– Obras e autores parte IV.
Conforme já é cediço e, tem sido enfatizado nestes
garatujares, o processo de rememoração se dá, em geral, a partir de escolhas
feitas por quem se dispõe a lembrar; também, se dá a partir de elementos
materiais que podem ser acessados através dos sentidos – como por exemplo,
alguém que vê u prédio antigo e ele associa a algum momento do seu viver, como
o seu trajeto para a escola, ou para a casa de amigos, avós;; outro que sente o
cheiro de um perfume há muito não aspirado e, lembra do primeiro encontro com
alguém que lhe inspirara o primeiro sentimento de afeto; um terceiro que toca
com os seus dedos em um veículo antigo, seu conhecido, no qual esbarra enquanto
percorre uma calçada, acontecendo de lembrar, quiçá, de alguém que tivera um
daqueles e ele o soubera ou conhecera; ainda um quarto que degusta algum
alimento, caso emblemático de Marcel Proust (1871-1922), que acaba por trazer à
tona lembranças de infância, há muito recobertas por espessas camadas de tempo –,
bem como a tarefa de lembrar é possibilitada pelo mergulho do rememorador no
tempo, em busca de escavar as camadas já superpostas e, delas, extrair
momentos, fatos ou experiências que, por certo, não viriam a ser despertados por
meio de ações sensoriais materializáveis. Para este último tipo de exercício do
lembrar, se faz necessário recorrer à “memória coletiva”, muitas vezes, encontrável em uma conversa com pessoas da
mesma idade do interlocutor ou, com alguém alguns anos mais acumulados em
relação aos primeiros, uma audição de rádio, uma leitura de periódico ou livro
antigos, fazendo com que aqueles lembrares saltem dos seus refúgios e se
apresentem a quem lembra, que por sua vez, torna perceptível por meio de um
texto escrito ou uma mensagem de áudio, por exemplo.
Há já alguns arrazoados, este escrevedor vem procurando
discorrer sobre o processo que envolve a leitura que, em geral – ou pelo menos
se espera –, consiste no contato, na apreensão e, principalmente, na compreensão
daquilo que se tenha lido, o que pode significar – ou não – o pleno êxito do
autor em passar a sua mensagem. No entanto, como diriam os mestres da língua, para
se dar a compreensão da comunicação textual, faz-se necessário haver uma
adequada decodificação do pensamento que foi exposto por meio do texto em
questão – que pode ser escrito ou verbalizado -, por aquele que a recebera. Em
grande parte das vezes, a adequada decodificação da mensagem apreendida, requer
uma leitura que seja feita para além das linhas que se apresentam na superfície
do suporte no qual a mensagem esteja inserida. Trata-se daquilo que se tem
denominado “entrelinhas”, portanto, aquilo que estaria nos elementos não
encontráveis diretamente no texto lido; aquilo que se encontra nos contextos
que envolvem o texto em causa, que, grande parte das vezes, seria o resultado “resumido”
dos contextos que o produzira. Seria os “por quês” daquele texto; as tensões
que envolveram a sua escrita; as condições sociais e culturais que propiciaram
a sua construção e, sobretudo, os meios que permitiram a sua difusão.
É assim que se volta a José Mário, na altura em que contava
entre quinze e dezessete anos, momento em que tivera acesso a um grande número
de obras literárias e que as devorara quase insaciavelmente, mas, que não as
compreendera adequadamente. Para este arrazoado, à guisa de exemplo do que se foi
afirmado, aqui serão abordadas três dentre as obras de José de Alencar (1829-1877)
que lhe passaram pelas mãos e foram percorridas inteiramente pelos seus dedos.
Chegadas à si por intermédio da Fundação para o Livro do Cego no Brasil,
mediante sua solicitação, elas foram lidas com grande atenção e interesse; até
se procurou refletir sobre o texto em si; as leituras foram feitas sem pressões
externas de obrigação escolar; foram feitas nos momentos de silêncio e de temperatura
ambiente, sem extremos de calor ou frio. No entanto, lhe faltavam ferramentas
outras que, talvez, lhe pudessem auxiliar no intuito de promover a compreensão
adequada de cada uma daquelas obras, inclusive, do seu contexto, embora ele
soubesse que elas foram escritas em um outro tempo e em um outro lugar. Por
outro lado, desconhecia que elas foram escritas em uma outra conjuntura – sequer
sabia da sua existência como elemento de análise – nem mesmo que foram
ambientadas em uma outra estrutura social – igualmente, sua desconhecida, como
elemento que lhe pudesse fornecer alguma compreensão da proposta do autor.
A primeira das obras de José de Alencar que aqui se quer
abordar, no sentido da dificuldade de sua compreensão por parte daquele leitor,
é “Senhora de 1975, apresentada na ordem que foi lida por José Mário e, não
necessariamente, na ordem de sua publicação, uma vez que ele não possuía o
conhecimento dos parâmetros de uma leitura que levasse em conta o momento e o
motivo do surgimento de cada obra e, como já se salientou em arrazoados
anteriores, ele não possuía as noções básicas de quem era o autor – exceto o
seu nome, logicamente –, a qual escola pertencia, qual o seu pertencimento
social ou político ou, onde ele moldara o seu modo de pensar – este ponto,
longe das cogitações daquele leitor. Para ele, o que estava em conta, no que
respeita à sua compreensão de leitura, era o caminhar da narrativa, o seu
desenvolvimento, o mais linear possível e, sobretudo, o final por ele esperado:
o casamento, mas, fundamentado naquilo que ele entendia ser o “amor” e não, uma
negociação financeira, onde os interesses “afetivos” não eram levados na devida
conta. Claro está que, era por estes parâmetros que José Mário compreendia
estar entendendo a obra em sua inteireza. No entanto, ele desconhecia que o que
forjara aquele enredo que ele dissera não ter apreciado, o que estaria nas
entrelinhas daquele desenvolvimento que o autor dera a obra, precisamente, era o
contexto social e o caldo cultural que a forjara. Mesmo tendo lido a obra pouco
mais de cem anos depois de sua publicação, ele não a compreendera como uma
produção literária que demarcava um tempo, um lugar, um modo de pensar, calcado
em elementos econômicos, sociais e culturais diferentes daquele em que o
desavisado leitor se encontrava.
O Guarani” de 1857
foi a segunda das obras em que José Mário apresentou grande dificuldade em
compreender, sobretudo, as suas entrelinhas e o contexto envolvido em sua
criação “. Nela, o texto sobrepujou qualquer tentativa de inferência a respeito
do seu contexto, pois, além do leitor sequer atentar para a possibilidade da sua
existência, ele foi completamente envolvido pelo desenrolar da obra – que transcrita
em Braille rendeu cinco volumes -, reduzindo a sua compreensão aos desfechos
dados pelo autor. José Mário se deu por contente pelo fato de Loredano não ter
conseguido qualquer dos seus intentos; por Peri ter sido reconhecido como “herói”
e por Ceci ter sido salva por ele e, claro, por talvez, ter se tornado sua
esposa. Pronto. Acabou a compreensão da obra, evidentemente, uma compreensão
parcial e quiçá, destorcida, pelas razões já apontadas acima, agravadas pelo
entendimento por parte do leitor, de que se tratava de um “romance” clássico,
com começo, meio e fim, presumíveis ou mesmo, desejáveis por quem os lia.
A terceira obra de José de Alencar que José Mário não conseguira compreender as suas entrelinhas
e, saliente-se, aquela não compreensão acabou por se tornar um obstáculo para
outras situações por ele vividas nos anos que transcorreram mais à frente, foi “o
Tronco do Ipê” de 1881, lida quando ele contava cerca de dezoito ou dezenove
anos. Para ele, aquela obra acabou por influenciar o seu modo de pensar, no que
respeita à relação afetiva, uma vez que ele compreendera aquelas linhas como
sendo, diriam hoje os metodólogos, “uma representação do real” e não, uma
construção literária que, necessariamente, não significaria a expressão de uma
realidade dada. Aquela “alvíssaras” dada a Mário, por seu retorno à fazenda; a ansiedade
que marcara Alice pela chegada do amigo de infância que, já era encarado naturalmente como seu
futuro marido, deu a José Mário a ideia, equivocada, logicamente, que a
diferença social – no seu caso, agravada com a diferença sensorial – seria suplantada,
em qualquer tempo ou lugar, pelo “amor” que se procurara implantar em Alice,
herdeira e dona de tudo, por Mário, desprovido de tudo, mas que trazia na
bagagem o bacharelado obtido em Coimbra. Para José Mário, a ascensão social
seria o abridor de portas,, mas o “amor”, seria o abridor de todas as portas.
Mal sabia o desgraçado leitor que, as coisas não funcionavam bem assim; o tempo
e a vida é que acabaram por lhe ensinar esta verdade dura e crua. Não sabia ele
que, havia um contexto inserido naquela obra, que, evidentemente, ele não
conseguira ler, nas suas entrelinhas.
E, à guisa de conclusão, uma quarta obra de Alencar que aqui
poderia ser evocada e, que o leitor em causa sequer conseguira avançar em suas
páginas, só vindo a fazê-lo alguns anos depois da primeira tentativa, seria “Til”
de 1872. A rudeza como o autor introduz os personagens e a escolha que fizera
para entrelaçar os primeiros enredos da obra, acabaram por demonstrar àquele
leitor que, a trama não consistiria em mais um daqueles romances novelescos que
tanto apreciava, que acabaria por ter casais perfeitamente ajustados entre si,
cujos enlaces se dariam ao fim e ao cabo. AS primeiras linhas da obra não lhe
deram o entendimento de que assim seria, fazendo com que o leitor superficial
recuasse da empreitada. Bem mais tarde, quando fez a leitura completa e,
saliente-se, já no formato digital, ele acabara por compreender que a proposta
do autor passava longe daquilo que ele cogitara inicialmente, embora, não
deixasse de ter alguns enlaces afetivos, porém, com um aporte bem humano, ao
colocar um personagem, o que dá título ao livro, pouco usual nas obras escritas
naquele contexto de século XIX, em que o “perfeito” era buscado pelos autores
e, quiçá, exigido pelos leitores, sobretudo, aqueles tão superficiais quanto o
era José Mário.
Alagoinhas – 13 de julho de 2025
José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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