria”, com o foco no esforço norte-americano no sentido de dobrar o “Vietnam”
ao julgo do capitalismo que queriam impor por suas armas; os terráqueos assistiam
estupefatos o pouso da Apolo 11 na lua, mediante grande espetacularização do
feito, que também era parte do esforço norte-americano pela hegemonia na
corrida espacial, que travava com a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas; os brasileiros viviam os seus “anos de chumbo”, sob o signo do Ato
Institucional N.o 5; também viviam o tempo dos grandes festivais de música
popular; apreciava-se o movimento da “jovem guarda”, com as versões de Rossini Pinto
(1937-1985),que fizera de sucessos executados no norte da América e na Europa,
cujas melodias eram de músicas originalmente gravadas em inglês, francês, italiano
entre outras, que ganhavam letras em português, com temáticas variadas, sobretudo,
relacionadas aos amores vividos, perdidos, desejados, algumas traziam temas
relacionados aos movimentos capitaneados pela juventude burguesa – majoritariamente
europeia e norte-americana -, que se convencionou denominar de “Contra cultura”,
trazidas à interpretação de gente como Wilson Simonal, Wanderléa, Vanusa, Jerry
Adriani, Wanderley Cardoso, Roberto Carlos, os Incríveis, The Fevers, entre
tantos outros.
Em Alagoinhas, 1969 se inicia com este escrevedor sendo
levado pela primeira vez ao Grupo Escolar Brasilino Viegas, para ali começar a
sua vida estudantil; também naquele ano, chegava à energia elétrica em sua casa.
Devido à expansão daquele serviço público aos novos espaços de residência de
pessoas de baixa renda, acabou por propiciar a instalação da novidade na
modesta casa onde viviam mãe e três filhos.
E, a energia elétrica em casa, significava ouvir rádio e,
nele, ouvir músicas em profusão, visto ele não possuir meios de audição de discos.
É cediço que o rádio tem uma importância crucial na formação deste escrevente,
uma vez que por grande parte de sua vida, o rádio foi o seu livro, o seu jornal,
o seu formador de vocabulário, o seu construtor de consciência política, a sua
companhia nas horas insones, tão comum a ele e, parece que igualmente comum aos
que não enxergam, conforme se foi constatando à medida que tomava contato com
outros cegos e tomava conhecimento deste fenômeno que sempre acreditou ser um evento somente seu.
Como já foi dito na crônica anterior, a memória musical
deste que garatuja estas linhas, é plena de reminiscências de melodias, algumas
completas, outras, em grande parte, fragmentadas, que vez por outra surgem nos
seus pensamentos, quase sempre trazendo outros elementos consigo, que permitem
sentir cheiros não mais existentes, paladares muito distantes no tempo e, até
mesmo sensações táteis de espaços já não mais visitados e superfícies há muito
não mais tocadas.
Assim, ao trazer à superfície da memória algum fragmento de
melodias que ouvira há já um bom tempo – ou mesmo há não tanto tempo assim -,
uma gama de lembranças assoma ao pensamento e desencadeia um turbilhão de
sensações, que, saliente-se, demora o tempo apenas suficiente para que o
rememorar se configure e o rememorante se assegure de não estar em uma
realidade sólida, mas sim, em uma realidade que já se configurou em passado.
O ano de 1969 foi pleno de músicas que ficaram na memória
deste escrevedor e, a que hoje vos será apresentada, ficou por muito tempo como
fragmentos de melodia e letra, visto que com o passar dos anos, ela foi
esquecida pelos produtores de programas de “flash back” das emissoras de rádio brasileiras,
ou, pelo menos, aquelas que eram ouvidas com regularidade. Mas, as lembranças
de seus fragmentos traziam consigo as demais lembranças acima aludidas, o que açulava
a vontade de ouvir de novo aqueles acordes, pois, por eles, vinha a saudade de
um tempo que fora vivido, mas que a ele não mais se poderia voltar.
Chega a era dos computadores e da internet e, com eles, o
desejo de encontrar tais músicas. Para tanto, se fez várias incursões com o
fito de encontrar: se sabia o nome do intérprete – Antônio Marcos (1945-1992).
Mas, não se sabia o nome da música, embora a sua melodia estivesse nítida na “memória
auditiva” de quem a procurava.
Depois de algum esforço para juntar os fragmentos da letra
que ainda estavam na memória, se conseguiu um trecho mais ou menos coerente da
letra, que dizia: “... eu preciso encontrar alguém que viva só; eu preciso achar
alguém que sofra como eu também; se então, alguém souber de quem não teve amor:
mande este alguém falar comigo, por favor....”.
É interessante notar que, foi feita uma busca em alguns sites
que listam um grande número de cantores e as suas músicas mais executadas – o dicionário
Cravo Albin, inclusive. Antônio Marcos aparece, em quase todas as listas. No
entanto, a música que se procurava, não apareceu em nenhuma delas.
Assim, ao pesquisar no Google usando o trecho acima,
finalmente se chegou à música tão desejada de ser encontrada e ouvida... “Eu preciso
Encontrar Urgentemente”, este é o seu título.
Ao penetrar o som daquela melodia nos ouvidos deste escrevedor,
vieram as lembranças do tempo em que se contava oito, nove ou dez anos, com
vários cheiros e sensações táteis vindo ao rememorar.
Evidentemente que para esta memória, a letra não estava relacionada
a um “amor” não tido ou perdido. Mas, estava relacionada com a solidão que já
se fazia marca indelével do viver deste lembrador, uma vez que os seus amigos
eram poucos, pouquíssimos, se diria; os seus colegas de escola, moravam longe e
não se podiam encontrar, quer para estudarem juntos; quer para fazerem estripulias
de meninos; os seus irmãos eram mais velhos e já possuíam uma rotina diferente
da dele...
Então caríssimos leitores, aí está o link daquela música que
não se ouviu por largos anos, mas que permaneceu sob profundas camadas de
memórias, apenas esperando ser convocada à superfície, mediante os primeiros
acordes de sua composição melódica, quando viessem a ser ouvidos. Está inserida
no primeiro disco daquela carreira que fora interrompida pelo álcool, associado
a outros problemas existenciais de Antônio Marcos, cuja vida fora consumada tão
precocemente.
https://youtu.be/Yqs0HWRDQDg
Professor José Jorge Andrade Damasceno - 08 de outubro de 2020.
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