Um escrevedor fala de memória musical – III – Ainda 1969: um
ano prenhe de histórias, memórias e músicas
Esta já é a terceira incursão que este escrevedor faz ao
interior de sua memória musical, procurando revolver camadas de lembranças que
se encontram em vários momentos vividos de seus já quase sexagésimo ano de
existência. Grande parte daquelas camadas são levantadas por meio da audição de
músicas que, ao lhe penetrar o âmago das reminiscências, traz outras memórias a
elas relacionadas.
Para começar, pode se dizer que aquele ano de 1969, fora
prenhe de histórias de conflitos bélicos por territórios e supremacia
ideológica/tecnológica – corriam pelo mundo os efeitos da “Guerra Fria” impulsionada
pela “corrida armamentista” e os horrores da Guerra do Vietnam” -, de disputas por hegemonias políticas e sociais,
bem como, marcado por lutas e confrontos existenciais – ainda se respiravam os
ares das jornadas de maio de 1968 e se difundiam os paradigmas da “contracultura”.
No Brasil, ele é marcado pelo endurecimento do regime instalado em 1964, com a
criação de uma legislação de arbítrio, que levara aos porões dos “DOPS” e
prisões das Forças Armadas, um grande número de artistas, diversos intelectuais
e todos aqueles de quem se suspeitasse.
1969 também é pleno de memórias e narrativas daqueles que o
viveram intensamente, quer como opositores do regime, quer como quem nele se
engajou para dele receber as benesses – a grande imprensa brasileira é um
exemplo deste último grupo. O interessado em tais memórias, pode encontrar uma
profusão delas nos relatórios das várias Comissões da Verdade que funcionaram
durante o governo de Dilma Rousseff; também há uma profusão de memórias (auto) biográficas
de agentes públicos – civis ou militares – e de cidadãos comuns. Este
vastíssimo material tem sido estudado em diversas universidades brasileiras e
em grandes espaços de pesquisa no exterior; mas, se sabe que ainda há muito por
fazer, por examinar, por escrever.
É naquele ano que Richard Nixon e Emílio Garrastazu Médici
tomam posse na presidência dos seus respectivos países; no Brasil, em meio aos
efeitos do regime militar instalado cinco anos antes, se dá o sequestro do embaixador
norte-americano Charles Burke Elbrick, logo trocado pela liberdade de presos
políticos, até então, mantidos pelo regime dos generais. Aquele ato de grande
risco, foi perpetrado como parte das ações de grupos que se opunham ao domínio
do Estado ditatorial brasileiro, instaurado pelos militares; é também naquele
ano que o ativista Carlos Marighela é emboscado e morto pelos comandados do
delegado Fleury; ainda em 1969, o mundo assistia The Beatles realizarem o último
show e lançarem o último disco; é também naquele ano que morre o segundo dos
generais presidentes do Brasil.
Como se pode observar, trata-se de um ano bastante
movimentado nos vários campos do viver humano, tanto no Brasil quanto fora
dele. Alguns exemplos: naquele ano,
prossegue a profusão de “Atos Institucionais – os “AI”, entre eles o que
instituiu a nova composição do “STF”, reduzindo de dezesseis para onze, o
número de cadeiras a serem ocupadas naquele corpo jurídico; o Congresso
Nacional é reaberto, depois de ter sido fechado pelos efeitos do AI5, em 13 de
dezembro do ano anterior; é promulgada a Emenda Constitucional Número 1“, que praticamente reescreve a Constituição
promulgada pelo governo do generalato em 1967, dentre outros fatos que
movimentaram a política, a economia, a sociedade e a cultura brasileira, no ano em que a TV Globo exibe
pela primeira vez o seu “Jornal Nacional”, do nascimento da Embraer e no ano
dos primeiros resultados de experimentos que levaram a criação da Internet.
É preciso salientar de passagem, que grande parte daquilo
que foi exposto até aqui, no momento mesmo do seu desenrolar, não é parte da
memória vivida por este escrevedor, evidentemente. As informações foram
colhidas no transcurso do seu viver e fazem parte do rememorar coletivo, que é
reforçado e solidificado pela escola, pelos livros, pelos filmes, pelos
documentários, pelos arquivos – públicos ou privados -, pelas narrativas
daqueles que vivenciaram os eventos incrustrados na construção coletiva da
memória. Tal memória vai ganhando corpo com o passar do tempo e vai se incorporando
à construção mental do indivíduo que se insere no processo histórico social. No
dizer de Maurice Halbwach (1877-1945):
“[...].
Ao crescer, especialmente quando se torna adulta, a criança participa de modo mais
distinto e mais refletido com relação à vida e ao pensamento desses grupos de
que fazia parte, no início quase sem perceber. Como isso não modificaria a
idéia que ela tem de seu passado? Como as novas noções que ela adquire, noções
sobre fatos, reflexões e idéias, não reagiriam sobre suas lembranças? Já
repetimos muitas vezes: em medida muito grande, a lembrança é uma reconstrução
do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados
por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de
outrora já saiu bastante alterada. Claro, se pela memória somos remetidos ao
contato direto com alguma de nossas antigas impressões, por definição a
lembrança se distinguiria dessas idéias
mais ou menos precisas que a nossa reflexão, auxiliada por narrativas, testemunhos e confidências dos
outros, nos permite fazer de como teria sido o nosso passado. Não obstante,
ainda que seja possível evocar de maneira tão direta algumas lembranças, é impossível
distinguir os casos em que assim procedemos e aqueles em que imaginamos o que
teria acontecido. Assim, podemos chamar de lembranças muitas representações
que, pelo menos parcialmente, se baseiam em testemunhos e deduções — mas então,
a parte do social, digamos, do histórico na memória que temos de nosso próprio
passado, é bem maior do que podemos imaginar. Isso, porque desde a infância, no
contato com os adultos, adquirimos muitos meios de encontrar e reconhecer
muitas lembranças que, sem isso, teríamos esquecido rapidamente, em sua
totalidade ou em parte”. (HALBWACH, 2006, p. 91).
Dentro desta perspectiva, grande parte das melodias que
foram lançadas ou bastante tocadas em 1969, só chegaram a este escrevedor algum
tempo depois, construindo um outro feixe de lembranças que se ligam àquele
tempo em que foram ouvidas. Isto é: nem sempre estão relacionadas ao momento do
seu surgimento para o público em geral, mas sim, ao instante em que chegou pela
primeira vez aos seus ouvidos, em tempos e circunstâncias diferentes.
Outrossim, um abundante número de narrativas sobre aquele
ano, traz ao leitor uma memória coletiva bastante expressiva, no que tange ao
mundo da produção musical. 1969 está em curso e, nele, algumas músicas e
lembranças se destacam e se misturam. Naquele ano houve uma grande quantidade de
lançamentos de “long. plays” que acabaram se tornando clássicos do universo
discográfico brasileiro, para ficar só no campo nacional. Foi o caso, por
exemplo,, da explosão de músicas como “Aquele Abraço”, de Gilberto Gil, “País
Tropical”, Wilson Simonal, “Estrada de Santos”, Roberto Carlos, “Irene”, música
que Caetano Veloso compôs na prisão por subversão, entre tantas outras, além do
lançamento do primeiro disco de Antônio Marcos, LP no qual foi gravada a música comentada no
arrazoado anterior, mas que não foi a mais tocada dentre as suas doze faixas.
Podem ser destacadas mais duas músicas daquele álbum, cujo título é “Antônio
Marcos”: “Você pediu e eu já vou daqui”, canção que abre o disco;
e a música “Sou Eu”.
A primeira delas, sempre foi tocada ao longo dos anos,
também é facilmente encontrável nas produções que intitulam “20 melhores” do
artista tal; a segunda, há muito já não era ouvida por quem escreve estas páginas,
por ser pouco tocada nos programas de “flash Back”. Ao preparar o arrazoado
anterior, o disco completo foi ouvido e, aos seus primeiros acordes, logo foi
reconhecida, como tendo sido ouvida na época mesma de sua execução, talvez, na
rádio Emissora de Alagoinhas – da qual já se falou em exposições pretéritas.
Já vão longas as páginas destes rememorares e, é preciso
falar que a música que se quer trazer à apreciação dos leitores, como já deve
ter ficado claro, é do ano de 1969 e, a sua audição traz a este escrevedor,
impressões olfativas, sensitivas, táteis e até auditivas de um tempo em que toda esta área de sua
residência e entornos, era um quase quadrado de uns trezentos metros a partir
da estrada de ferro e uns mais ou menos duzentos e cinquenta metros, na direção
do rio Aramari, cujos loteamentos eram oriundos de fazendas de plantação de fumo
e mandioca, imensos coqueirais e laranjais, de ocupação ainda rarefeita.
É nítido o rememorar de espaços ainda sem casas, com vasta
vegetação rasteira, algumas árvores frondosas e, sobretudo, aquelas partes dos
novos loteamentos que são demarcadas com meio-fio, que serviam de estrada em
momentos de alagamento, o que era bastante comum nos invernos vividos naqueles
idos de 1969 e, que perdurou por bastante tempo, até que nos anos dois mil, o
local viesse a ser urbanizado.
Talvez fosse no rádio do caminhão do senhor Heupídio,
residente em um daqueles novos loteamentos estabelecidos na antiga fazenda de
Álvaro Dantas, ou mesmo na casa do senhor Teobaldo e de dona Janda, também
residentes no local, que este escrevinhador ouvia os belíssimos acordes de um
dos maiores êxitos de Erasmo Carlos, que, diga-se de passagem, aquela música foi o seu divisor de águas,
conforme entrevista do artista, concedida anos depois à imprensa.
Quem conhece esta história, sabe que a melodia em questão é:
“Sentado à Beira do Caminho”, na inconfundível voz daquele que sempre assinou diversos
sucessos de Roberto Carlos, mas que não conseguia emplacar o seu próprio.
Professor Jorge Damasceno – 14 de outubro de 2020.
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