domingo, 4 de maio de 2025

As linhas e as entrelinhas – I.

As leituras eram muitas mas, a compreensão do que lia era rasa – Primeira parte.

 

A partir do arrazoado que o arguto leitor ora tem diante de si, este garatujador pretende discorrer sobre um processo que envolveu todo o caminhar formativo de José Mário, tanto enquanto pessoa que se estaria preparando para o “convívio social”, quanto na condição de “cidadão” que deveria ser preparado para ser inserido no contexto da vida econômica, cultural, política e, sobretudo, socialmente ativa. No entanto, saliente-se de passagem – haja visto o que se tem percebido nas atitudes e formas de pensar, tanto dos indivíduos, quanto de diversos grupos deles, pelo menos nos últimos quinze anos  do século XXI (este mesmo da vertiginosa ascensão das quase inumeráveis tecnologias) –, que as fragilidades com as quais José Mário precisou lidar no transcurso dos anos em que ele fora adestrado para aquela tão decantada “vida em sociedade” e , que ao longo dos arrazoados que se pretende construir serão comentados mais amiúde, não lhe dizia respeito apenas a si, enquanto um dos elementos sobre os quais eram incutidos os fundamentos teóricos e metodológicos inerentes àquele tipo de “ajuste” ao “viver coletivo”. Com o passar dos anos, ficou claro que havia um projeto de construção de “cidadãos” cordatos, acríticos, politicamente apáticos e prontos para serem levados para onde soprassem os ventos impulsionados pelos meios de comunicação. Um enfraquecimento dos sistemas de ensino era sentido nitidamente, mas, camuflado sob diversas camadas de ideais elitistas difundidos, e infundidos por meio dos muitos instrumentos sociais e pelas eficazes ferramentas comunicacionais, encobrindo os reais objetivos de sua implementação. O fracasso observado nos processos de ensino cada vez mais acessíveis às camadas inferiores da formação social brasileira, paradoxalmente à expansão de sua abrangência a todo o território nacional, bem como a abertura da escola para receber em seu bojo os filhos dos trabalhadores e, por meio do “Mobral”, até mesmo os seus pais, diriam Darcy Ribeiro (1922-1997) e José Carlos Libânio (1945-), não era se não um projeto bem sucedido, pensado e executado em favor das elites que diziam ser sua a iniciativa de “alfabetizar” a população. Não se dizia porém, que aquele “alfabetizar”, tanto possuía um limite, como deveria atender a objetivos bem definidos por aquela elite, que, evidentemente, não estava claro para grande parte dos executores, muito menos, para aqueles aos quais se destinava a iniciativa de se reduzir os índices de analfabetismo em todos os rincões do Brasil, que era movido sob a batuta dos Generais/presidentes, coadjuvados pelos seus fiéis “cães-de-guarda”.

Portanto, a formação escolar daquele aluno que em sua maioria, com muito esforço e resignação logrou concluir a sua formação básica, apresenta grande lacuna estrutural, visto não o ter dotado de ferramental que ele possa instrumentalizar os processos de codificação e congruente decodificação, para que a mensagem não seja apenas lida mas, sim, seja percebida e compreendida na sua inteireza. Aquele aluno, desta forma, experimenta algumas dificuldades de compreensão dos textos que leu – ou lê – que por força da obrigação das tarefas escolares, quer por força de um hábito salutar que acabou por adquirir, malgrado o pouco ou nenhum estímulo recebido; apesar dos custos para aquisição de títulos, ou para a aceder aos lugares onde possa encontrar livros e/ou periódicos que lhe atenda a tal necessidade e/ou desejo, inclusive e sobretudo, durante o tempo de escolarização. É assim que, contrariando um dos elementos chave da premissa propugnada pela teoria da comunicação, se ergue uma barreira entre o “comunicador” e o “comunicando”, se interpondo entre ambos uma nuvem que acaba por dificultar por sua opacidade, a compreensão da mensagem comunicada, erguendo um hiato entre o que é escrito pelo emissor de uma mensagem dada e, o leitor, que, embora reconheça o conjunto das palavras que compõem aquela mensagem que lhe foi dirigida, havendo, entretanto, uma interrupção na compreensão da mensagem lida.

Tomando-se o caso de José Mário – que, como se salientou, não estava sozinho naquele navegar social nas águas turvas e tormentosas marés brasileiras das décadas que sucederam ao Golpe Militar de 1960 – e, como foi apontado há algumas postagens, quando se procurou desenvolver algumas digressões sobre “uns tempos idos”, ele refletia bem aquilo que foi esboçado há algumas linhas. Foi dito na primeira das “Seis Digressões”, publicada no início deste ano em curso, que “[...], José Mário possuía um elevado grau de dificuldade para ir além da superfície da compreensão de texto, pois, apesar de ler algumas das excelentes matérias publicadas pela revista Realidade – aquelas transcritas na revista Relevo (em Braille) -, não conseguia ir muito além do “significado das palavras”. A profundidade daquelas matérias era quase que impenetrável para ele”. Portanto, aquele leitor voraz, reconhecia plenamente as palavras; mas, não conseguia estabelecer os nexos entre elas e o discurso que as impregnava. Não é demais ressaltar que  José Mário fora apresentado à leitura, na precocidade dos seus onze anos completados em finais de 1971. Também cabe lembrar, de passagem, que, àquela altura, quando deveria já ter ingressado na quinta série, ele ainda se encontrava no terceiro ano do nível 1, do primeiro grau – equivalente ao fundamental 1 –, o que diz muito sobre o descompasso entre a idade cronológica e a idade escolar, que fizera parte de toda a sua trajetória. Malgrado aquele descompasso, a sua idade cronológica já seria suficiente para compreender melhor a mensagem recebida em forma de texto: obviamente, se dispusesse dos códices sociais e culturais que lhe inferisse os elementos que lhe permitisse uma decodificação dos escritos que lhe passaram sob os dedos. Ao contrário do que era esperado, a sua leitura não era capaz de ultrapassar os signos silábicos e os construtos fonéticos, malgrado o material que lhe houvesse passado pelas mãos, exibissem algum rigor literário.

Por exemplo, ele leu uma reportagem transcrita da revista Realidade, que falava sobre o “Assalto ao Trem Pagador”, impressa em Braille pela Fundação Para o Livro do Cego no Brasil, em sua revista Relevo e, o máximo que ele reteve e absorveu com alguma destreza, repousou na ousadia e no planejamento da ação dos executores da façanha. No entanto, o discurso embutido naquele texto – como por exemplo a motivação da ação dos ladrões e, sobretudo, a motivação daquela reportagem de Realidade ser a escolhida para a transcrição em Relevo, em detrimento de alguma outra matéria daquela prestigiada revista (embora, ele nada soubesse sobre ela, naquela ocasião) – ele sequer atinou. Contentou-se em fazer uma leitura acrítica e rasa, limitando-se a uma espécie de  “torpor” por ter tido acesso a um texto que outros brasileiros, que enxergam, também tiveram.

Também se ressaltou na aludida postagem de janeiro deste ano, que “A sua formação escolar era quase sem livros, pois eles lhes eram inacessíveis, sobretudo, em transcrição Braille, embora [...]” o seu acesso à produção “[...] literária fosse mais ampla, pela mesma razão inversa, isto é, havia uma” transcrição “e uma distribuição de livros em Braille, que abrangia as diversas criações literárias, sobretudo, aquelas do século XIX”, que ele tateou com avidez, não obstante aquela avalanche de livros lidos, não ter sido suficiente para formar nele um espírito crítico, pronto para inferir e abstrair os elementos mais fundamentais contidos nas excelentes obras que passaram por suas mãos. Ainda conforme se aludiu na referida postagem pretérita, ao que parece, se formou um grande fosso entre o volume de obras lidas e os níveis de compreensão delas, por parte de quem as leu. Assim:

“Malgrado o acesso a um largo número de obras e autores e, a voracidade com que ele percorria as páginas e as partes em que eram divididos os livros em Braille que lhe caíam nas mãos, aquela leitura era superficial, mecânica, emotiva e, quase sempre, acrítica, pouco ou nada reflexiva, o que significava não alcançar o objetivo esperado pelo contato com tão vasta e diversificada gama de autores e o seu modo de pensar, no que tange à construção de uma percepção e à uma leitura do mundo que o cercava”.

Portanto, ao contrário daquilo que era de se esperar de tal afinco em percorrer as muitas obras que lera durante mais ou menos treze anos, é possível assegurar que não houve uma sincronia entre o lido e o compreendido. Este foi o tempo que durou a grande expansão observada na transcrição e na  distribuição de ogras em braile,  que teve como maior propulsora, a Fundação para o Livro do Cego no Brasil,. Tal movimento se poderia situar entre 1960 e 1990 e, que teve o seu ímpeto enfraquecido, a partir da segunda metade da década de 1970, entre outras razões, por conta das duas crises do petróleo, acarretando, em cadeia, uma forte alta nos preços do papel – atingindo em cheio a produção do livro em Braille.

 

Alagoinhas – 04 de maio de 2025

 

José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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