As leituras eram muitas mas, a compreensão do que lia era rasa
– Primeira parte.
A partir do arrazoado que o arguto leitor ora tem diante de
si, este garatujador pretende discorrer sobre um processo que envolveu todo o
caminhar formativo de José Mário, tanto enquanto pessoa que se estaria
preparando para o “convívio social”, quanto na condição de “cidadão” que
deveria ser preparado para ser inserido no contexto da vida econômica,
cultural, política e, sobretudo, socialmente ativa. No entanto, saliente-se de
passagem – haja visto o que se tem percebido nas atitudes e formas de pensar,
tanto dos indivíduos, quanto de diversos grupos deles, pelo menos nos últimos
quinze anos do século XXI (este mesmo da
vertiginosa ascensão das quase inumeráveis tecnologias) –, que as fragilidades
com as quais José Mário precisou lidar no transcurso dos anos em que ele fora
adestrado para aquela tão decantada “vida em sociedade” e , que ao longo dos
arrazoados que se pretende construir serão comentados mais amiúde, não lhe
dizia respeito apenas a si, enquanto um dos elementos sobre os quais eram incutidos
os fundamentos teóricos e metodológicos inerentes àquele tipo de “ajuste” ao “viver
coletivo”. Com o passar dos anos, ficou claro que havia um projeto de
construção de “cidadãos” cordatos, acríticos, politicamente apáticos e prontos
para serem levados para onde soprassem os ventos impulsionados pelos meios de
comunicação. Um enfraquecimento dos sistemas de ensino era sentido nitidamente,
mas, camuflado sob diversas camadas de ideais elitistas difundidos, e
infundidos por meio dos muitos instrumentos sociais e pelas eficazes
ferramentas comunicacionais, encobrindo os reais objetivos de sua implementação.
O fracasso observado nos processos de ensino cada vez mais acessíveis às
camadas inferiores da formação social brasileira, paradoxalmente à expansão de
sua abrangência a todo o território nacional, bem como a abertura da escola para
receber em seu bojo os filhos dos trabalhadores e, por meio do “Mobral”, até
mesmo os seus pais, diriam Darcy Ribeiro (1922-1997) e José Carlos Libânio
(1945-), não era se não um projeto bem sucedido, pensado e executado em favor
das elites que diziam ser sua a iniciativa de “alfabetizar” a população. Não se
dizia porém, que aquele “alfabetizar”, tanto possuía um limite, como deveria
atender a objetivos bem definidos por aquela elite, que, evidentemente, não
estava claro para grande parte dos executores, muito menos, para aqueles aos
quais se destinava a iniciativa de se reduzir os índices de analfabetismo em
todos os rincões do Brasil, que era movido sob a batuta dos Generais/presidentes,
coadjuvados pelos seus fiéis “cães-de-guarda”.
Portanto, a formação escolar daquele aluno que em sua
maioria, com muito esforço e resignação logrou concluir a sua formação básica, apresenta
grande lacuna estrutural, visto não o ter dotado de ferramental que ele possa
instrumentalizar os processos de codificação e congruente decodificação, para
que a mensagem não seja apenas lida mas, sim, seja percebida e compreendida na
sua inteireza. Aquele aluno, desta forma, experimenta algumas dificuldades de
compreensão dos textos que leu – ou lê – que por força da obrigação das tarefas
escolares, quer por força de um hábito salutar que acabou por adquirir,
malgrado o pouco ou nenhum estímulo recebido; apesar dos custos para aquisição
de títulos, ou para a aceder aos lugares onde possa encontrar livros e/ou
periódicos que lhe atenda a tal necessidade e/ou desejo, inclusive e sobretudo,
durante o tempo de escolarização. É assim que, contrariando um dos elementos
chave da premissa propugnada pela teoria da comunicação, se ergue uma barreira
entre o “comunicador” e o “comunicando”, se interpondo entre ambos uma nuvem
que acaba por dificultar por sua opacidade, a compreensão da mensagem
comunicada, erguendo um hiato entre o que é escrito pelo emissor de uma
mensagem dada e, o leitor, que, embora reconheça o conjunto das palavras que
compõem aquela mensagem que lhe foi dirigida, havendo, entretanto, uma
interrupção na compreensão da mensagem lida.
Tomando-se o caso de José Mário – que, como se salientou,
não estava sozinho naquele navegar social nas águas turvas e tormentosas marés brasileiras
das décadas que sucederam ao Golpe Militar de 1960 – e, como foi apontado há
algumas postagens, quando se procurou desenvolver algumas digressões sobre “uns
tempos idos”, ele refletia bem aquilo que foi esboçado há algumas linhas. Foi
dito na primeira das “Seis Digressões”, publicada no início deste ano em curso,
que “[...], José Mário possuía um elevado grau de dificuldade para ir além da
superfície da compreensão de texto, pois, apesar de ler algumas das excelentes
matérias publicadas pela revista Realidade – aquelas transcritas na revista
Relevo (em Braille) -, não conseguia ir muito além do “significado das
palavras”. A profundidade daquelas matérias era quase que impenetrável para ele”.
Portanto, aquele leitor voraz, reconhecia plenamente as palavras; mas, não
conseguia estabelecer os nexos entre elas e o discurso que as impregnava. Não é
demais ressaltar que José Mário fora
apresentado à leitura, na precocidade dos seus onze anos completados em finais
de 1971. Também cabe lembrar, de passagem, que, àquela altura, quando deveria já
ter ingressado na quinta série, ele ainda se encontrava no terceiro ano do
nível 1, do primeiro grau – equivalente ao fundamental 1 –, o que diz muito
sobre o descompasso entre a idade cronológica e a idade escolar, que fizera
parte de toda a sua trajetória. Malgrado aquele descompasso, a sua idade cronológica
já seria suficiente para compreender melhor a mensagem recebida em forma de
texto: obviamente, se dispusesse dos códices sociais e culturais que lhe
inferisse os elementos que lhe permitisse uma decodificação dos escritos que
lhe passaram sob os dedos. Ao contrário do que era esperado, a sua leitura não
era capaz de ultrapassar os signos silábicos e os construtos fonéticos, malgrado
o material que lhe houvesse passado pelas mãos, exibissem algum rigor
literário.
Por exemplo, ele leu uma reportagem transcrita da revista Realidade,
que falava sobre o “Assalto ao Trem Pagador”, impressa em Braille pela Fundação
Para o Livro do Cego no Brasil, em sua revista Relevo e, o máximo que ele
reteve e absorveu com alguma destreza, repousou na ousadia e no planejamento da
ação dos executores da façanha. No entanto, o discurso embutido naquele texto –
como por exemplo a motivação da ação dos ladrões e, sobretudo, a motivação
daquela reportagem de Realidade ser a escolhida para a transcrição em Relevo,
em detrimento de alguma outra matéria daquela prestigiada revista (embora, ele
nada soubesse sobre ela, naquela ocasião) – ele sequer atinou. Contentou-se em
fazer uma leitura acrítica e rasa, limitando-se a uma espécie de “torpor” por ter tido acesso a um texto que
outros brasileiros, que enxergam, também tiveram.
Também se ressaltou na aludida postagem de janeiro deste
ano, que “A sua formação escolar era quase sem livros, pois eles lhes eram
inacessíveis, sobretudo, em transcrição Braille, embora [...]” o seu acesso à
produção “[...] literária fosse mais ampla, pela mesma razão inversa, isto é,
havia uma” transcrição “e uma distribuição de livros em Braille, que abrangia
as diversas criações literárias, sobretudo, aquelas do século XIX”, que ele
tateou com avidez, não obstante aquela avalanche de livros lidos, não ter sido
suficiente para formar nele um espírito crítico, pronto para inferir e abstrair
os elementos mais fundamentais contidos nas excelentes obras que passaram por
suas mãos. Ainda conforme se aludiu na referida postagem pretérita, ao que
parece, se formou um grande fosso entre o volume de obras lidas e os níveis de
compreensão delas, por parte de quem as leu. Assim:
“Malgrado o acesso a um largo número de obras e autores e, a
voracidade com que ele percorria as páginas e as partes em que eram divididos
os livros em Braille que lhe caíam nas mãos, aquela leitura era superficial,
mecânica, emotiva e, quase sempre, acrítica, pouco ou nada reflexiva, o que
significava não alcançar o objetivo esperado pelo contato com tão vasta e
diversificada gama de autores e o seu modo de pensar, no que tange à construção
de uma percepção e à uma leitura do mundo que o cercava”.
Portanto, ao contrário daquilo que era de se esperar de tal
afinco em percorrer as muitas obras que lera durante mais ou menos treze anos, é
possível assegurar que não houve uma sincronia entre o lido e o compreendido. Este
foi o tempo que durou a grande expansão observada na transcrição e na distribuição de ogras em braile, que teve como maior propulsora, a Fundação
para o Livro do Cego no Brasil,. Tal movimento se poderia situar entre 1960 e
1990 e, que teve o seu ímpeto enfraquecido, a partir da segunda metade da
década de 1970, entre outras razões, por conta das duas crises do petróleo,
acarretando, em cadeia, uma forte alta nos preços do papel – atingindo em cheio
a produção do livro em Braille.
Alagoinhas – 04 de maio de 2025
José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente; quero saber o que você pensa!