Histórias e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria
Feijó – XXII – Tempo e espaço – algumas breves considerações.
Neste ponto da análise de “Pelos Caminhos da Vida de Uma
Professora Primária”, obra publicada há quarenta e dois anos pela literata
alagoinhense Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001), é preciso analisar um
aspecto daquela construção literária, dentre outros que já foram esquadrinhados
por aqui ou em outros lugares. Faz-se necessário atentar para o estabelecimento
da relação “tempo” e “espaço”, que pode ser apreendida em todo o transcorrer de
uma leitura atenta e profunda da obra em exame.
Assim é que, ao desenvolver a sua escrita, Feijó se utiliza
de elementos do presente para ressignificar o passado que pretende trazer ao
conhecimento do seu leitor. O tempo presente é o tempo em que ela se insere,
com suas nuances, suas ideias, suas expectativas e suas perspectivas, indicando
que ela, em grande medida, sofre as influências dos elementos culturais dos
quais está impregnado o seu modo de pensar. A partir dele, usando as técnicas
de que dispõe naquele momento para criar, revisita um passado que viveu, mas
que, como já se disse, não tem como o trazer para o presente, do mesmo modo
como foi por ela vivido. De sorte que, para o seu trabalho de “rememorar”
aquele passado, precisará lançar mão de fragmentos daquele passado que pretende
reconstruir.
Assim, ao introduzir o trabalho narrativo que será
desenvolvido por Marta, Feijó aponta para a ideia de tempo, na medida em que
indica para Maria Clara que aquela exposição não será rápida. Aquele rememorar
se fará em torno de algumas gerações de professoras, desde aquelas que atuaram
na formação de Maria Luiza Peixoto, passando por aquelas outras que por ela
mesma viessem a se formar, alcançando a própria Maria Clara, recém-inserida no
jornalhar diário de professora. Não é sem razão a advertência de Marta à sua
interlocutora: “É longa, mas não dá para ter sono, não, porque
movimentada e cheia de variedade de cenários, apesar de ter sido quase toda ela
passada no Interior[...]”. (FEIJÓ, 1978, p. 23).
Em todo o transcurso da narrativa, Feijó está envolta em “tempos”
que se interpõem. Um tempo, está representado pelo “presente”, isto é, no
momento mesmo em que ela escreve o seu texto, cria os seus personagens e
elabora a trama no qual os movimentará. Aquele presente, talvez possa ser
situado entre os anos de 1976 e 1977. Neles se pode encontrar alguns elementos
constitutivos do pensamento cultural, filosófico e literário, que podem ter
levado Maria Feijó a escrever o que escreveu e como escreveu.
O outro tempo que envolve Feijó, no sentido de construir os
seus “rememorares”, é o “tempo passado”, que ela pretende “reconstruir”, sem que
o possa fazer, conforme já se observou em outros arrazoados, na medida em que,
por mais que tenha havido um grande esforço de sua parte, o “passado” como de
fato ele foi vivido e até mesmo testemunhado, não poderia ser trazido
integralmente para o presente. Os fragmentos daquele “passado” “recuperados”
pela memória, já estão contaminados pelo “presente” e ressignificados por quem
os torna públicos, quer em forma de um trabalho historiográfico, quer em forma
de uma narrativa literária – como é o caso ora em exame.
Mas há um outro elemento que, em concomitância com o “tempo
histórico”, de igual modo age sobre o processo criativo de Maria Feijó. Está se
falando do “espaço”, aqui entendido como sendo o “[...] lugar que se estabelece
na materialidade física, como campo que é gerado através das relações sociais,
ou como realidade que se vê estabelecida imaginariamente em resposta aos dois
fatores anteriores”. (BARROS, 2005, P. 96). Observe-se o que diz a narradora, continuando
o seu introito, para convencer à sua interlocutora. Fala de “paisagens” que
estão à vista das duas; mas fala também de “interior”, conceito um tanto abstrato
para a jovem citadina. Marta prossegue:
“[...].
Olhando o mar, o céu, e o sol, lindos como estão, com
certeza você me escutará a-ten-ci-o-sa-mente... Se for preciso — e bem provável
é — iremos até nossa casa, o que só me dará prazer. Há muito isto não acontece.
O dia é grande. Se necessários, teremos novos dias pela frente uma semana
talvez. Suas férias aí estão e poderei compartilhá-las com você. Será mesmo
interessante, porquanto emolduraremos esta história, de céu, e mar, e sol, e
festa de luz, diariamente, em deliciosos banhos, para alegrar um pouco o
panorama rústico do Interior onde ela, como disse, quase toda, aconteceu e,
continua, talvez... indefinidamente, nas sucessivas gerações, acontecendo...”
(FEIJÓ, 1978, p. 23).
Portanto, é de “espaço” que Marta está falando, ao
reportar-se, tanto ao “lugar” onde entabulam a conversa e, caso precise, poderão
continuar a fazê-lo, quanto ao “lugar” a respeito do qual falará, ao levar a
bom termo a sua narrativa. Conforme assevera José D’Assunção Barros,
“As ações e transformações que afetam aquela vida humana que
pode ser historicamente considerada dão-se em um espaço que muitas vezes é um
espaço geográfico ou político, e que, sobretudo, sempre e necessariamente
constituir-se-á em espaço social. Mas com a expansão dos domínios históricos
que começou a se verificar no último século, este Espaço também pode ser
perfeitamente um “espaço imaginário” (o espaço da imaginação, da iconografia,
da literatura), e adivinha-se que em um momento que não deve estar muito
distante os historiadores estarão também estudando o “espaço virtual”,
produzido através da comunicação virtual ou da tecnologia artificial. [...]”.
(BARROS, 2005, p. 95-96).
Ainda recorre-se a Barros, no sentido de compreender que “[...],
a noção de espacialidade foi se alargando com o desenvolvimento da
historiografia do século XX: do espaço físico ao espaço social, político e
imaginário, e daí até a noção do espaço como “campo de forças” que pode
inclusive reger a compreensão das práticas discursivas. [...]”. (BARROS, 2006, p.
464).
Ao iniciar a descrição da sua “amiga”, Marta faz uma rápida
descrição dos “espaços” onde ela nascera, crescera, se desenvolvera e se
tornara o agente ativo do seu narrar. Diz ela:
“Perdida lá no interior
da Bahia, na Cidade de Alagoinhas em meio às laranjeiras em flor e aos
cajueiros frondosos de seu sítio querido, havia uma garota raquítica,
pequenina, ”um pingo de gente”, que nem se sabia se chegaria mesmo a crescer,
chamada Maria Luísa Peixoto de Moura. Luisinha na intimidade. Todos desprezavam
o Maria. Era conhecida, familiarmente, por” Luisinha” e, fora do lar, desde a
escola primária,” Peixoto”. Não se sabe por que isto, mas assim a tratavam. E
pegou. [...]”. (FEIJÓ, 1978, p. 23).
Como se pôde perceber, uma
diversidade de espaços aparece na descrição feita por Marta, conforme apontado
por Barros na citação que fora transcrita antes. Os espaços físicos, sociais, políticos
e culturais já estão delineados por ela, se configurando como sendo a “paisagem”
que está construindo, no sentido de dotar o leitor de um vasto conjunto de
elementos, com o fito de permitir ao leitor uma compreensão mais alargada da
mensagem que pretende transmitir, ao desenvolver a tessitura da trama sócio-histórica
que envolve o ser professora primária.
Professor Jorge
Damasceno – 21 de outubro de 2020.
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