sábado, 17 de maio de 2025

As linhas e as entrelinhas – II.

 

As leituras eram muitas mas, a compreensão do que lia era rasa –Segunda parte.

 

Conforme o que se escreveu na primeira parte destes garatujares, o processo de escolarização sob o qual José Mário deveria ter sido adestrado para intentar se inserir – ou seria “ser inserido”? – foi concebido e desenvolvido sobre fundamentos rasos e com sedimentação frágil. Também, já se procurou apontar algumas das razões pelas quais assim se implementou o aludido processo, marcado pelo caráter excludente, de uma parte, por questões econômicas e sociais gerais, que permeavam toda a camada formada por trabalhadores temporários, informais e, quando formais, com salários baixos, o que correspondia ao contingente populacional mais preponderante da formação social brasileira e baiana em geral e, claro, alagoinhense em particular, e, de outra parte, pelas circunstâncias inerentes à sua condição sensorial, que, saliente-se de passagem, se fez somar com os demais condicionantes do seu viver pessoal e familiar, o que resultou em uma formação geral insuficiente para que ele pudesse ler – o texto e o seu contexto -, entender o que lia, compreender o que lia, abstrair a essência do que lia, apreender o que lia e, por fim, dar uma interpretação daquilo que lia, tanto para si mesmo, quanto para outrem.

Portanto, por meio do sistema Braille – modo de leitura e de escrita desenvolvido para o uso das pessoas cegas –, José Mário fora ensinado a reconhecer as letras, a identificar as palavras por elas formadas, os períodos, parágrafos e os conjuntos textuais por elas construídos, de modo a fazer dele um leitor voraz. No entanto, ele não fora dotado das ferramentas inerentes ao pensar o que se leu; não teve o espírito forjado para o questionamento do que leu; nem foi dotado das ferramentas que lhe permitissem inferir ou desenvolver sistemas de ilações que lhe dessem algumas pistas da razão de ser daquilo que ele leu. Ainda tomando como exemplo o periódico em Braille que lhe passara pelas mãos, durante todo o tempo que circulou – claro, a partir do momento que a ele chegou o primeiro exemplar, 1972 – a revista “Relevo” que, em geral, trazia matérias publicadas na célebre revista “Realidade” – que aliás, já passava por um filtro para determinar qual das matérias da Realidade seria transcrita em Braille para os leitores cegos; filtro que, ao menos José Mário não sabia existir, muito menos, qual o critério adotado para eleger umas e descartar outras –, não obstante a sua pouca idade quando passou a receber em casa o aludido periódico, diante da ausência de um espírito crítico no seu processo formativo, tais leituras acabavam por ser meramente recreativas ou, como ele dizia, uma forma de fazer passar o tempo que teimava em arrastar-se no seu passo já lento dos seus dias e noites longas e sem grandes variações dos ires e vires dos anos em que a expectativa era a chegada da vida adulta, para poder ingressar no mercado de trabalho. Até lá, eram as leituras, tomadas como passatempo, que lhe permitiam vencer as muitas e longas horas insones que se lhe apresentavam inexoráveis em várias ocasiões do seu caminhar.

É neste sentido que algumas matérias que lera naquelas tardes ou noites do seu cotidiano já pretérito, voltam à sua memória, esmigalhadas pelo alongar dos anos que separam a adolescência do leitor e a sua maturidade. Uma delas já fora mencionada no primeiro arrazoado desta série – aquela que tratava do famoso assalto ao trem pagador inglês –, mais duas poderiam ser aqui evocadas. A primeira delas, tratava daquilo que os redatores de Realidade chamaram de “a Corrida do ouro”. Provavelmente, a matéria se referisse aos contingentes humanos que acorreram em grandes levas, à lugares onde pudessem prospectar “ouro”, de modo a se tornarem ricos – talvez, seja a busca mais insana dos terráqueos (que também pode ter servido de inspiração para a teledramaturgia brasileira, naquele mesmo ano de 1974, claro, em um outro contexto: o do dinheiro) –, quiçá, a matéria apontasse para os casos mais emblemáticos daquele fenômeno social, político e econômico desencadeados nos séculos de ocupação europeia na América. Primeiro, foi a implementada pela colonização luso-hispânica nos primeiros três séculos da ocupação do “Novo Mundo” e, segundo, aquela que foi desencadeada no oeste norte-americano, por volta do século XIX, marcadamente na Califórnia, que resultou, entre outras coisas, naquilo que se convencionou denominar “abertura para o oeste”, até ali, ainda pouquíssimo explorado pelos colonizadores da primeira nação independente do continente. Crê-se não ser de pouca valia ressaltar que, aquele leitor, não dispunha de elementos contextuais para elaborar qualquer das abstrações aqui elencadas.

A segunda das matérias evocadas para sustentar a premissa de que aquele leitor mal entrado na adolescência e, ainda cursando a terceira série do então primeiro grau, portanto, ainda tenro no processo de formação escolar, que apenas lera para passar tempo e, não, para ganhar – ou construir – uma massa crítica que lhe permitisse compreender melhor o mundo que então o cercava, tratava da “primeira crise do petróleo”, desencadeada pelos principais produtores mundiais daquela que era a fonte energética mais importante para a economia mundial de então, o que desencadeou outras crises, como um efeito cascata, que, entre tantas que se poderia mencionar, acabou por provocar uma lenta, porém crescente escassez de vários insumos indispensáveis ao meio cultural, sobretudo, à produção e a circulação de papel – inclusive o papel Braille, cujo fornecimento se dava por meio de importação; o mesmo se deu com o chamado “papel imprensa” – o que levou a  revista “Relevo” a sofrer pequenos atrasos em sua distribuição; depois, evoluindo para atrasos bem mais significativos; até, por fim, encerrar de uma vez a sua produção, circulação e distribuição, deixando grande parte de seus leitores, entre eles, José Mário, sem ter o que ler, nem mesmo para passar o tempo. Sem conseguir atinar como aquela crise energética acabara por interferir na circulação de Relevo; sem compreender como aquele evento econômico interferira, inclusive, na distribuição de papel Braille para o seu uso escolar, ficava claro que ele não só não conseguia atinar e nem compreender, exatamente por não conseguir abstrair do contexto, a incidência daquela crise no seu papel Braille, se, como ele perguntara de si para consigo e, após algumas poucas reflexões, afirmara como resposta – apesar de não possuir completa segurança para tanto -, “o papel não era feito de petróleo”, concluiu peremptório.

Entretanto, o que ele não sabia era que, o processo industrial, que resultava no produto papel – qualquer papel; inclusive, o papel imprensa, como era chamado aquele utilizado para a impressão de jornais, revistas e similares -, estava umbilicalmente ligada àquela matéria prima que, em grande parte da produção industrial, era indispensável para o fornecimento de fontes de energia, sem contar, claro, o transporte do produto final, até os espaços onde ele seria utilizado, inclusive, na escola onde José Mário estudava; no Instituto de Cegos da Bahia onde ele estudaria dali há alguns meses e, na Fundação para o Livro do Cego no Brasil, onde algumas matérias de “Realidade” seriam transcritas e depois, a revista Relevo seria impressa. Assim, como uma das muitas consequências daquela crise desencadeada pelos maiores produtores de petróleo, para forçar não só a elevação dos seus preços mas, também, para trazer as potências bélicas da região à mesa de negociações de paz, a revista Relevo parou definitivamente de circular, o que fez com que fossem reduzidas as possibilidades de José Mário tomar contato com o que ia pelo mundo – mesmo sem o compreender – e, tirara dele o meio que ainda lhe permitia “fazer” o tempo passar.

 

Alagoinhas, 18 de maio de 2025

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

Um comentário:

  1. Os dois primeiros textos da série nos dá a dimensão dos problemas enfrentados pela esmagadora maioria dos leitores, aí me incluo. A vontade voraz de consumir livros e dele extrair a sabedoria incrustada pelo labor do autor (a). No entanto, a formação e as limitações do entorno coloca limites. No meu caso, a iniciação se deu através dos bolsilivros de meu pai e as fotonovelas de minha mãe. Excetuando a Bíblia e as revistas dos Testemunhas de Jeová, os livros de verdade, somente na década de 1980, que chegaram até mim através dos primeiros militantes do PT, em Mata de São João.

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