Obras e autores – Parte I.
O arrazoado que o paciente leitor ora tem diante de si, é
mais um dos muitos frutos que se pode obter através de um exercício de
rememoração, exercício este que, conforme já se tem deixado claro,, resulta de
um conjunto de escolhas que são feitas por quem lembra, do que lembrar, do que
trazer à superfície; do que silenciar ou do que esquecer. Tal exercício feito
por quem lembra, permite evocar alguns elementos que se encontram cobertos por
muitas camadas de tempo e por muitas camadas de experiências que se sobrepõem
ao passado trazido à memória de quem se propõe a lembrar e a escrever sobre
aquilo que lembra. Evidentemente que as escolhas do que lembrar e do que
esquecer, acabam por sugerir um trabalho do espírito, que traz à lume experiências
por ele vividas em um passado mais ou menos distante do presente – ou volta a
encobrir com novas camadas de esquecimento ou de silenciamento – abrindo novas
possibilidades para outras incursões em outros momentos de lembrares arrancados
das sombras de um passado que precisa evocar com ainda mais força e diligência.
Conforme se vem dizendo há algumas páginas, as dificuldades
encontradas por José Mário, no tocante à compreensão daquilo que se dispusera a
ler, no temo que era construído o seu processo de formação escolar, estava
relacionada ao modo como aquele processo era conduzido. Nele não estava
presente a construção de um espírito crítico capaz de discernir entre o “dito”
e o não “dito”, ao se apropriar de um texto requerido para a elaboração de um
trabalho escolar, para uma reflexão a mais simplória ou, ao se valer de uma
obra mais completa e complexa para um exame mais aprofundado, afim de fazer
mais rico e amplo o seu corolário de elementos constitutivos da vida em
agrupamentos humanos, bem como ampliar a sua compreensão daquela sociedade na
qual se pretendia inserir e, compreensão que se relacionava com as outras
dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais, por meio dos quais,
pudesse apreender as suas formulações, as suas proposições ou, quiçá, as suas
premissas mais fundamentais, para entender os diversos contextos do mundo onde
vivia e com o qual precisaria interagir, quer enquanto indivíduo, quer enquanto
pertencente a um todo coletivo. No entanto, o que se lhe era dado, consistia pouco
mais do que propiciar ao educando a possibilidade de reconhecer os caracteres
alfabéticos, fonéticos, silábicos e receber alguns fundamentos gramaticais, que
pudesse permitir entrar em contato com o texto a ser lido, apenas em sua
conformação aparente e perceptível ao tato – no caso dos leitores por meio do
sistema Braille – o que o tornaria um conhecedor apenas superficial do texto ou
do conjunto de textos que lhe caísse nas mãos, como se pode concluir, por meio
do que até aqui se tem elaborado.
Assim, a abordagem que se pretende desenvolver aqui, diz
respeito ao modo como José Mário apresentava uma grande dificuldade em lidar
com algumas obras literárias que se lhe foram apresentadas ao espírito. Em
primeiro lugar, ele não conseguira estabelecer um nexo entre o que estava
diante de si no formato de um livro a ser lido a partir de um ponto de vista
ficcional, com o seu cotidiano, tanto no que respeitava ao conjunto dos hábitos
e procederes reais do seu ambiente familiar, quanto no que dizia respeito
àquilo que se lhe apresentava no ambiente escolar, ou no convívio/contato com
amigos, vizinhos, coetâneos ou ainda, moradores do mesmo espaço citadino. Ele
se esforçava para se ver “representado” naquelas tramas, vivamente
desenvolvidas em grande parte dos livros que lia. Daí, ele ter se deparado com
obras que, por não as compreender minimamente em seu intento, acabara por
fechar as narrativas sem concluir a apreensão do seu conteúdo. Uma daquelas
obras era “Romance de um Moço Pobre”, escrito pelo dramaturgo francês Octavio
Feuillit (1821-1890),que recebera em casa, mediante o seu pedido à Fundação
para o Livro do Cego No Brasil. O título lhe sugeria um enredo que se
aproximasse do seu viver pessoal. Acreditava que o dito romance se pudesse
aplicar àquilo que experimentava no seu dia a dia. Mal compreendera as
primeiras linhas, ou com um pouco mais de esforço, talvez tenha avançado por
mais algumas páginas e, por evidente que não se poderia perceber nelas
representado, acabara por deixar a sua leitura de lado, embora, a tenha tentado
retomar por mais duas ou talvez, três vezes, sem sucesso.
Em segundo lugar, ele ainda não distinguia os estilos
literários – contos, crônicas, romances –, ainda menos , conhecia as distintas
fases pelas quais se podia classificar a produção literária – indigenismo, naturalismo,
romantismo, realismo e assim por diante. Isto fez com que os livros fossem
“devorados” como sendo tudo “romance” – novelas -, principalmente, aqueles que
tivessem os finais esperados e desejados pelo leitor. Três obras de Monteiro
Lobato (1882-1948) que ele abrira, não conseguira entender e, por isto as
fechara sem concluir o percurso pelas suas páginas, dão bem a dimensão daquelas
dificuldades. A primeira delas foi “Urupês”, que lhe caiu nas mãos por meio dos
catálogos das obras transcritas em Braille que, periodicamente era enviado para
os inscritos nos registros de distribuição das obras disponibilizadas pela
Fundação para o Livro do Cego NO Brasil. Ao receber a obra em causa, partiu
ávido para se apropriar do seu conteúdo. No entanto, as primeiras páginas lhe
pareceram por demais obscuras e, logo abandonou a empreitada. Acreditava se
tratar de mais um “romance (novela)”, razão pela qual naufragara logo nas
primeiras tentativas de viajar naqueles mares imbricados de propósitos – nem sempre
subliminares – mas, que para ele, não faziam qualquer sentido! Não sabia
tratar-se de um compilado de contos e crônicas do autor, publicado em 1918,
que, se tivesse o conhecimento do contexto dos escritos, bem como do que
motivara fossem reunidos naquele volume, talvez, quem sabe, pudesse não só ler
toda a obra, quanto compreender a sua razão de ser.
A segunda das obras de Lobato que José Mário abrira e não
concluíra a sua leitura foi “Cidades Mortas”, que, aliás, nem mesmo o título da
obra ele conseguiu entender, do modo como deveria. Para ele, as tais “Cidades
Mortas”, de fato seriam mesmo mortas, no sentido mais literal do termo. Outra
vez, ele esbarrou na incompreensão do contexto daqueles escritos, por se tratar de uma coletânea de reflexões sobre as
mudanças operadas no Brasil que passava do século XIX para o XX e as
implicações econômicas, sociais, políticas e culturais de tal passagem. Outra
vez, faltou àquele leitor superficial, as informações que lhe oferecessem o
contexto em que foram reunidos os textos ali encontrados, bem como, as
informações que lhe permitissem saber se tratar de um estilo literário
diferente das novelas que, acreditava, compreendia plenamente o seu desenrolar.
A terceira das obras de Lobato que José Mário não concluiu a
leitura, lhe chegara as mãos pela mesma forma que as duas anteriores. Ao pedir
que lhe fosse enviada, ele, uma vez mais, acreditara se tratar de um “romance
(novela”, embora àquela altura dos seus cerca de quinze, dezesseis ou dezessete
anos, a palavra utilizada como título do livro, possuísse para ele uma
conotação diferente daquela que apresentava, pois, no meio em que habitava, era
uma expressão pejorativa – “nigrinha”, sem registro no dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa “, que apresentou para
aquele leitor alguma dificuldade de transliteração para a expressão que dava título ao arrazoado
em causa -, que significava uma moça desprovida de respeito – no que tange à
moral e aos costumes – de “má fama” ou de conduta social (principalmente,
sexual) pouco recomendável. Tratava-se de “Negrinha”, cuja leitura fora
interrompida no ponto em que uma menina de sete anos, sofre castigos cruéis por
parte de uma senhora, que lhe introduz um ovo quente na boca; que lhe queima a
língua com uma colher em brasa. Ali, o leitor desprovido dos elementos que lhe
inferissem a contextualização necessária para compreender o enredo, acaba por
se decepcionar e interrompe a leitura para não mais a retomar por todo o tempo
que durara a sua formação escolar, daquilo que ele acreditava se tratar de uma
“história”, ao menos, fosse lúdica, tratando-se de ter sido uma criança tomada como
protagonista.
Desta forma, uma vez mais, aquele leitor desprovido de uma
compreensão das entrelinhas e, ainda menos capacitado para apreender as muitas subliminaridades
embutidas no texto que intentara ler, não sabia tratar-se de um conto – nem
mesmo que ali havia outros dois ou três contos coligidos – que pretendia dar a
conhecer algumas das maneiras como eram tratadas as pessoas advindas do sistema
escravista que vigorara no País até cerca de trinta e dois anos antes de sua
publicação. Fosse ele adestrado no processo de ler para além das palavras,
compreenderia, por certo, que Lobato empreendia uma crítica à sociedade
pós-escravista do início do século XX e, que procurava demonstrar que os
principais traços do agir e do pensar social de uma grande parte das elites
brasileiras, ainda estavam assentados nos pilares do trabalho escravo,
apontando para as atitudes levadas a efeito no trato com as pessoas que foram egressas
da escravidão que constituíra a formação econômica e social do Brasil por mais
de três séculos, o que indicava uma permanência latente das ideias que se
desenvolveram em relação ao elemento negro que conformava aquela sociedade que
se queria “moderna”.
Alagoinhas – 25 de maio de 2025.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
Jorge, infelizmente, essas dificuldades que foram de José Mário, no período inicial de formação, foram também dos leitores que não precisavam do BRAILLE, pois o estudo do texto, não incluía a análise do discurso, mas, apenas, os elementos da caráter gramatical.
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