Obras e autores – Parte II.
O paciente leitor destes garatujares tem diante de si, mais
um conjunto de rememorares que se vem construindo há alguns pares de meses,
procurando refletir sobre o que teria levado o personagem analisado, a
enfrentar os diversos desafios que lhe foram impostos ou propostos pela vida,
nem sempre, em concomitância com as suas escolhas, embora, em algumas
circunstâncias e situações, foram aquelas, a razão e o porquê dos diversos
embates que precisou enfrentar ao longo do curso da vida. Tais rememorares, se
apresentam mediante os fragmentos de lembranças que assomam ao espírito deste
escrevedor e, conforme já se tem dito, são trazidas à tona e, dadas a conhecer,
depois de se terem feitas as escolhas do que lembrar, do que esquecer e,
sobretudo, do que silenciar, inerentes à memória de um ou mais aspectos do passado,
lembranças que são acionadas a partir do presente. É, portanto, um rememorar
que é fruto do espírito de quem lembra, que, via de regra, intenta compreender
aquele passado, à luz de uma confluência entre presente e passado, aquele,
evocado em meio às muitas camadas em que está parcialmente submerso; este, já
imbuído de elementos vivenciais que foram se impondo e se sobrepondo como mais
um feixe de camadas posto sobre aquilo que já foi vivido, mas, que, em razão de
se fazer evocar por quem lembra, emerge dentre as muitas camadas que já o
recobrem, na forma de representação daquilo que já foi, que acaba por ser
ressignificado no presente em que se dá um tal rememorar.
Assim, em consonância com o que se vem desenvolvendo em
arrazoados anteriores, talvez se possa articular o postulado segundo o qual,
José Mário, no seu processo formativo e escolar, já estivesse sob os efeitos da
lenta, gradual mas, constante aplicação do princípio enunciado por José Carlos
Libânio e, encontrado nos pressupostos fundamentais da Lei 4024/61 (Lei de
diretrizes e Bases da Educação Nacional) e implementado sob os auspícios da Lei
5692/71 (Lei das Diretrizes e Bases para o Ensino do Primeiro e do Segundo
Grau), que preconiza um movimento de degradação do ensino oferecido aos alunos
admitidos nas escolas públicas,
sobretudo, travestido de democratização do acesso às séries correspondentes aos
antigos ginásios e cursos secundários, subsequentes às series iniciais,
destinadas a alfabetização das pessoas oriundas das camadas formadas pelos
trabalhadores cada vez mais presentes nas grandes, médias e pequenas
aglomerações urbanas, acrescido daqueles que se originavam de camadas populares
forjadas a partir dos indivíduos procedentes das roças e dos grotões mais
distantes e díspares do Brasil. Tal degradação consistia em se oferecer cada
vez menos conteúdos propedêuticos correspondentes à série cursada, postergando
a aplicação de ampliação dos graus de
dificuldades para as etapas seguintes, deixando para trás aqueles que não
conseguissem ultrapassar as etapas de formação, igualmente, penalizando aqueles
outros que chegassem nas mais imediatas, porém, sem conseguirem ultrapassar a
subsequente, deixando sempre uma lacuna no processo formativo de quem não
alcançasse, por alguma razão, o último ponto da caminhada. Ou seja: o que se
deveria ser aprendido no primeiro grau, nível 2, ficaria para o segundo grau; o
que ali deveria se aprender, seria postergado para o Ensino Superior, no escopo
da graduação; e assim por diante.
Portanto, conforme dissera inúmeras vezes o antropólogo
Darcy Ribeiro (1922-1997), em entrevistas publicadas nos mais diversos órgãos de
imprensa e, em conferências feitas em diversos momentos de sua vida, aquilo não
era uma anomalia do sistema; aquilo era o próprio sistema, em seu perfeito
funcionamento, conforme fora projetado. À medida em que os filhos dos trabalhadores
ganhavam o acesso à escolarização, através de uma significativa ampliação de
oferta de vagas nas novas escolas públicas que pareciam promover uma certa “universalização”
do acesso à educação gratuita, aquela era tornada cada vez mais precária e enfraquecida
em seu rigor, em seus métodos de ensino e de avaliação da aprendizagem, de modo
que, salas com quarenta e cinco ou cinquenta alunos; professores ainda em
processo de formação para aquele tipo de atuação – visto que, grande parte
deles, era egressa do ensino Normal, popularmente conhecido como magistério -,
tornava a tarefa de escolarização e de formação futuros “profissionais” cada
vez mais limitada ao básico que lhes permitisse um acesso a atividades laborais
cada vez mais especializadas, sem que tivessem aquilo que se convencionou
denominar de “cultura geral”, que lhes permitisse pensar além da superfície,
bem como, compreender aquilo que viesse a ler.
É neste ambiente de escola cada vez mais universal e frágil,
que se desenrola o viver cotidiano de José Mário e, que são forjados os seus
limites de compreensão do mundo à sua volta. Para além dos seus outros
desafios, quais sejam o seu ambiente desfavorável do ponto de vista da
aquisição de elementos culturais que lhe permitissem o acúmulo e a troca dos “bens
simbólicos”, conforme preconiza o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002),
o seu acesso rarefeito a outras leituras, para além daquelas que lhe eram
proporcionadas pela distribuição gratuita de livros em Braille, proporcionado
pela então Fundação para o Livro do Cego no Brasil, bem como o seu já aludido
ingresso tardio no processo de escolarização, ensejou algumas tentativas de
apreensão de conteúdos, encontrados em obras com um nível de complexidade tal
que, embora ele houvesse conseguido ler toda ela, dali nada retirara, no que
tange à compreensão do seu propósito, não obstante se tratar de um autor e de uma
temática que ele sequer ouvira falar, nem mesmo de forma aligeirada.
Na altura dos seus dezessete ou dezoito anos, naqueles
momentos de interrupções já comentados aqui, que vivera em relação à sétima
série do então primeiro grau, José Mário, mesmo possuindo um baixíssimo nível
de abstração – se é que possuía algum – arriscara a leitura de Erich Fromm
(1900-1980), percorrendo todas as páginas de “Análise do Homem”, a despeito de
nada do que fora lido, ter sido compreendido, ainda que minimamente. O precoce leitor,
sequer sabia tratar-se de uma obra voltada à psicanálise, com um viés freudiano
e, com uma conexão com o pensamento marxista. Aliás, ele sequer sabia da
existência de tais pensadores; muito menos, da influência que eles exerceram
sobre um grande número de outros que, não só inseriram os seus postulados
naquilo que preconizavam, como divulgava por meio das suas reflexões, o pensamento
e as premissas teóricas e metodológicas por meio das quais pensavam o homem e a
sociedade por ele forjada. Tanto é assim que, uma outra obra de Erich Fromm que
lhe caíra nas mãos, não arriscou a leitura, visto não ter quaisquer elementos
que o ajudasse no propósito de alcançar uma compreensão dos pressupostos nela
contidos – sem falar que a sua leitura era mecânica, conforme já se abordou em
outro arrazoado desta série, o que significa, em geral, que o seu propósito era
apenas ler, como se fosse um meio de passar o tempo, ocupando-se com alguma atividade.
A obra de Erich Fromm que ele não quisera arriscar a
leitura, mesmo que de forma mecânica e visando passar o tempo, era “Medo a Liberdade”.
O efeito de uma leitura feita, sem que houvesse qualquer vestígio de
compreensão dela, em quaisquer dos seus aspectos, fez com que ele sequer
abrisse aquelas páginas para percorrer as suas linhas, considerando-se que, até
mesmo uma leitura mecânica tem os seus limites. Tanto é assim que, como poucas
vezes o fez, aquelas obras foram passadas adiante e, em conversa com um seu contemporâneo
dos tempos de internato, fazendo-lhe saber de sua disposição de assim o fazer, Carlos
Castro, aquele seu interlocutor, interessou-se pela oferta e, se dirigiu até o
lugar de moradia de José Mário, recebendo dele os ditos volumes de “Análise do
Homem” e de “Medo à liberdade”, que,
acreditava, ele tiraria melhor proveito do seu conteúdo.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com – outono de 2025.
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