Em junho de 2010, se fez uma postagem aqui neste espaço, no momento em que se tomava conhecimento da morte do escritor português José Saramago (1922-2010). Trata-se de um arrazoado no qual foram feitas algumas observações acerca de uma das muitas obras do autor nascido nas terras luzitanas. Se resolveu republicar aqui o texto, uma vez que o modo como o seu autor pensava a referida obra àquela altura, não sofreu grandes reparos, no instante em que se aproxima a data em que se completará a primeira década do desaparecimento do vencedor do prêmio Nobel de literatura na última década do século XX, mais precisamente em 1998.
Uma outra razão que levou este escrevente a republicar o escrito em 2010, relaciona-se ao escrito postado na semana passada, neste mesmo espaço, onde se desenvolveu um conjunto de considerações sobre o "Ensaio sobre a Cegueira", fundamentado em entrevista lida em 1995, a partir da qual, este escrevente construiu as suas objeções à referida obra.
Antes de inserir o arrazoado mencionado acima, convém salientar que este escrevedor consegue separar a obra do seu autor. Isto é: suas objeções estão relacionadas exclusivamente ao "ensaio sobre a cegueira" e não ao seu autor e/ou ao conjunto de sua obra. Afinal, ela é vasta e amplamente reconhecida pela sua qualidade literária - além de ser pouquíssimo conhecida por este escrevedor -, o que, diga-se de passagem, pavimentou o caminho para que Saramago fosse agraciado com o "Nobel de Literatura", como reconhecimento de sua capacidade criadora.
Bom, agora fiquem os leitores com aquele escrito há dez anos.
Morre o autor de "Ensaio sobre a Cegueira"
Lembro-me que o primeiro
contato que tive com livros escaneados para se ler no computador, foi
justamente um dos livros que mais custei a ler e mais detestei quando li. Nas
primeiras tentativas de leitura, o que me fazia recuar era a dificuldade de
compreender o texto, seu contexto e seu autor.
Precisei de dez longos anos,
várias outras leituras e, sobretudo, a leitura de uma reportagem publicada no
periódico português "O Expresso - a revista", onde a repórter,
apresenta um longo ensaio sobre a obra e, após ele, uma excelente entrevista
com o próprio Saramago, na qual ele procurava explicar a obra, seu contexto e
as circunstâncias que o levara a escrevê-la. Tanto pior, pois detestei ainda
mais o "Ensaio sobre a cegueira", mesmo sem ter conseguido ler
mais de dez, das suas mais de trezentas páginas.
Finalmente, em uma quase
interminável noite de insônia, fui além de minha rejeição à obra e a li, de uma
só vez, como quem toma um remédio amargo. E, continuei detestando-a, pois nela,
o autor põe a nu todo o seu modo pessoal e social de pensar o cego e a
cegueira, visto que, não se pode dissociar o escritor da sociedade na qual ele
está inserido. Ele não só influencia o todo social com seus conceitos, opiniões
e formulações de uma determinada visão de mundo, quanto por ele é influenciado,
atuando como "caixa de ressonância" do meio em que vive.
Assim, em sua obra, Saramago
deixa bem claro o modo como ele vê o cego e a cegueira, ao mesmo tempo em que
reflete o modo como a sociedade pensa e age em relação a este tipo de
circunstância, quer seja ela levada ao nível do ser individual, humano (o cego,
homem ou mulher), quanto ao trazer para o nível abstrato da sociedade, como ele
dizia na mencionada entrevista, que quando escrevia a obra em questão,
"pensava em Hitler" e em seu intento de impor ao mundo sua proposta
de sociedade arianizada. Ali ele via uma sociedade adoecida por uma cegueira
coletiva e endêmica.
Ora, não é difícil para a
opinião pública, transferir esta e outras proposições conceituais encontradas
no "Ensaio Sobre a Cegueira", para o âmbito do ser humano, e/ou grupo
formado por seres humanos desprovido das capacidades visuais, associando tal
falta, à impossibilidade de racionalizar, de elaborar pensamento crítico, bem
como a uma permanente impossibilidade de perceber, entender e agir com o que se
encontra ao seu redor e com as vicissitudes que se lhes apresenta no cotidiano.
Alienar, segregar os doentes e
proteger a população "sã", deles e do seu contágio, é o grande
esforço que se faz no transcurso de toda a obra. No entanto, ele apresenta o
ser cego, aquele que naturalmente o era, como alguém mais vil e capaz de
gestos, atitudes e práticas de maior repugnância social, na medida em que
aquele grupo por eles formado, submete e sujeita os cegos "temporários",
às maiores vilezas e situações de degradação, em um nível de abjeção
inimagináveis.
Então, com tanta contradição no
modo de ver e pensar o cego e a cegueira, apresentada naquela obra, onde
pretendia o escritor chegar? Qual era o juízo que pretendia formar junto à
opinião pública, leitora de suas obras? Seria uma crítica social tão profunda e
sutil, que eu e os poucos críticos da obra não quisemos e/ou pudemos entender?
Eis aí estão postas questões a
serem pensadas, sobretudo no contexto da história e da memória de um escritor
que se vai e, sobretudo, em torno de uma obra que, ficará como monumento àquele
que a trouxe à luz
Jorge Damasceno, - Professor de
História na Universidade do estado da Bahia
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