sábado, 31 de maio de 2025

AS LINHAS E AS ENTRELINHAS IV


Obras e autores – Parte II.

 

O paciente leitor destes garatujares tem diante de si, mais um conjunto de rememorares que se vem construindo há alguns pares de meses, procurando refletir sobre o que teria levado o personagem analisado, a enfrentar os diversos desafios que lhe foram impostos ou propostos pela vida, nem sempre, em concomitância com as suas escolhas, embora, em algumas circunstâncias e situações, foram aquelas, a razão e o porquê dos diversos embates que precisou enfrentar ao longo do curso da vida. Tais rememorares, se apresentam mediante os fragmentos de lembranças que assomam ao espírito deste escrevedor e, conforme já se tem dito, são trazidas à tona e, dadas a conhecer, depois de se terem feitas as escolhas do que lembrar, do que esquecer e, sobretudo, do que silenciar, inerentes à memória de um ou mais aspectos do passado, lembranças que são acionadas a partir do presente. É, portanto, um rememorar que é fruto do espírito de quem lembra, que, via de regra, intenta compreender aquele passado, à luz de uma confluência entre presente e passado, aquele, evocado em meio às muitas camadas em que está parcialmente submerso; este, já imbuído de elementos vivenciais que foram se impondo e se sobrepondo como mais um feixe de camadas posto sobre aquilo que já foi vivido, mas, que, em razão de se fazer evocar por quem lembra, emerge dentre as muitas camadas que já o recobrem, na forma de representação daquilo que já foi, que acaba por ser ressignificado no presente em que se dá um tal rememorar.

Assim, em consonância com o que se vem desenvolvendo em arrazoados anteriores, talvez se possa articular o postulado segundo o qual, José Mário, no seu processo formativo e escolar, já estivesse sob os efeitos da lenta, gradual mas, constante aplicação do princípio enunciado por José Carlos Libânio e, encontrado nos pressupostos fundamentais da Lei 4024/61 (Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional) e implementado sob os auspícios da Lei 5692/71 (Lei das Diretrizes e Bases para o Ensino do Primeiro e do Segundo Grau), que preconiza um movimento de degradação do ensino oferecido aos alunos admitidos nas escolas  públicas, sobretudo, travestido de democratização do acesso às séries correspondentes aos antigos ginásios e cursos secundários, subsequentes às series iniciais, destinadas a alfabetização das pessoas oriundas das camadas formadas pelos trabalhadores cada vez mais presentes nas grandes, médias e pequenas aglomerações urbanas, acrescido daqueles que se originavam de camadas populares forjadas a partir dos indivíduos procedentes das roças e dos grotões mais distantes e díspares do Brasil. Tal degradação consistia em se oferecer cada vez menos conteúdos propedêuticos correspondentes à série cursada, postergando a aplicação  de ampliação dos graus de dificuldades para as etapas seguintes, deixando para trás aqueles que não conseguissem ultrapassar as etapas de formação, igualmente, penalizando aqueles outros que chegassem nas mais imediatas, porém, sem conseguirem ultrapassar a subsequente, deixando sempre uma lacuna no processo formativo de quem não alcançasse, por alguma razão, o último ponto da caminhada. Ou seja: o que se deveria ser aprendido no primeiro grau, nível 2, ficaria para o segundo grau; o que ali deveria se aprender, seria postergado para o Ensino Superior, no escopo da graduação; e assim por diante.

Portanto, conforme dissera inúmeras vezes o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), em entrevistas publicadas nos mais diversos órgãos de imprensa e, em conferências feitas em diversos momentos de sua vida, aquilo não era uma anomalia do sistema; aquilo era o próprio sistema, em seu perfeito funcionamento, conforme fora projetado. À medida em que os filhos dos trabalhadores ganhavam o acesso à escolarização, através de uma significativa ampliação de oferta de vagas nas novas escolas públicas que pareciam promover uma certa “universalização” do acesso à educação gratuita, aquela era tornada cada vez mais precária e enfraquecida em seu rigor, em seus métodos de ensino e de avaliação da aprendizagem, de modo que, salas com quarenta e cinco ou cinquenta alunos; professores ainda em processo de formação para aquele tipo de atuação – visto que, grande parte deles, era egressa do ensino Normal, popularmente conhecido como magistério -, tornava a tarefa de escolarização e de formação futuros “profissionais” cada vez mais limitada ao básico que lhes permitisse um acesso a atividades laborais cada vez mais especializadas, sem que tivessem aquilo que se convencionou denominar de “cultura geral”, que lhes permitisse pensar além da superfície, bem como, compreender aquilo que viesse a ler.

É neste ambiente de escola cada vez mais universal e frágil, que se desenrola o viver cotidiano de José Mário e, que são forjados os seus limites de compreensão do mundo à sua volta. Para além dos seus outros desafios, quais sejam o seu ambiente desfavorável do ponto de vista da aquisição de elementos culturais que lhe permitissem o acúmulo e a troca dos “bens simbólicos”, conforme preconiza o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), o seu acesso rarefeito a outras leituras, para além daquelas que lhe eram proporcionadas pela distribuição gratuita de livros em Braille, proporcionado pela então Fundação para o Livro do Cego no Brasil, bem como o seu já aludido ingresso tardio no processo de escolarização, ensejou algumas tentativas de apreensão de conteúdos, encontrados em obras com um nível de complexidade tal que, embora ele houvesse conseguido ler toda ela, dali nada retirara, no que tange à compreensão do seu propósito, não obstante se tratar de um autor e de uma temática que ele sequer ouvira falar, nem mesmo de forma aligeirada.

Na altura dos seus dezessete ou dezoito anos, naqueles momentos de interrupções já comentados aqui, que vivera em relação à sétima série do então primeiro grau, José Mário, mesmo possuindo um baixíssimo nível de abstração – se é que possuía algum – arriscara a leitura de Erich Fromm (1900-1980), percorrendo todas as páginas de “Análise do Homem”, a despeito de nada do que fora lido, ter sido compreendido, ainda que minimamente. O precoce leitor, sequer sabia tratar-se de uma obra voltada à psicanálise, com um viés freudiano e, com uma conexão com o pensamento marxista. Aliás, ele sequer sabia da existência de tais pensadores; muito menos, da influência que eles exerceram sobre um grande número de outros que, não só inseriram os seus postulados naquilo que preconizavam, como divulgava por meio das suas reflexões, o pensamento e as premissas teóricas e metodológicas por meio das quais pensavam o homem e a sociedade por ele forjada. Tanto é assim que, uma outra obra de Erich Fromm que lhe caíra nas mãos, não arriscou a leitura, visto não ter quaisquer elementos que o ajudasse no propósito de alcançar uma compreensão dos pressupostos nela contidos – sem falar que a sua leitura era mecânica, conforme já se abordou em outro arrazoado desta série, o que significa, em geral, que o seu propósito era apenas ler, como se fosse um meio de passar o tempo, ocupando-se com alguma atividade.

A obra de Erich Fromm que ele não quisera arriscar a leitura, mesmo que de forma mecânica e visando passar o tempo, era “Medo a Liberdade”. O efeito de uma leitura feita, sem que houvesse qualquer vestígio de compreensão dela, em quaisquer dos seus aspectos, fez com que ele sequer abrisse aquelas páginas para percorrer as suas linhas, considerando-se que, até mesmo uma leitura mecânica tem os seus limites. Tanto é assim que, como poucas vezes o fez, aquelas obras foram passadas adiante e, em conversa com um seu contemporâneo dos tempos de internato, fazendo-lhe saber de sua disposição de assim o fazer, Carlos Castro, aquele seu interlocutor, interessou-se pela oferta e, se dirigiu até o lugar de moradia de José Mário, recebendo dele os ditos volumes de “Análise do Homem” e de  “Medo à liberdade”, que, acreditava, ele tiraria melhor proveito do seu conteúdo.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com – outono de 2025. 

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