– Obras e autores parte VI.
A ideia – ou necessidade – de refletir
aqui sobre obras e autores que passaram pelos dedos de José Mário durante o seu
processo de escolarização e/ou de formação da sua percepção de mundo, repousa
em uma questão que sempre esteve rondando o seu cérebro, na medida em que o
tempo passava e se construía o seu pensamento, nem sempre crítico, embora um
tanto questionador, no que respeita ao entendimento que alcançava das leituras
feitas – embora nem sempre tenha sido aquele o intento ao fazê-las -, reflexões
sempre desenvolvidas a partir de um rememorar de momentos vividos ou de eventos
pelos quais passou ou deles teve notícia. Este rememorar, como se vem
insistindo aqui, é feito a partir de escolhas de quem rememora, mediante o
escavar de camadas de memórias, algumas vezes bem profundas, espessas e
cobertas pelo passar do tempo, quase sempre evocadas por quem lembra e ,trazidas
à superfície, quando se dá, por fim, a escolha daquilo que se vai tornar
público, o que se vai silenciar ou apagar, uma decisão, insista-se, sempre uma
decisão daquele que lembra.
No arrazoado passado, se discorreu
sobre algumas obras cujas leituras foram impostas aos estudantes, ao longo do nível
2 do então primeiro grau, por meio das quais, em geral, se esperava deles, apenas
a compreensão do que fora lido, sob o ponto de vista da gramática normativa –
ou na melhor das hipóteses, dependendo da professora que faria a avaliação,
alguns elementos inerentes ao processo redacional -, pouco ou nada sendo cobrado
do aprendiz, alguma noção daquilo que viesse a ser percebido nas entrelinhas da
obra que acabara de ler; daquilo que eventualmente houvesse de subliminar nos
textos recentemente percorrido por eles. No que respeita àquele aluno em causa,
apesar de já contar com uma idade superior aos demais alunos que com ele cursara
as quatro últimas séries do primeiro grau, não os conseguira ultrapassar o
nível de compreensão do que liam, fazendo valer o que o maior passar dos anos
lhe deveria conferir. Ou seja: a sua maturidade não era maior do que a dos seus
colegas que contavam três, quatro ou mais anos a menos que ele. Não obstante
ter ele lido bem mais páginas do que os seus colegas de série, não os conseguia
ultrapassar no acúmulo de conhecimento que lhe permitisse melhor compreensão
das linhas e, sobretudo, das entrelinhas das obras que leram com o mesmo
objetivo: desenvolver as tarefas escolares.
Dentre as obras que José Mário
lera, para além das tarefas escolares, ao menos três poderiam aqui ser citadas,
para que o leitor tenha um melhor juízo daquilo que se vem apontando ao longo
destes arrazoares. O gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975) comparece com duas
delas, aliás, as duas únicas daquele autor brasileiro que fora lida pelo aluno
baiano de Alagoinhas. A primeira que aqui se quer comentar é “Olhai os Lírios
no Campo, publicada em 1938, caiu nas mãos de José Mário aproximadamente
quarenta anos após aquela data. Como sempre, por meio da então Fundação para o
Livro do Cego no Brasil, ele recebera em Braille, em três ou quatro volumes e,
do mesmo modo como as demais, devorou-a, de capa a capa, sem, porém, ultrapassar
a superfície das linhas que passaram sob os seus dedos. Da mesma maneira como
se deu com outras obras que devorara, pouco ou nada ficou de entendimento, a
não ser algumas expressões como aquelas que Eugênio tivera de ouvir dos
moleques de sua idade “Calça furada”, dando a entender ao leitor que, embora Eugênio
fosse um menino filho de alfaiate, aquele não conseguira “consertar” as calças
do filho, evitando que passasse por aquele constrangimento diante dos colegas
de folguedos e travessuras, infantis e juvenis. O que, aliás, não ocorria com
José Mário, cuja genitora era lavadeira de ganho e, que fazia todo esforço para
que o seu filho estivesse sempre com a roupa limpa e perfumada com patchouli,
planta que sempre cultivara no quintal para tal fim. E, em laivos de alguma
possiblidade de pensamento crítico, ele acabava por se perguntar, qual teria
sido o motivo de Eugênio não ter as calças consertadas pelo seu pai, sem, no
entanto, a questão se demorar muito no seu cérebro e, menos ainda, tentar
encontrar alguma resposta, provisória ou precária que fosse.
A segunda das obras de Érico Veríssimo
que José Mário lera com avidez e grande interesse foi “O Senhor Embaixador”,
publicada em 1959, cuja leitura lhe fora sugerida e induzida por dois de seus
colegas, Carlos Caldeira, seu coetâneo, além de ser seu contemporâneo no
processo de escolarização e Genésio Silva, seis anos mais velho do que os dois
e, já fora do contexto escolar, com os quais disputara não só o tempo dispendido
para a leitura completa daquelas mais de quatrocentas páginas ( considerando o
exemplar em tinta), mas, algumas possibilidades de entendimento que viessem a
ter daquela obra, transcrita em Braille e, em seis alentados volumes. Por mais
que os três se tivessem esforçado no sentido de percorrer aquelas linhas, de
tentar se apropriar daquele texto profundo e denso, pouco conseguiram compreender
além da superfície da proposta do
escritor, uma vez que, no caso específico de José Mário, apenas depois de passados
alguns anos e de adquirida alguma experiência de vida e de leituras outras, ele
percebeu alguns elementos da obra que não estavam disponíveis ao nível do
entendimento que tivera de sua leitura à época aqui relatada. A História de uma
república imaginada pelo autor em algum lugar do Caribe, para aqueles leitores,
além de acreditarem não passar de uma mera ficção ricamente desenvolvida pelo
autor, aqueles leitores superficiais não compreenderam nem as entrelinhas nem
os contextos que envolveram os desenvolvimentos das tramas encontradas no
romance, razão pela qual, eles deram importância apenas ao pitoresco, animalesco
e anedótico que encontraram e, que chamaram a atenção, como a última frase da
obra, pronunciada pelo protagonista Gabriel Heliodoro – o então embaixador da “República
do Sacramento” em Whashington -, ao ser colocado no paredão para o fuzilamento,
por ter sido o representante da ditadura derrubada pela oposição “Lego mis Cojones
al museu...”.
A terceira das obras que se
escolheu para apensar um comentário neste arrazoado, é “E a Porteira Bateu”,
escrita por Francisco Marins (1922-2016)e publicada em 1963. A sua leitura foi
uma sugestão , para melhor dizer, uma indução feita por Eraldo Galvão, um pouco
mais velho do que José Mário, apesar de estar transitando pelo mesmo processo
de formação escolar, fazendo-lhe crer que a obra era imprópria para a sua idade
(15 anos) à época e ele, o “sensor”, pasme-se: contava dezesseis. Mesmo tendo
insistido e argumentado que entre eles quase não havia diferença no contar dos
anos, isto é, ambos eram menores e, portanto, fosse aquela a razão de um não
poder ler a dita obra, o outro, igualmente e pelo mesmo motivo, não o poderia.
Diante do fato de não haver aquela
obra na biblioteca do internato onde ambos moravam e, ela só constar no setor
Braille da biblioteca Central do Estado, José Mário driblou a “Censura” do seu coetâneo
e a sua pouca disposição de fazê-la chegar às suas mãos, solicitando-a à
Fundação para o Livro do Cego no Brasil, de quem recebeu algumas semanas depois
mas, só veio a ler, quando voltara para a sua casa nas férias, não tendo
atinado a razão do seu colega assegurar ser leitura imprópria à idade.
No entanto, insiste-se em
salientar que, malgrado ter percorrido todas as suas páginas, procurando
digerir cada uma das linhas com avidez, nada aprofundou do seu conteúdo
textual, que viesse a provocar uma reflexão acerca daquele conteúdo. A primeira
das suas preocupações, fora a de identificar a razoabilidade de ser aquela
leitura imprópria a um rapaz ainda na metade da sua adolescência, uma vez que o
tema ali exposto não continha qualquer ideia ou forma de pensar que já não
conhecesse, ao menos, superficialmente. Talvez, aquilo tenha dificultado àquele
leitor, realizar um mergulho mais profundo e, sobretudo, profícuo naquelas
páginas, com o fito de tirar delas algumas noções que embasassem a construção
de um pensamento crítico a respeito de algumas situações abordadas pelo autor.
Pelo fato da leitura ter sido feita sem os elementos que lhe permitissem um
melhor aproveitamento da proposta do autor – sequer ele sabia qual era –,
acabou por ficar só na superfície, como se deu nas demais obras, restando
alguns de seus fragmentos no rememorar do leitor, como por exemplo, o nome de
um dos protagonistas – Adão Pungá – morto em confronto com nativos, com
posseiros, ou alguma coisa do tipo; bem como a tentativa por quatro vezes frustrada
de um outro personagem – talvez o principal – em ter um filho homem para fazer
o seu herdeiro e, ao conseguir tal intento, depois de simpatias e rezas muitas,
acabou lhe nascendo um menino frágil de saúde e corpo, tendo ele de se contentar
com as três ou quatro filhas até ali geradas, arriscando a divisão do seu vasto
patrimônio, o que muito afligia o seu espírito. Pronto. Acaba neste ponto a
compreensão de José Mário daquela leitura.
Alagoinhas 27 de julho de 2025.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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