quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Histórias e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó - XXII

 

Histórias e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó – XXII – Tempo e espaço – algumas breves considerações.

 

Neste ponto da análise de “Pelos Caminhos da Vida de Uma Professora Primária”, obra publicada há quarenta e dois anos pela literata alagoinhense Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001), é preciso analisar um aspecto daquela construção literária, dentre outros que já foram esquadrinhados por aqui ou em outros lugares. Faz-se necessário atentar para o estabelecimento da relação “tempo” e “espaço”, que pode ser apreendida em todo o transcorrer de uma leitura atenta e profunda da obra em exame.

Assim é que, ao desenvolver a sua escrita, Feijó se utiliza de elementos do presente para ressignificar o passado que pretende trazer ao conhecimento do seu leitor. O tempo presente é o tempo em que ela se insere, com suas nuances, suas ideias, suas expectativas e suas perspectivas, indicando que ela, em grande medida, sofre as influências dos elementos culturais dos quais está impregnado o seu modo de pensar. A partir dele, usando as técnicas de que dispõe naquele momento para criar, revisita um passado que viveu, mas que, como já se disse, não tem como o trazer para o presente, do mesmo modo como foi por ela vivido. De sorte que, para o seu trabalho de “rememorar” aquele passado, precisará lançar mão de fragmentos daquele passado que pretende reconstruir.

Assim, ao introduzir o trabalho narrativo que será desenvolvido por Marta, Feijó aponta para a ideia de tempo, na medida em que indica para Maria Clara que aquela exposição não será rápida. Aquele rememorar se fará em torno de algumas gerações de professoras, desde aquelas que atuaram na formação de Maria Luiza Peixoto, passando por aquelas outras que por ela mesma viessem a se formar, alcançando a própria Maria Clara, recém-inserida no jornalhar diário de professora. Não é sem razão a advertência de Marta à sua interlocutora: “É longa, mas não dá para ter sono, não, porque movimentada e cheia de variedade de cenários, apesar de ter sido quase toda ela passada no Interior[...]”. (FEIJÓ, 1978, p. 23).

Em todo o transcurso da narrativa, Feijó está envolta em “tempos” que se interpõem. Um tempo, está representado pelo “presente”, isto é, no momento mesmo em que ela escreve o seu texto, cria os seus personagens e elabora a trama no qual os movimentará. Aquele presente, talvez possa ser situado entre os anos de 1976 e 1977. Neles se pode encontrar alguns elementos constitutivos do pensamento cultural, filosófico e literário, que podem ter levado Maria Feijó a escrever o que escreveu e como escreveu.

O outro tempo que envolve Feijó, no sentido de construir os seus “rememorares”, é o “tempo passado”, que ela pretende “reconstruir”, sem que o possa fazer, conforme já se observou em outros arrazoados, na medida em que, por mais que tenha havido um grande esforço de sua parte, o “passado” como de fato ele foi vivido e até mesmo testemunhado, não poderia ser trazido integralmente para o presente. Os fragmentos daquele “passado” “recuperados” pela memória, já estão contaminados pelo “presente” e ressignificados por quem os torna públicos, quer em forma de um trabalho historiográfico, quer em forma de uma narrativa literária – como é o caso ora em exame.

Mas há um outro elemento que, em concomitância com o “tempo histórico”, de igual modo age sobre o processo criativo de Maria Feijó. Está se falando do “espaço”, aqui entendido como sendo o “[...] lugar que se estabelece na materialidade física, como campo que é gerado através das relações sociais, ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em resposta aos dois fatores anteriores”. (BARROS, 2005, P. 96). Observe-se o que diz a narradora, continuando o seu introito, para convencer à sua interlocutora. Fala de “paisagens” que estão à vista das duas; mas fala também de “interior”, conceito um tanto abstrato para a jovem citadina. Marta prossegue:

“[...]. Olhando o mar, o céu, e o sol, lindos como estão, com certeza você me escutará a-ten-ci-o-sa-mente... Se for preciso — e bem provável é — iremos até nossa casa, o que só me dará prazer. Há muito isto não acontece. O dia é grande. Se necessários, teremos novos dias pela frente uma semana talvez. Suas férias aí estão e poderei compartilhá-las com você. Será mesmo interessante, porquanto emolduraremos esta história, de céu, e mar, e sol, e festa de luz, diariamente, em deliciosos banhos, para alegrar um pouco o panorama rústico do Interior onde ela, como disse, quase toda, aconteceu e, continua, talvez... indefinidamente, nas sucessivas gerações, acontecendo...” (FEIJÓ, 1978, p. 23).

 

Portanto, é de “espaço” que Marta está falando, ao reportar-se, tanto ao “lugar” onde entabulam a conversa e, caso precise, poderão continuar a fazê-lo, quanto ao “lugar” a respeito do qual falará, ao levar a bom termo a sua narrativa. Conforme assevera José D’Assunção Barros,

“As ações e transformações que afetam aquela vida humana que pode ser historicamente considerada dão-se em um espaço que muitas vezes é um espaço geográfico ou político, e que, sobretudo, sempre e necessariamente constituir-se-á em espaço social. Mas com a expansão dos domínios históricos que começou a se verificar no último século, este Espaço também pode ser perfeitamente um “espaço imaginário” (o espaço da imaginação, da iconografia, da literatura), e adivinha-se que em um momento que não deve estar muito distante os historiadores estarão também estudando o “espaço virtual”, produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. [...]”. (BARROS, 2005, p. 95-96).

Ainda recorre-se a Barros, no sentido de compreender que “[...], a noção de espacialidade foi se alargando com o desenvolvimento da historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e imaginário, e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode inclusive reger a compreensão das práticas discursivas. [...]”. (BARROS, 2006, p. 464).

 

Ao iniciar a descrição da sua “amiga”, Marta faz uma rápida descrição dos “espaços” onde ela nascera, crescera, se desenvolvera e se tornara o agente ativo do seu narrar. Diz ela:

Perdida lá no interior da Bahia, na Cidade de Alagoinhas em meio às laranjeiras em flor e aos cajueiros frondosos de seu sítio querido, havia uma garota raquítica, pequenina, ”um pingo de gente”, que nem se sabia se chegaria mesmo a crescer, chamada Maria Luísa Peixoto de Moura. Luisinha na intimidade. Todos desprezavam o Maria. Era conhecida, familiarmente, por” Luisinha” e, fora do lar, desde a escola primária,” Peixoto”. Não se sabe por que isto, mas assim a tratavam. E pegou. [...]”. (FEIJÓ, 1978, p. 23).

Como se pôde perceber, uma diversidade de espaços aparece na descrição feita por Marta, conforme apontado por Barros na citação que fora transcrita antes. Os espaços físicos, sociais, políticos e culturais já estão delineados por ela, se configurando como sendo a “paisagem” que está construindo, no sentido de dotar o leitor de um vasto conjunto de elementos, com o fito de permitir ao leitor uma compreensão mais alargada da mensagem que pretende transmitir, ao desenvolver a tessitura da trama sócio-histórica que envolve o ser professora primária.

 

Professor Jorge Damasceno – 21 de outubro de 2020.

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