domingo, 8 de junho de 2025

As Linhas e As Entrelinhas - V.

 

Obras e autores – Parte III.

 

Em mais um arrazoado construído a partir do rememorar deste escrevedor, mais uma tentativa de análise das compreensões e das incompreensões de um leitor voraz, daquilo que estaria nas entrelinhas do que lia, mas, sobretudo, daquilo que perpassava o contexto social e econômico em que estava inserido. Cabe salientar de passagem, que o desenvolvimento destas reflexões, está umbilicalmente relacionada com escavações feitas nas muitas camadas de memória acumuladas e sobrepostas no curso dos anos, mediante esforços para trazer à lume os fragmentos que são extraídos dos sedimentos superpostos na memória individual, entrelaçada a outros fragmentos, desta feita, encontrados em elementos da memória coletiva. O esquecimento e o silenciamento, conforme já se alertou, é uma escolha e uma seleção feita por quem lembra.

Ainda contando com a paciência e benevolência do leitor que tem acompanhado este garatujares, pretende-se trazer aqui mais um exemplo da trajetória de José Mário, no transcurso do seu processo de formação escolar, que, em tese, o ajustaria ao processo de inserção social e na obtenção de sua independência econômica, a partir do seu ingresso no mundo do trabalho. Tendo em visto o atraso em seu processo de escolarização, que acabaria por refletir naquele que resultaria na sua formação enquanto pessoa socialmente apta para interagir com os demais elementos constitutivos da tessitura urdida em seus fios formativos de uma formação econômica e social dada, ele procurara, na medida dos seus limites sensoriais, reduzir as distâncias que se interpunham entre si e os demais componentes do seu grupo etário, por exemplo, ou, quiçá, remover os muitos fossos que se interpunham entre o que ele conhecia e o que ele desconhecia, que viesse a interferir no seu desenvolvimento cognitivo, com o intento de se aproximar um pouco mais daquilo que se esperava de um rapaz comum, que já se aproximava da maioridade.

No entanto, não sabia ele, certamente, que todo o seu esforço para se fazer partícipe daquela composição do todo social, quando muito, resultaria em participar como um elemento marginal no construto daquela tessitura mais ampla da sociedade. Ele não compreendia ainda, ao menos, no seu aspecto mais cru e concreto, que não seria nunca encarado com naturalidade, como um elemento comum do todo social, simples e unicamente pelo seu indisfarçável traço físico: a cegueira. Para além de haver nele outras características que pudessem dificultar a sua interação social; independentemente de ter ele uma origem econômica que lhe dificultava uma acessão, ainda que lateral, no campo da construção de uma carreira que lhe permitisse “subir” para uma camada social mais confortável, o que prevalecia mesmo, produzindo uma dificuldade ainda maior de mudança de vida, era, sem a menor dúvida – embora, repita-se, ele não tivesse qualquer consciência daquilo – o fato de ser ele um cego. Tal elemento constitutivo do seu ser e do seu viver – apesar de não ser o único, fique bem claro  –, lhe impunha limites de difícil transposição, malgrado os seus esforços em busca de desenvolvimento do seu processo de escolarização – ainda que permeado de percalços de toda ordem -, bem como,  de aprimoramento do seu espírito, mediante leituras, audições de rádio, conversas com gente mais culta e desenvolta do que ele.

Isto posto, retome-se alguns dos exemplos que vem sendo dados, no que respeita à sua tentativa de fazer leituras, considerando obras e autores que intentara compreender o conteúdo encontrado nos escritos que lhe passaram pelas mãos. Conforme já foi apontado em arrazoados anteriores, os cegos brasileiros, José Mário entre eles, eram providos de livros em Braille pela então Fundação para o Livro do Cego no Brasil, que lhes enviava obras transcritas, mediante solicitação dos interessados, conforme relação que lhes enviava periodicamente, daquilo que estava disponível em seu setor de distribuição. Muitas vezes, a solicitação era feita a partir do título da obra ou do nome do seu autor, quase sempre, sem se saber do que tratavam ou de quem as escrevia. Daí, acontecer que ao receber as obras solicitadas e iniciar a sua leitura, poderia se dar que o leitor passasse efetivamente a saber do que se tratava, entendendo ou não a proposta do autor.

Nesta perspectiva, se poderia trazer aqui, três exemplos de obras que José Mário solicitou e recebeu e, embora tenha percorrido todas as suas páginas, pouco entendera, nada entendera ou entendera muitíssimo mau o que lera. O primeiro deles foi “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (1892-1953). Apesar de a ter lido com grande avidez e interesse, pouco entendera da proposta do autor, nem mesmo da trama desenvolvida por todo o livro. Só muito mais tarde, ao perceber a desenvoltura com que os professores falavam da obra, a maneira como os estudantes a debatiam em conversas com seus pares e, como os críticos literários se reportavam tanto à obra, quanto ao seu autor, é que ficou muitíssimo mais claro o quanto ele não compreendera a proposta narrativa do escritor alagoano. Aliás, sequer ele sabia se tratar  de um autor das Alagoas e, ainda menos, ser a trama ambientada no sertão daquele estado. Ainda mais: sequer sabia o que era “sertão”, senão um lugar distante do alcance da sua percepção, talvez, quando muito, o lugar em que nascera a sua mãe, pois ela sempre fizera menção ao lugar de seu nascimento como sendo o “sertão”, em que ela situava Mundo Novo ou Piritiba – sempre disse ter nascido e se criado em um daqueles dois lugares, sem conseguir precisar seguramente, qual deles – na Bahia, que ele, mais tarde, veio a saber se tratar daquilo que foi denominado “Chapada Diamantina”; mas, para ela, era o sertão; e para ele, ficou sendo o sertão que sabia existir. Não sem razão, José Mário estranhara muito o título de uma obra que também tivera acesso mas, para variar, sem muito êxito na sua compreensão, aquela escrita por Euclides da Cunha (1866-1909): “Os Sertões”. Como assim: haveria mais de um? Existiriam “Sertões”? Mas, não avançara muito nas suas confusas reflexões. De modo que, como sempre, só bem mais tarde é que começara a compreender o que teria levado o autor a explicar a “Guerra de Canudos”, considerando a existência de diversos sertões.

O segundo exemplo das obras solicitadas por José Mário, lidas mas, pouco ou mal compreendidas que aqui se pode trazer à consideração do leitor é “Tenda dos Milagres”, de Jorge Amado (1912-2001). Ali, se estabelecera uma imensa confusão no cérebro do pobre rapaz, ávido por se embrenhar no mundo literário, acreditando que estaria mergulhando na plenitude do conhecimento extraescolar, fazendo incursões em um mundo pouco visitado pela maioria dos seus coetâneos, sobretudo, os colegas da escola pública onde estudava. Ansioso por ler uma obra de tão afamado autor, ao iniciar o percurso pelas páginas daquele livro que recebera poucos dias antes, o que perpassara pelo seu sentimento, fora uma imensa decepção, uma frustração para quem buscava na leitura o rebusco das palavras e uso de termos cultos, o rigor da construção dos diálogos e uma ampliação de vocabulário, quiçá, para um uso futuro. Tal desapontamento do leitor se fez sentir, no que respeita ao uso de uma linguagem por ele considerada chula, que marcava a trama, em toda a sua construção. Entendia aquele desavisado leitor, que um autor com o “cartaz” que possuía Jorge Amado,  não poderia descer tão baixo no uso da língua, sobretudo, se tratando de um escritor de prestígio internacional, segundo sabia, sem no entanto compreender o caráter realista daquela obra, que, ainda no seu entendimento, extrapolava os limites da “decência”, ferido os dedos de um leitor que, conforme já se salientou antes, não entendia a conformação literária à características peculiares ao pertencimento a “escolas” ou à tipificações de modos como se construía uma obra dada. Nem é preciso dizer que aquele leitor não continuou aquela leitura e, por um bom tempo, se recusou a ler aquele autor. A reconciliação entre eles, só se deu alguns anos mais tarde, quando o leitor já cursava a graduação, através de duas obras. Uma delas foi lida por dever de ofício, quando tomou A Morte e A Morte de Quincas Berro D’água para um trabalho de História da Bahia, solicitada pelo professor Francisco Guimarães – conhecido como Chico Índio -; e Farda Fardão, Camisola de Dormir,  que leu quando de uma de suas crises de escrita, que antecedeu a uma avaliação de uma matéria dada por um professor temido por muitos, dado ao seu nível de exigência.

O terceiro dos exemplos de obras que José Mário leu, mas, pouco ou nada entendeu do seu conteúdo que aqui se pretende trazer como exemplo, é possível afirmar que se tratava de uma obra de grande valor literário e histórico, mas que, ao percorrer a sua trama narrativa, o despreparado leitor entendeu como sendo um romance (novela) como os demais que lera originados do século XIX, cujo final não fora aquele por ele esperado e, claro, muito desejado. A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1811-1896), foi a obra que lera com avidez, atenção mas, que não conseguira entender o seu objetivo, ainda menos, compreender a mensagem que de fato pretendeu passar. Apesar de se ter emocionado com algumas passagens, como aquela que o escravo dedicado se lançara no rio para salvar do afogamento a frágil filha do seu amo; ou aquela outra em que aquele mesmo escravo dedicado, agora já velho e vendido para outro proprietário, era cruelmente maltratado pelo seu novo dono, ele não compreendera que a obra pretendia fazer uma crítica ao sistema escravista norte-americano em vigor até o final da guerra civil que opusera os Estados escravistas e aqueles outros que não tinham tal sistema de exploração do trabalho como base para o desenvolvimento da sua economia e, que fora uma obra inspiradora para as lutas travadas naquele país, no sentido de se por fim àquele regime, palidamente retratado no livro que tivera nas mãos. Não conseguia compreender o fato de que pessoas negras eram tratadas como seres inferiores, senão, pelo fato de serem propriedades de outras pessoas; não atinara que ali estava apontada uma face social relacionada não só ao fato de serem eles tratados como se fora uma propriedade que se vendia, trocava ou alienava como se fazia com a terra, com o plantel; mas, sim, não eram entendidas como pessoas que tinham o mesmo status – ou  deveriam ter – ostentados pelos seus “proprietários”; que aliás, não só agiam como proprietários da sua força de trabalho; mas como proprietários dos seus corpos, das suas vontades, dos seus desejos, dos seus sentimentos, enfim, dos seus quereres, das suas vidas.

Assim, conforme se deu no tocante aos exemplos anteriores, esta compreensão acima grosseiramente esboçada, aquele leitor ávido por acumular volumes ao seu conjunto de leituras, só passou a compreender a importância de A Cabana do Pai Tomás, muito tempo depois de sua leitura. Além de não possuir informações concernentes aos contextos que motivaram grande parte das obras que leu, ele não possuía maturidade intelectual – nem meios – para realizar pesquisas no sentido de saber exatamente o que, o para que ou quem nem mesmo o porquê da escrita daquelas obras, do pertencimento a qual ou tal escola literária, deste ou daquele autor que as compusera. Outrossim, quem eram aqueles autores; quais as circunstâncias que os teriam levado a escrever de uma forma tal ou qual, eram do seu inteiro e total desconhecimento, o que o distanciava ainda mais da compreensão do que estaria nas entrelinhas, das linhas que acabava de percorrer.

 

Alagoinhas – 08 de junho de 2025.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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