As leituras eram muitas mas, a compreensão do que lia era
rasa –Segunda parte.
Conforme o que se escreveu na primeira parte destes
garatujares, o processo de escolarização sob o qual José Mário deveria ter sido
adestrado para intentar se inserir – ou seria “ser inserido”? – foi concebido e
desenvolvido sobre fundamentos rasos e com sedimentação frágil. Também, já se
procurou apontar algumas das razões pelas quais assim se implementou o aludido
processo, marcado pelo caráter excludente, de uma parte, por questões
econômicas e sociais gerais, que permeavam toda a camada formada por
trabalhadores temporários, informais e, quando formais, com salários baixos, o
que correspondia ao contingente populacional mais preponderante da formação
social brasileira e baiana em geral e, claro, alagoinhense em particular, e, de
outra parte, pelas circunstâncias inerentes à sua condição sensorial, que, saliente-se
de passagem, se fez somar com os demais condicionantes do seu viver pessoal e
familiar, o que resultou em uma formação geral insuficiente para que ele
pudesse ler – o texto e o seu contexto -, entender o que lia, compreender o que
lia, abstrair a essência do que lia, apreender o que lia e, por fim, dar uma
interpretação daquilo que lia, tanto para si mesmo, quanto para outrem.
Portanto, por meio do sistema Braille – modo de leitura e de
escrita desenvolvido para o uso das pessoas cegas –, José Mário fora ensinado a
reconhecer as letras, a identificar as palavras por elas formadas, os períodos,
parágrafos e os conjuntos textuais por elas construídos, de modo a fazer dele
um leitor voraz. No entanto, ele não fora dotado das ferramentas inerentes ao
pensar o que se leu; não teve o espírito forjado para o questionamento do que
leu; nem foi dotado das ferramentas que lhe permitissem inferir ou desenvolver
sistemas de ilações que lhe dessem algumas pistas da razão de ser daquilo que
ele leu. Ainda tomando como exemplo o periódico em Braille que lhe passara
pelas mãos, durante todo o tempo que circulou – claro, a partir do momento que
a ele chegou o primeiro exemplar, 1972 – a revista “Relevo” que, em geral,
trazia matérias publicadas na célebre revista “Realidade” – que aliás, já
passava por um filtro para determinar qual das matérias da Realidade seria
transcrita em Braille para os leitores cegos; filtro que, ao menos José Mário
não sabia existir, muito menos, qual o critério adotado para eleger umas e
descartar outras –, não obstante a sua pouca idade quando passou a receber em
casa o aludido periódico, diante da ausência de um espírito crítico no seu processo
formativo, tais leituras acabavam por ser meramente recreativas ou, como ele
dizia, uma forma de fazer passar o tempo que teimava em arrastar-se no seu
passo já lento dos seus dias e noites longas e sem grandes variações dos ires e
vires dos anos em que a expectativa era a chegada da vida adulta, para poder
ingressar no mercado de trabalho. Até lá, eram as leituras, tomadas como
passatempo, que lhe permitiam vencer as muitas e longas horas insones que se
lhe apresentavam inexoráveis em várias ocasiões do seu caminhar.
É neste sentido que algumas matérias que lera naquelas
tardes ou noites do seu cotidiano já pretérito, voltam à sua memória,
esmigalhadas pelo alongar dos anos que separam a adolescência do leitor e a sua
maturidade. Uma delas já fora mencionada no primeiro arrazoado desta série –
aquela que tratava do famoso assalto ao trem pagador inglês –, mais duas
poderiam ser aqui evocadas. A primeira delas, tratava daquilo que os redatores
de Realidade chamaram de “a Corrida do ouro”. Provavelmente, a matéria se referisse
aos contingentes humanos que acorreram em grandes levas, à lugares onde
pudessem prospectar “ouro”, de modo a se tornarem ricos – talvez, seja a busca
mais insana dos terráqueos (que também pode ter servido de inspiração para a
teledramaturgia brasileira, naquele mesmo ano de 1974, claro, em um outro
contexto: o do dinheiro) –, quiçá, a matéria apontasse para os casos mais
emblemáticos daquele fenômeno social, político e econômico desencadeados nos séculos
de ocupação europeia na América. Primeiro, foi a implementada pela colonização
luso-hispânica nos primeiros três séculos da ocupação do “Novo Mundo” e, segundo,
aquela que foi desencadeada no oeste norte-americano, por volta do século XIX, marcadamente
na Califórnia, que resultou, entre outras coisas, naquilo que se convencionou
denominar “abertura para o oeste”, até ali, ainda pouquíssimo explorado pelos
colonizadores da primeira nação independente do continente. Crê-se não ser de pouca
valia ressaltar que, aquele leitor, não dispunha de elementos contextuais para
elaborar qualquer das abstrações aqui elencadas.
A segunda das matérias evocadas para sustentar a premissa de
que aquele leitor mal entrado na adolescência e, ainda cursando a terceira série
do então primeiro grau, portanto, ainda tenro no processo de formação escolar, que
apenas lera para passar tempo e, não, para ganhar – ou construir – uma massa
crítica que lhe permitisse compreender melhor o mundo que então o cercava,
tratava da “primeira crise do petróleo”, desencadeada pelos principais
produtores mundiais daquela que era a fonte energética mais importante para a
economia mundial de então, o que desencadeou outras crises, como um efeito
cascata, que, entre tantas que se poderia mencionar, acabou por provocar uma lenta,
porém crescente escassez de vários insumos indispensáveis ao meio cultural,
sobretudo, à produção e a circulação de papel – inclusive o papel Braille, cujo
fornecimento se dava por meio de importação; o mesmo se deu com o chamado “papel
imprensa” – o que levou a revista
“Relevo” a sofrer pequenos atrasos em sua distribuição; depois, evoluindo para
atrasos bem mais significativos; até, por fim, encerrar de uma vez a sua
produção, circulação e distribuição, deixando grande parte de seus leitores,
entre eles, José Mário, sem ter o que ler, nem mesmo para passar o tempo. Sem
conseguir atinar como aquela crise energética acabara por interferir na
circulação de Relevo; sem compreender como aquele evento econômico interferira,
inclusive, na distribuição de papel Braille para o seu uso escolar, ficava
claro que ele não só não conseguia atinar e nem compreender, exatamente por não
conseguir abstrair do contexto, a incidência daquela crise no seu papel
Braille, se, como ele perguntara de si para consigo e, após algumas poucas
reflexões, afirmara como resposta – apesar de não possuir completa segurança
para tanto -, “o papel não era feito de petróleo”, concluiu peremptório.
Entretanto, o que ele não sabia era que, o processo
industrial, que resultava no produto papel – qualquer papel; inclusive, o papel
imprensa, como era chamado aquele utilizado para a impressão de jornais,
revistas e similares -, estava umbilicalmente ligada àquela matéria prima que,
em grande parte da produção industrial, era indispensável para o fornecimento
de fontes de energia, sem contar, claro, o transporte do produto final, até os
espaços onde ele seria utilizado, inclusive, na escola onde José Mário
estudava; no Instituto de Cegos da Bahia onde ele estudaria dali há alguns
meses e, na Fundação para o Livro do Cego no Brasil, onde algumas matérias de
“Realidade” seriam transcritas e depois, a revista Relevo seria impressa.
Assim, como uma das muitas consequências daquela crise desencadeada pelos
maiores produtores de petróleo, para forçar não só a elevação dos seus preços
mas, também, para trazer as potências bélicas da região à mesa de negociações
de paz, a revista Relevo parou definitivamente de circular, o que fez com que
fossem reduzidas as possibilidades de José Mário tomar contato com o que ia
pelo mundo – mesmo sem o compreender – e, tirara dele o meio que ainda lhe
permitia “fazer” o tempo passar.
Alagoinhas, 18 de maio de 2025
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
Os dois primeiros textos da série nos dá a dimensão dos problemas enfrentados pela esmagadora maioria dos leitores, aí me incluo. A vontade voraz de consumir livros e dele extrair a sabedoria incrustada pelo labor do autor (a). No entanto, a formação e as limitações do entorno coloca limites. No meu caso, a iniciação se deu através dos bolsilivros de meu pai e as fotonovelas de minha mãe. Excetuando a Bíblia e as revistas dos Testemunhas de Jeová, os livros de verdade, somente na década de 1980, que chegaram até mim através dos primeiros militantes do PT, em Mata de São João.
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