domingo, 25 de maio de 2025

AS LINHAS E AS ENTRELINHAS III

 

Obras e autores – Parte I.

 

O arrazoado que o paciente leitor ora tem diante de si, é mais um dos muitos frutos que se pode obter através de um exercício de rememoração, exercício este que, conforme já se tem deixado claro,, resulta de um conjunto de escolhas que são feitas por quem lembra, do que lembrar, do que trazer à superfície; do que silenciar ou do que esquecer. Tal exercício feito por quem lembra, permite evocar alguns elementos que se encontram cobertos por muitas camadas de tempo e por muitas camadas de experiências que se sobrepõem ao passado trazido à memória de quem se propõe a lembrar e a escrever sobre aquilo que lembra. Evidentemente que as escolhas do que lembrar e do que esquecer, acabam por sugerir um trabalho do espírito, que traz à lume experiências por ele vividas em um passado mais ou menos distante do presente – ou volta a encobrir com novas camadas de esquecimento ou de silenciamento – abrindo novas possibilidades para outras incursões em outros momentos de lembrares arrancados das sombras de um passado que precisa evocar com ainda mais força e diligência.

Conforme se vem dizendo há algumas páginas, as dificuldades encontradas por José Mário, no tocante à compreensão daquilo que se dispusera a ler, no temo que era construído o seu processo de formação escolar, estava relacionada ao modo como aquele processo era conduzido. Nele não estava presente a construção de um espírito crítico capaz de discernir entre o “dito” e o não “dito”, ao se apropriar de um texto requerido para a elaboração de um trabalho escolar, para uma reflexão a mais simplória ou, ao se valer de uma obra mais completa e complexa para um exame mais aprofundado, afim de fazer mais rico e amplo o seu corolário de elementos constitutivos da vida em agrupamentos humanos, bem como ampliar a sua compreensão daquela sociedade na qual se pretendia inserir e, compreensão que se relacionava com as outras dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais, por meio dos quais, pudesse apreender as suas formulações, as suas proposições ou, quiçá, as suas premissas mais fundamentais, para entender os diversos contextos do mundo onde vivia e com o qual precisaria interagir, quer enquanto indivíduo, quer enquanto pertencente a um todo coletivo. No entanto, o que se lhe era dado, consistia pouco mais do que propiciar ao educando a possibilidade de reconhecer os caracteres alfabéticos, fonéticos, silábicos e receber alguns fundamentos gramaticais, que pudesse permitir entrar em contato com o texto a ser lido, apenas em sua conformação aparente e perceptível ao tato – no caso dos leitores por meio do sistema Braille – o que o tornaria um conhecedor apenas superficial do texto ou do conjunto de textos que lhe caísse nas mãos, como se pode concluir, por meio do que até aqui se tem elaborado.

Assim, a abordagem que se pretende desenvolver aqui, diz respeito ao modo como José Mário apresentava uma grande dificuldade em lidar com algumas obras literárias que se lhe foram apresentadas ao espírito. Em primeiro lugar, ele não conseguira estabelecer um nexo entre o que estava diante de si no formato de um livro a ser lido a partir de um ponto de vista ficcional, com o seu cotidiano, tanto no que respeitava ao conjunto dos hábitos e procederes reais do seu ambiente familiar, quanto no que dizia respeito àquilo que se lhe apresentava no ambiente escolar, ou no convívio/contato com amigos, vizinhos, coetâneos ou ainda, moradores do mesmo espaço citadino. Ele se esforçava para se ver “representado” naquelas tramas, vivamente desenvolvidas em grande parte dos livros que lia. Daí, ele ter se deparado com obras que, por não as compreender minimamente em seu intento, acabara por fechar as narrativas sem concluir a apreensão do seu conteúdo. Uma daquelas obras era “Romance de um Moço Pobre”, escrito pelo dramaturgo francês Octavio Feuillit (1821-1890),que recebera em casa, mediante o seu pedido à Fundação para o Livro do Cego No Brasil. O título lhe sugeria um enredo que se aproximasse do seu viver pessoal. Acreditava que o dito romance se pudesse aplicar àquilo que experimentava no seu dia a dia. Mal compreendera as primeiras linhas, ou com um pouco mais de esforço, talvez tenha avançado por mais algumas páginas e, por evidente que não se poderia perceber nelas representado, acabara por deixar a sua leitura de lado, embora, a tenha tentado retomar por mais duas ou talvez, três vezes, sem sucesso.

Em segundo lugar, ele ainda não distinguia os estilos literários – contos, crônicas, romances –, ainda menos , conhecia as distintas fases pelas quais se podia classificar a produção literária – indigenismo, naturalismo, romantismo, realismo e assim por diante. Isto fez com que os livros fossem “devorados” como sendo tudo “romance” – novelas -, principalmente, aqueles que tivessem os finais esperados e desejados pelo leitor. Três obras de Monteiro Lobato (1882-1948) que ele abrira, não conseguira entender e, por isto as fechara sem concluir o percurso pelas suas páginas, dão bem a dimensão daquelas dificuldades. A primeira delas foi “Urupês”, que lhe caiu nas mãos por meio dos catálogos das obras transcritas em Braille que, periodicamente era enviado para os inscritos nos registros de distribuição das obras disponibilizadas pela Fundação para o Livro do Cego NO Brasil. Ao receber a obra em causa, partiu ávido para se apropriar do seu conteúdo. No entanto, as primeiras páginas lhe pareceram por demais obscuras e, logo abandonou a empreitada. Acreditava se tratar de mais um “romance (novela)”, razão pela qual naufragara logo nas primeiras tentativas de viajar naqueles mares imbricados de propósitos – nem sempre subliminares – mas, que para ele, não faziam qualquer sentido! Não sabia tratar-se de um compilado de contos e crônicas do autor, publicado em 1918, que, se tivesse o conhecimento do contexto dos escritos, bem como do que motivara fossem reunidos naquele volume, talvez, quem sabe, pudesse não só ler toda a obra, quanto compreender a sua razão de ser.

A segunda das obras de Lobato que José Mário abrira e não concluíra a sua leitura foi “Cidades Mortas”, que, aliás, nem mesmo o título da obra ele conseguiu entender, do modo como deveria. Para ele, as tais “Cidades Mortas”, de fato seriam mesmo mortas, no sentido mais literal do termo. Outra vez, ele esbarrou na incompreensão do contexto daqueles escritos, por se  tratar de uma coletânea de reflexões sobre as mudanças operadas no Brasil que passava do século XIX para o XX e as implicações econômicas, sociais, políticas e culturais de tal passagem. Outra vez, faltou àquele leitor superficial, as informações que lhe oferecessem o contexto em que foram reunidos os textos ali encontrados, bem como, as informações que lhe permitissem saber se tratar de um estilo literário diferente das novelas que, acreditava, compreendia plenamente o seu desenrolar.

A terceira das obras de Lobato que José Mário não concluiu a leitura, lhe chegara as mãos pela mesma forma que as duas anteriores. Ao pedir que lhe fosse enviada, ele, uma vez mais, acreditara se tratar de um “romance (novela”, embora àquela altura dos seus cerca de quinze, dezesseis ou dezessete anos, a palavra utilizada como título do livro, possuísse para ele uma conotação diferente daquela que apresentava, pois, no meio em que habitava, era uma expressão pejorativa – “nigrinha”, sem registro no dicionário Houaiss da Língua Portuguesa  “, que apresentou para aquele leitor alguma dificuldade de transliteração  para a expressão que dava título ao arrazoado em causa -, que significava uma moça desprovida de respeito – no que tange à moral e aos costumes – de “má fama” ou de conduta social (principalmente, sexual) pouco recomendável. Tratava-se de “Negrinha”, cuja leitura fora interrompida no ponto em que uma menina de sete anos, sofre castigos cruéis por parte de uma senhora, que lhe introduz um ovo quente na boca; que lhe queima a língua com uma colher em brasa. Ali, o leitor desprovido dos elementos que lhe inferissem a contextualização necessária para compreender o enredo, acaba por se decepcionar e interrompe a leitura para não mais a retomar por todo o tempo que durara a sua formação escolar, daquilo que ele acreditava se tratar de uma “história”, ao menos, fosse lúdica, tratando-se de ter sido uma criança tomada como protagonista.

Desta forma, uma vez mais, aquele leitor desprovido de uma compreensão das entrelinhas e, ainda menos capacitado para apreender as muitas subliminaridades embutidas no texto que intentara ler, não sabia tratar-se de um conto – nem mesmo que ali havia outros dois ou três contos coligidos – que pretendia dar a conhecer algumas das maneiras como eram tratadas as pessoas advindas do sistema escravista que vigorara no País até cerca de trinta e dois anos antes de sua publicação. Fosse ele adestrado no processo de ler para além das palavras, compreenderia, por certo, que Lobato empreendia uma crítica à sociedade pós-escravista do início do século XX e, que procurava demonstrar que os principais traços do agir e do pensar social de uma grande parte das elites brasileiras, ainda estavam assentados nos pilares do trabalho escravo, apontando para as atitudes levadas a efeito no trato com as pessoas que foram egressas da escravidão que constituíra a formação econômica e social do Brasil por mais de três séculos, o que indicava uma permanência latente das ideias que se desenvolveram em relação ao elemento negro que conformava aquela sociedade que se queria “moderna”.

 

Alagoinhas – 25 de maio de 2025.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

Um comentário:

  1. Iraci Gama Santa Luzia25 de maio de 2025 às 22:25

    Jorge, infelizmente, essas dificuldades que foram de José Mário, no período inicial de formação, foram também dos leitores que não precisavam do BRAILLE, pois o estudo do texto, não incluía a análise do discurso, mas, apenas, os elementos da caráter gramatical.

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