domingo, 20 de julho de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – VII

 

– Obras e autores parte V.

 

O conjunto de arrazoados que se vem desenvolvendo há já algum par de meses neste espaço virtual, chega em sua sétima postagem, sempre contando com a paciência daqueles que se tem dignado a ler as considerações que aqui vem sendo feitas. Dito isto, antes de continuar a discorrer sobre as dificuldades enfrentadas por José Mário em compreender o que lera no tempo em que se dava o seu processo formativo, volta-se a postular algumas premissas concernentes à memória, reforçando a proposição que indica haver um processo de escolha feita por quem lembra, acerca do que lembra e, sobretudo, daquilo que, uma vez lembrado, é verbalizado, silenciado ou apagado. Conforme assevera Ecléa Bosi (1936-2017), ainda nas páginas introdutórias de sua já clássica “Memória e Sociedade: lembranças de velhos” – largamente utilizada por este escrevedor –, “A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. [...]. Lembrança puxa lembrança e seria preciso  um escutador infinito” BOSI, 1994, P. 39). Mais adiante, ao discorrer sobre os diversos teóricos da memória que dão lastro aos pressupostos com os quais ela lida por todo o seu corolário de argumentos, Bosi propõe o enunciado que este garatujador considera a pedra de toque com a qual se deve lidar, ao tratar de produzir estudos ou realizar pesquisas, tendo a “memória” – individual ou social/coletiva - como campo para a  reflexão histórica. Disse ela que, “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem  o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O  sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma  repetição do estado antigo, mas uma reaparição. (BOSI, 1994, P. 81).

É assim que, conforme relata no último capítulo da obra, ao retornar dos espaços onde ela realizara as entrevistas, Bosi propõe a si mesma, algumas reflexões, enquanto se encaminha para a sua residência ou mesmo, para talvez, realizar uma segunda entrevista do dia, observando os espaços por onde transita, procurando no seu próprio rememorar, os elementos que tragam à sua lembrança, vestígios do lugar por onde passara a caminho da escola – quando jovem – ou, quando ainda criança, levada pelas talvez já trêmulas mãos do seu avô. Daqueles cismares carregados de tempos pretéritos, aquela então pesquisadora acaba por concluir que:

 

“[...]. Para localizar uma lembrança não  basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas,  pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado. Como  transmitiríamos a nossos filhos o que foi a outra cidade, soterrada embaixo da atual, se não existem mais as velhas casas, as árvores, os muros e os rios de outrora?” (BOSI, 1994, p. 413).

 

Neste sentido, se pretende que este “desenrolar de fios de meadas” propugnada na passagem acima transcrita, seja um pouco a que se propõe este escrevente, ao rebuscar nos seus relembrares, um conjunto de fragmentos que tem procurado encaixar nestes garatujares. Com um tal desenrolar, pode ser que se consiga apreender algumas das muitas nuances que envolvem o lembrar e, principalmente, ao se trazer o lembrar para a formulação de algumas reflexões que ajudem na construção de alguns postulados que permitam compreender o trabalho desenvolvido pela memória, tanto no que respeita ao indivíduo de per si – que conforme Halbwach “é quem lembra” –, quanto no que tange à sociedade.

Portanto, retomando uma parte do caminhar de José Mário em seu esforço para se ajustar à necessidade de se fazer adequar aos parâmetros sociais de escolarização, de aquisição de cultura e de incorporação de hábitos que indicassem algum nível de civilidade, aqui se pretende evocar a obrigação de que se fizessem leituras que lhe foram dadas como tarefa obrigatória – tanto quanto aos demais estudantes, saliente-se – durante o transcurso do seu processo escolar. Embora ele tenha cursado três vezes a sétima série, conforme já se apontou em postagens anteriores, em todas elas tendo havido obras a serem lidas, somente três delas permaneceram na sua lembrança, apesar de, somente os seus títulos, pois, exceto uma, todas as demais lhe foram impostas pela autoridade escolar: a professora de Português ou, para os que preferem, de Comunicação e Expressão.

A primeira das obras aludidas, lida na quinta série iniciada em Alagoinhas, mas integralizada em Salvador, no Complexo Escolar Carneiro Ribeiro Filho, em 1975, foi “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré (1898-1984), que, conforme já se salientou, apenas o título permaneceu na lembrança daquele aluno que se esforçava por cumprir os deveres estudantis, sem no entanto, atinar para a razão daquela leitura, daquela obra e, menos ainda, sem a compreensão do que traria para o seu desenvolvimento escolar e pessoal, uma leitura descontextualizada da sua realidade social, econômica, cultural e, ainda, qual a relação que teria que estabelecer entre os personagens e as suas peripécias, com o viver do leitor em seus limites sensoriais. Além disto, inquiria ele, se haveria alguma  possibilidade de trazer para si e para o seu dia a dia, algum resultado prático daqueles enredos. Cria que não; ao menos, não lhe fora indicado que o houvesse. Aquele leitor compulsório, sequer sabia que se tratava de obra voltada para o público infanto-juvenil, exceto, o conjunto dos seus personagens. Uma outra leitura de uma obra da mesma autora “Éramos Seis”, fora igualmente imposta àquele aluno, em um tempo e em uma série que ele não saberia precisar – talvez, aquela leitura tenha sido feita na sexta série, cursada em parte no Instituto Central Isaías Alves (ICEIA) em Salvador ou, já no Centro Integrado Luís Navarro de Brito, em Alagoinhas, no ano de 1976 –, com o mesmo resultado da primeira, continuando a não compreender o porquê de sua leitura e da obrigatoriedade de a fazer. Não lhe fora dado conhecer o contexto em que a obra fora escrita – se o foi dado, lhe escapou à memória e, sobretudo, à compreensão –, o que talvez o ajudasse a melhor entender o que lia mas, principalmente, por que e para que lia. Isto é: fora uma leitura feita para cumprir a obrigatoriedade escolar e realizar a tarefa que teria uma nota a ser atribuída, que lhe ajudaria a compor a média por meio da qual poderia vir a ser aprovado.

A segunda das obras que lera por obrigação escolar, que lhe fora apresentada no formato de livro gravado -, talvez tenha sido aquele que tomara contato pela primeira vez naquela modalidade (cuja voz de leitura, este autor não lembra com precisão se foi a da professora Ailma ou da também professora Zilma)– foi  escrita por Maurice Druon (1918-2009), cujo contato se deu na última das sétimas séries, aquela que fora cursada até o fim e que se lograra passar adiante no processo de escolarização. Ali, o estudante em questão, já entrara no ano XX do seu existir; o livro que constava no conjunto das leituras obrigatórias para a sétima série, ainda que aquela turma fosse composta por gente que já contava mais de quinze ou dezesseis anos, seria uma obra infanto-juvenil, “O Menino do Dedo Verde”. Dela, ainda restam alguns fragmentos do seu enredo, sobretudo, aquela ideia de que Tistu, seria um “anjo” e, como tal, conseguira transformar em flores os projéteis que seriam usados em um conflito iminente e,que fora evitado, por conta daquela inesperada transformação. Mas, onde estaria o contexto daqueles escritos? Qual a razão para os ler, quais as lições a se tirar de tal leitura e, claro: para que fazer tal leitura, a não ser para se incutir os elementos gramaticais e redacionais de sua composição? Tais perguntas, evidentemente, ficariam sem respostas, exceto, talvez, a última, uma vez que os alunos foram inquiridos pela excelentíssima senhora professora, sobre tais propósitos. No entanto, nada de entrelinhas, subjacências ou intertextos que ali pudessem existir, que poderiam ser apontados e, claro, instigar um aprofundamento naquele conteúdo, por parte daqueles alunos.

Por fim, para o que se tem proposto discorrer neste rememorar de tempos idos, a terceira e última obra que se leu por conta da obrigatoriedade de se percorrer as páginas de um arrazoado literário para fins didáticos e escolares foi “Clarissa”, tendo sido a única produção literária que não foi imposta a José Mário mas, sim, escolhida em comum acordo com a professora Edna Garcia Batista (1945-2017), com quem ele cursara a oitava série e, saliente-se, de quem se tornou um pouco mais do que um aluno, pois acabou por construir uma amizade que se desenvolveu para além dos muros escolares. Trata-se de uma das diversas obras escritas por Érico Veríssimo (1905-1975), que aquele aluno lera em Braille, um pouco antes de a eleger – e também por isto – para que por meio dela, a sua professora o pudesse avaliar, exigindo dele apenas o fazer uma segunda leitura, desta vez, percorrendo aquelas páginas, na tentativa de “adivinhar”, por assim dizer, o que aquela professora poderia vir a perguntar.

Saliente-se que, em tal tipo de avaliação, prevalecia o caráter de aferição de aprendizado, apoiado no processo de memorização, o que os alunos chamavam de “decorar”. Portanto, como nos demais processos já comentados, nada de informar a existência de contextualização; nada de incentivar a compreensão do desenvolvimento da trama; nada de propor uma reflexão em torno do seu conteúdo, no que respeita à possibilidade de uma aplicação prática daquilo que eventualmente fora aprendido e ou apreendido. Aquela professora em especial, focou o seu propósito avaliativo no que dizia respeito à compreensão do texto e, eventualmente, instou o avaliado a perceber algumas variações linguísticas, apontando para a presença de alguns modos de falar de personagens bem destacados, como por exemplo, um dentre eles que, naturalmente incorporara ao seu falar, a expressão “j’ouviu?”.

 

20 de julho de 2025 – inverno brasileiro – Alagoinhas, Bahia.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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