Obras e autores – Parte III.
Em mais um arrazoado construído a partir do rememorar deste
escrevedor, mais uma tentativa de análise das compreensões e das incompreensões
de um leitor voraz, daquilo que estaria nas entrelinhas do que lia, mas,
sobretudo, daquilo que perpassava o contexto social e econômico em que estava
inserido. Cabe salientar de passagem, que o desenvolvimento destas reflexões,
está umbilicalmente relacionada com escavações feitas nas muitas camadas de
memória acumuladas e sobrepostas no curso dos anos, mediante esforços para
trazer à lume os fragmentos que são extraídos dos sedimentos superpostos na
memória individual, entrelaçada a outros fragmentos, desta feita, encontrados
em elementos da memória coletiva. O esquecimento e o silenciamento, conforme já
se alertou, é uma escolha e uma seleção feita por quem lembra.
Ainda contando com a paciência e benevolência do leitor que
tem acompanhado este garatujares, pretende-se trazer aqui mais um exemplo da trajetória
de José Mário, no transcurso do seu processo de formação escolar, que, em tese,
o ajustaria ao processo de inserção social e na obtenção de sua independência
econômica, a partir do seu ingresso no mundo do trabalho. Tendo em visto o
atraso em seu processo de escolarização, que acabaria por refletir naquele que
resultaria na sua formação enquanto pessoa socialmente apta para interagir com
os demais elementos constitutivos da tessitura urdida em seus fios formativos
de uma formação econômica e social dada, ele procurara, na medida dos seus
limites sensoriais, reduzir as distâncias que se interpunham entre si e os
demais componentes do seu grupo etário, por exemplo, ou, quiçá, remover os muitos
fossos que se interpunham entre o que ele conhecia e o que ele desconhecia, que
viesse a interferir no seu desenvolvimento cognitivo, com o intento de se
aproximar um pouco mais daquilo que se esperava de um rapaz comum, que já se
aproximava da maioridade.
No entanto, não sabia ele, certamente, que todo o seu
esforço para se fazer partícipe daquela composição do todo social, quando muito,
resultaria em participar como um elemento marginal no construto daquela
tessitura mais ampla da sociedade. Ele não compreendia ainda, ao menos, no seu
aspecto mais cru e concreto, que não seria nunca encarado com naturalidade,
como um elemento comum do todo social, simples e unicamente pelo seu indisfarçável
traço físico: a cegueira. Para além de haver nele outras características que
pudessem dificultar a sua interação social; independentemente de ter ele uma origem
econômica que lhe dificultava uma acessão, ainda que lateral, no campo da
construção de uma carreira que lhe permitisse “subir” para uma camada social
mais confortável, o que prevalecia mesmo, produzindo uma dificuldade ainda
maior de mudança de vida, era, sem a menor dúvida – embora, repita-se, ele não
tivesse qualquer consciência daquilo – o fato de ser ele um cego. Tal elemento
constitutivo do seu ser e do seu viver – apesar de não ser o único, fique bem
claro –, lhe impunha limites de difícil
transposição, malgrado os seus esforços em busca de desenvolvimento do seu
processo de escolarização – ainda que permeado de percalços de toda ordem -, bem
como, de aprimoramento do seu espírito,
mediante leituras, audições de rádio, conversas com gente mais culta e
desenvolta do que ele.
Isto posto, retome-se alguns dos exemplos que vem sendo
dados, no que respeita à sua tentativa de fazer leituras, considerando obras e
autores que intentara compreender o conteúdo encontrado nos escritos que lhe
passaram pelas mãos. Conforme já foi apontado em arrazoados anteriores, os
cegos brasileiros, José Mário entre eles, eram providos de livros em Braille
pela então Fundação para o Livro do Cego no Brasil, que lhes enviava obras
transcritas, mediante solicitação dos interessados, conforme relação que lhes
enviava periodicamente, daquilo que estava disponível em seu setor de
distribuição. Muitas vezes, a solicitação era feita a partir do título da obra
ou do nome do seu autor, quase sempre, sem se saber do que tratavam ou de quem
as escrevia. Daí, acontecer que ao receber as obras solicitadas e iniciar a sua
leitura, poderia se dar que o leitor passasse efetivamente a saber do que se
tratava, entendendo ou não a proposta do autor.
Nesta perspectiva, se poderia trazer aqui, três exemplos de
obras que José Mário solicitou e recebeu e, embora tenha percorrido todas as
suas páginas, pouco entendera, nada entendera ou entendera muitíssimo mau o que
lera. O primeiro deles foi “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (1892-1953).
Apesar de a ter lido com grande avidez e interesse, pouco entendera da proposta
do autor, nem mesmo da trama desenvolvida por todo o livro. Só muito mais
tarde, ao perceber a desenvoltura com que os professores falavam da obra, a
maneira como os estudantes a debatiam em conversas com seus pares e, como os críticos
literários se reportavam tanto à obra, quanto ao seu autor, é que ficou
muitíssimo mais claro o quanto ele não compreendera a proposta narrativa do
escritor alagoano. Aliás, sequer ele sabia se tratar de um autor das Alagoas e, ainda menos, ser a
trama ambientada no sertão daquele estado. Ainda mais: sequer sabia o que era “sertão”,
senão um lugar distante do alcance da sua percepção, talvez, quando muito, o
lugar em que nascera a sua mãe, pois ela sempre fizera menção ao lugar de seu
nascimento como sendo o “sertão”, em que ela situava Mundo Novo ou Piritiba –
sempre disse ter nascido e se criado em um daqueles dois lugares, sem conseguir
precisar seguramente, qual deles – na Bahia, que ele, mais tarde, veio a saber
se tratar daquilo que foi denominado “Chapada Diamantina”; mas, para ela, era o
sertão; e para ele, ficou sendo o sertão que sabia existir. Não sem razão, José
Mário estranhara muito o título de uma obra que também tivera acesso mas, para
variar, sem muito êxito na sua compreensão, aquela escrita por Euclides da
Cunha (1866-1909): “Os Sertões”. Como assim: haveria mais de um? Existiriam “Sertões”?
Mas, não avançara muito nas suas confusas reflexões. De modo que, como sempre,
só bem mais tarde é que começara a compreender o que teria levado o autor a
explicar a “Guerra de Canudos”, considerando a existência de diversos sertões.
O segundo exemplo das obras solicitadas por José Mário,
lidas mas, pouco ou mal compreendidas que aqui se pode trazer à consideração do
leitor é “Tenda dos Milagres”, de Jorge Amado (1912-2001). Ali, se estabelecera
uma imensa confusão no cérebro do pobre rapaz, ávido por se embrenhar no mundo
literário, acreditando que estaria mergulhando na plenitude do conhecimento
extraescolar, fazendo incursões em um mundo pouco visitado pela maioria dos
seus coetâneos, sobretudo, os colegas da escola pública onde estudava. Ansioso
por ler uma obra de tão afamado autor, ao iniciar o percurso pelas páginas
daquele livro que recebera poucos dias antes, o que perpassara pelo seu
sentimento, fora uma imensa decepção, uma frustração para quem buscava na
leitura o rebusco das palavras e uso de termos cultos, o rigor da construção
dos diálogos e uma ampliação de vocabulário, quiçá, para um uso futuro. Tal desapontamento
do leitor se fez sentir, no que respeita ao uso de uma linguagem por ele
considerada chula, que marcava a trama, em toda a sua construção. Entendia
aquele desavisado leitor, que um autor com o “cartaz” que possuía Jorge Amado, não poderia descer tão baixo no uso da língua,
sobretudo, se tratando de um escritor de prestígio internacional, segundo
sabia, sem no entanto compreender o caráter realista daquela obra, que, ainda
no seu entendimento, extrapolava os limites da “decência”, ferido os dedos de
um leitor que, conforme já se salientou antes, não entendia a conformação literária
à características peculiares ao pertencimento a “escolas” ou à tipificações de
modos como se construía uma obra dada. Nem é preciso dizer que aquele leitor
não continuou aquela leitura e, por um bom tempo, se recusou a ler aquele
autor. A reconciliação entre eles, só se deu alguns anos mais tarde, quando o
leitor já cursava a graduação, através de duas obras. Uma delas foi lida por
dever de ofício, quando tomou A Morte e A Morte de Quincas Berro D’água para um
trabalho de História da Bahia, solicitada pelo professor Francisco Guimarães –
conhecido como Chico Índio -; e Farda Fardão, Camisola de Dormir, que leu quando de uma de suas crises de
escrita, que antecedeu a uma avaliação de uma matéria dada por um professor
temido por muitos, dado ao seu nível de exigência.
O terceiro dos exemplos de obras que José Mário leu, mas,
pouco ou nada entendeu do seu conteúdo que aqui se pretende trazer como exemplo,
é possível afirmar que se tratava de uma obra de grande valor literário e
histórico, mas que, ao percorrer a sua trama narrativa, o despreparado leitor
entendeu como sendo um romance (novela) como os demais que lera originados do
século XIX, cujo final não fora aquele por ele esperado e, claro, muito
desejado. A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (1811-1896), foi a
obra que lera com avidez, atenção mas, que não conseguira entender o seu
objetivo, ainda menos, compreender a mensagem que de fato pretendeu passar. Apesar
de se ter emocionado com algumas passagens, como aquela que o escravo dedicado se
lançara no rio para salvar do afogamento a frágil filha do seu amo; ou aquela
outra em que aquele mesmo escravo dedicado, agora já velho e vendido para outro
proprietário, era cruelmente maltratado pelo seu novo dono, ele não
compreendera que a obra pretendia fazer uma crítica ao sistema escravista
norte-americano em vigor até o final da guerra civil que opusera os Estados
escravistas e aqueles outros que não tinham tal sistema de exploração do
trabalho como base para o desenvolvimento da sua economia e, que fora uma obra
inspiradora para as lutas travadas naquele país, no sentido de se por fim
àquele regime, palidamente retratado no livro que tivera nas mãos. Não
conseguia compreender o fato de que pessoas negras eram tratadas como seres
inferiores, senão, pelo fato de serem propriedades de outras pessoas; não
atinara que ali estava apontada uma face social relacionada não só ao fato de
serem eles tratados como se fora uma propriedade que se vendia, trocava ou
alienava como se fazia com a terra, com o plantel; mas, sim, não eram
entendidas como pessoas que tinham o mesmo status – ou deveriam ter – ostentados pelos seus “proprietários”;
que aliás, não só agiam como proprietários da sua força de trabalho; mas como
proprietários dos seus corpos, das suas vontades, dos seus desejos, dos seus
sentimentos, enfim, dos seus quereres, das suas vidas.
Assim, conforme se deu no tocante aos exemplos anteriores,
esta compreensão acima grosseiramente esboçada, aquele leitor ávido por
acumular volumes ao seu conjunto de leituras, só passou a compreender a
importância de A Cabana do Pai Tomás, muito tempo depois de sua leitura. Além
de não possuir informações concernentes aos contextos que motivaram grande
parte das obras que leu, ele não possuía maturidade intelectual – nem meios –
para realizar pesquisas no sentido de saber exatamente o que, o para que ou
quem nem mesmo o porquê da escrita daquelas obras, do pertencimento a qual ou
tal escola literária, deste ou daquele autor que as compusera. Outrossim, quem
eram aqueles autores; quais as circunstâncias que os teriam levado a escrever
de uma forma tal ou qual, eram do seu inteiro e total desconhecimento, o que o
distanciava ainda mais da compreensão do que estaria nas entrelinhas, das
linhas que acabava de percorrer.
Alagoinhas – 08 de junho de 2025.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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