terça-feira, 26 de maio de 2020

Alagoinhas, maio de 1990


Alagoinhas - maio de 1990 - atravessando o rio das dúvidas

Crê-se que era a segunda semana de maio de 1990, quando foram retomadas as atividades letivas na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, após uma greve deflagrada pelos seus docentes, antes mesmo que o semestre tivesse sido iniciado.
Naquela retomada das aulas, este escrevente passava a cursar o sexto período letivo, embora fosse aluno da turma que entrara em 1986. Estava matriculado em seis matérias, premido pela necessidade de integralizar a carga horária obrigatória do curso de História em um tempo que lhe permitisse ingressar no mercado de trabalho, visto já ter entrado no ano em que completaria a terceira década de vida, sem ter ainda qualquer perspectiva de provimento das suas necessidades, a não ser, a expectativa de concluir aquele curso e partir para a busca de espaço para atuar como professor.
Mais tarde se voltará a este que é o tema central deste arrazoado. Antes, faça-se uma breve contextualização da cidade no tempo e no espaço.
Do ponto de vista econômico e social, Alagoinhas não mudara muito em relação ao panorama encontrado dez anos antes. A oferta de postos de trabalho continuava majoritariamente ligada ao setor educacional público e privado, ao comércio varejista e aos serviços bancários e ao setor público. Isto obrigava a aqueles que não fossem absorvidos em tais atividades, a se deslocar em direção a outras paragens mais alhures, em busca de colocação laboral.
Saliente-se, no entanto, que é possível notar um incremento de abertura de postos de trabalho no setor da educação privada, consoante ao aumento do número de unidades escolares, mormente, considerando-se o surgimento de unidades de pequeno e médio porte, o que enseja um reforço no atendimento de uma demanda crescente. Além disto, há uma notável expansão daquelas unidades escolares de ensino privado já existentes, embaladas, sobretudo, pela aceleração da queda na qualidade da educação pública instalada.
Destarte, ao comparar a infraestrutura encontrada no início da década de 80 que chegava ao seu último ano, observa-se uma melhoria no que respeita ao saneamento básico, embalado pela implementação do “projeto Cura”, levada a bom termo pela administração do prefeito Judélio de Souza Carmo. Com aquela arrojada intervenção urbana, toda a rede de esgotamento sanitário do centro da cidade e suas cercanias foi completamente reconstruída, permitindo um maior alcance do processo de captação de resíduos, ajudando a ampliar o número de domicílios atendidos pela coleta de esgotos, além de aumentar a capacidade de escoamento de águas pluviais. Como parte do referido projeto, se procedeu a canalização do rio Catu, transformando-o, visto que, até então, nada mais era do que um esgoto a céu aberto.
Assim, aquela soberba intervenção urbanística, contribuiu significativamente para uma melhora nas condições de habitabilidade dos cidadãos que moravam e/ou praticavam o pequeno comércio nas suas margens, promovendo uma grande valorização de seus imóveis, além de resolver o problema crônico das enchentes e, de quebra, abrindo uma nova via de circulação para a cidade.
Ali, nascia a avenida Lourival Batista, com duas pistas de rolamento, que fora o logradouro para onde havia sido transferida a feira livre do município, até então funcionando em precaríssimas condições de estrutura e higiene, no eixo central da cidade, formado pelas ruas Marechal Bitencourt, Francisco Batista, e Dom Pedro II e, nas sextas e sábados, escorregava pela Praça J.J. Seabra, se estendendo por toda a extensão da rua Soro Joana Angélica, alcançando a praça da Bandeira.
Tendo a sua construção viabilizada pela administração anterior, em espaço preparado por longos anos de trabalho de transformação estrutural, envolvendo obra de engenharia pesada e complexa, uma vez que o local era pantanoso, o que levou ao seu aterramento, com o fito de permitir a preparação do espaço onde foi implantada a Central de Abastecimento. O novo equipamento urbano da cidade foi, conforme pesquisa realizada pela professora Mônica Benfica Marinho, inaugurado e colocado em funcionamento, na administração do prefeito Chico Reis, em abril de 1990.
Uma dentre as  várias críticas que se fez à época em que as ações voltadas para “modernizar” a infraestrutura de saneamento do município estava em processo de discussão e de implementação, foi a de que os benefícios advindos da implantação do projeto Cura, ficaram restritos ao centro da cidade e a alguns bairros adjacentes, que de alguma maneira, já contavam com esgotamento sanitário. Os bairros mais distantes do centro e mais populosos, permaneceram sem contar com aquele serviço tão necessário à saúde ao bem estar das pessoas.
Os serviços de transporte coletivo ainda eram precários e sem qualidade, embora tenha havido um aumento populacional em relação ao início da década anterior, aproximando-se dos cento e quinze mil habitantes, o que acabaria implicando em aumento na demanda de passageiros, bem como no número de localidades atendidas. O terminal da praça Castro Leal fora desativado e, as atividades de embarque e desembarque passaram para o equipamento que, provavelmente fora inaugurado naquele mesmo ano de 1990, em logradouro próximo ao novo espaço de realização da feira livre do município. Um tanto maior do que o primeiro, aquele novo equipamento não era muito melhor do que o da Castro Leal, apenas oferecendo mais espaço físico e podendo comportar um número maior de veículos simultaneamente.
Ainda no transcurso do terceiro ano da década de 1980, a cidade ganha o seu terminal rodoviário, o que viria a suprir uma lacuna no processo de expansão urbana, respondendo a uma demanda de passageiros e transportadores por um local de embarque e desembarque amplo que comportasse as partidas e chegadas para e da capital do estado, bem como das gentes oriundas e/ou destinadas aos diversos pontos do litoral norte baiano. Aquele novo equipamento urbano iniciou uma espécie de retorno da cidade ao ponto inicial de sua povoação, ampliando pouco a pouco a reocupação dos espaços deixados vazios pelo êxodo em direção ao terminal ferroviário, tornado eixo por meio do qual se distribuiu a ocupação populacional da cidade, a partir da década de 1860.
Tendo a BR101 como o novo eixo a partir do qual se redistribuiria a organização do movimento populacional na direção dos bairros que nasceriam naquele que fora o ponto inicial de povoamento da urbe emancipada na segunda metade do século XIX, um redirecionamento no sentido centro-leste é fomentado pela criação de conjuntos habitacionais de grande demanda como as Inocoops, principalmente a Inocoop III e  o conjunto Alagoinhas IV. Além disso, em função da crescente demanda de passageiros, os permissionários de ônibus são obrigados a ampliação do serviço das linhas de transporte urbanos, fazendo com que os trajetos que partiam dos bairros, passassem pelo centro da cidade e chegassem até o novo terminal rodoviário, onde seria ponto final de suas rotas.
Aquela reorientação do afluxo populacional para os lados do que por muito tempo ficou conhecido como “Alagoinhas Velha”, é reforçada pela instalação de equipamentos urbanos como o novo Cemitério, além de outros espaços que foram paulatinamente ocupando as áreas entre a praça da chamada “Igreja Inacabada” e a pista da nova estrada, como o primeiro grande Hotel de luxo construído na cidade e o primeiro motel de grande porte  na região. Até então, a cidade praticamente acabava pouco depois do hospital Dantas Bião, o que foi se modificando com a implementação das Inocoops I e II; tendo chegado no intervalo entre elas e o mencionado hospital, um hiper mercado e um shopping center de pequeno porte, chegando aos anos 1990 com uma ocupação razoável do espaço entre aqueles novos equipamentos e a “praça de Alagoinhas Velha. Algumas chácaras que marcavam a paisagem urbana daquele local, pouco a pouco eram substituídas por condomínios familiares e/ou casas de moradias de uma parcela da “elite” social da urbe em expansão.
Assim era maio de 1990, cheio de novidades e desenvolvimentos urbanos que davam a impressão de uma pujança que fugira das terras alagoinhenses por volta da década de 1960, conforme apontou Salomão Barros (1899-1986), em obra publicada em 1979. Nela, Barros informa que um grupo de cidadãos locais, em 1968, redigira um "memorial" ao governo do Estado, [...] [...] em 1968, o devotado alagoinhense Dr. Israel Pontes Nonato encetou uma campanha, obtendo, em inúmeras listas, 8.020 assinaturas subscrevendo um Memorial, em termos candentes, rebatendo a falsa imagem criada de ALAGOINHAS e mostrando que tinha razões prioritárias para o mesmo Município possuir um Distrito Industrial. Esse Memorial foi às mãos do então Governador do Estado que garantiu atender ao pleiteado. (Barros, 1979, P. 76).
O pleiteado “distrito industrial” fora implantado entre os anos de 1973-1977, durante a vigência do primeiro mandato de Judélio Carmo, embora não tenha trazido os benefícios tão almejados pelos “devotados Cidadãos alagoinhenses”, signatários do dito “memorial”.
Aquele maio, no entanto, se afigurava como um momento de desenvolvimento da cidade, impelido pelos “novos ventos” de uma administração municipal ainda aureolada de esperanças de avanços mais significativos, visto ter sido sufragada nas urnas de 1989, sob expectativa de manter o ritmo empreendido pela administração a que sucedeu, quase como um referendum a ela.
Como já foi dito páginas atrás, aquele era o ano em que este escrevedor completaria a terceira década de sua existência, sem que vislumbrasse quaisquer perspectivas de alteração do quadro até ali vivenciado, marcadamente naquilo que respeita ao provimento de suas necessidades essenciais e o exercício da paternidade. Aquele maio o encontrara envolto em uma crise pessoal que afetava desde o processo de preparação acadêmica/profissional, com a retomada de semestre letivo, passando pela angústia do passar do tempo que o poderia tornar “velho” para a atuação no magistério, passando pela extrema dependência do provimento materno – com seu trabalho de lavadeira de ganho e a pensão por morte de seu filho mais velho  -, até questões ainda não compreendidas    por ele, no que tange ao “amor” - em todas as suas acepções - e, por assim dizer, mais um profundo e caudaloso rio de dúvidas que precisaria atravessar.
Na prática, o ano estava começando. As dúvidas se Avolumavam, sobre  se encontraria maneiras de fazer frente às dificuldades técnicas para continuar a cursar uma formação profissional, em que o volume de leituras e as condições técnicas e cognitivas de sua efetivação eram cada vez mais estreitas; se haveria de superar os entraves impostos pela sua frágil base escolar, o que dificultava ainda mais a compreensão/apreensão do material acadêmico que precisava ler, a fim de construir a “massa crítica” tão necessária ao exercício docente, que, em última análise, seria o objetivo final para que se desprendia todo aquele esforço.
É interessante notar que, aquele foi o ano em que este escrevedor mais ouviu cantar o e sobre o “amor”. Era o auge das composições de Sullivan e Massadas, com belíssimas intepretações de gente como Joana, Fafá de Belém, Rosana, Raimundo Fagner; além de interpretações e composições de Djavan, Marisa Monte, dentre outros que muitas vezes ficaram em uma única aparição na “cena” musical, que o rádio inundava os ouvidos de todos, mesmo daqueles mais céticos e desconfiados daquelas inúmeras metáforas e hipérboles que marcaram aquele momento, que talvez se pudesse chamar de “tempo do amor hiper romantizado”, comunicados  em forma de poemas, que quase sempre eram envoltos em harmoniosas melodias.,
Mas, tudo aquilo era como que um devaneio, embora o escrevedor já não mais fosse adolescente e, talvez, por isto mesmo, voltava a pensar no real, a cismar de si para consigo, buscando mais adiante, como se ele pudesse se transportar para a outra margem daquele rio de dúvidas, enfrentar aquela correnteza da realidade que insistia em lhe arrastar, angustiando-o por precisar esforçar-se ainda um pouco mais para a vencer, na vã tentativa de atravessar o tempo, antes mesmo de chegar nele, buscando saber: como seria o “feijão” do prover-se, da conclusão da graduação, da ocupação laboral, dos meios como exerceria a docência para a qual se estava preparando?
Foram estas as questões que alimentaram os “chorares” com os quais ele se alimentou; foi aquele imenso volume de suspiros com o qual ele se defrontou; todo aquele ano foi marcado pelo esforço necessário para prosseguir o atravessar; pelo receio que viesse a perder o que foi acumulado ao longo da travessia, se viesse a fracassar; foi um angustiar-se quase sem fim e, pior: sempre só, embora houvesse um bom número de pessoas o rodeando; mãe, dona Amanda, embora nada pudesse compreender de tudo aquilo que se passava, era o apoio, era a pessoa a quem se queria “realizar” com aquele “enfim: a outra margem.

Professor Jorge Damasceno

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