– Os “Monômios” e os “Polinômios”
Fechados os parêntesis abertos no arrazoado anterior para que
se pudesse refletir um pouco sobre alguns questionamentos propostos acerca daquilo
que se escreveu sobre José Mário e a sua solidão em meio à multidão, volte-se, enfim,
para o ano que se iniciara com a sua ida até a câmara municipal, prestigiar a investidura
dos novos ocupantes dos cargos mais importantes da urbe alagoinhense. Ao sair daquela
cerimônia pública, aberta ao ingresso de qualquer cidadão que por ela se interessasse,
José Mário, provavelmente, dirigiu-se para o Jardim Pedro Braga, onde morava o seu
irmão paterno mais velho com senhora e filhos ou, quiçá, dirigira-se ao então bairro
do 10 de novembro, onde residia uma das suas irmãs paternas com marido e filhos,
onde talvez tivera almoçado e tirado o cochilo da tarde; mas, também, ele poderia
ter, simplesmente, retornado para a casa materna, desencantado pelo fracasso que
experimentara, no seu intento de firmar novos lassos de convivência social.
O que ele fizera no transcurso de todo os meses de janeiro, de
fevereiro e o início de março, não é possível precisar, embora se possa inferir
que mantivera a sua rotina de visitas aos seus irmãos; de observar os nasceres e
os terminares de dias quentes de verão, sem quaisquer perspectivas de novidades
que lhes pudessem trazer alguma nova expectativa de mudança significativa no seu
farfalhar. Talvez se possa aqui conjecturar, que ele estivesse dividido entre as
suas audições de rádio e a angustiante espera da chegada de março, quando retomaria
os ires e vires para o Centro Integrado Luiz Navarro de Brito, o já aludido “Estadual”,
onde cursaria a sétima série do 1º, nível 2, como eram denominadas as seriações
escolares, a partir da Lei 5692 de 1971, implementada pela Ditadura Militar que
governava o Brasil desde 1964, cujo objetivo era reformar o ensino, suprimindo dele,
elementos que pudessem incutir a subversão nos estudantes das novas gerações.
Para tanto, a dita Lei trouxera como novidade, a obrigatoriedade
de ensinar Educação Moral e Cívica no primeiro grau e, Organização Social e Política
brasileira, no segundo grau, para incutir a “brasilidade” nos jovens – o que, conforme
pensavam os seus idealizadores, evitaria que caíssem nas garras do comunismo, que
eles acreditavam estar logo ali, pronto para acercar e ganhar a juventude incauta
e inocente -, além de introduzir os “Estudos Sociais” na grade de matérias a serem
estudadas, com o fito de substituir o “pernicioso” estudo de matérias como “História”,
Geografia, Sociologia ou Filosofia, o que, ainda conforme pensavam as elites governantes,
levariam o cidadão a pensar, a refletir e, eventualmente, a contestar o regime que
os oprimia em seu direito de pensar e, até mesmo o de viver e prover as necessidades
básicas dos seus– quando prendia, torturava e tirava a vida de pessoas que julgavam
“subversivas”, cujo crime era se contrapor ao Regime, sendo Rubens Paiva, Vladmir
Herzog e Manoel Fiel Filho, aqueles que poderiam ser evocados como tendo sido os
exemplos mais ilustrativos daqueles ”tempos de chumbo” vividos no País – e, como
disse Chico Buarque de Holanda, viessem a “perceber” que os “subtraía”, por meio
de “tenebrosas transações”.
Convém aqui ressaltar que, conforme já foi dito no primeiro escrito
destas digressões, à época a que elas se reportam, José Mário não atinava para nada
do que se aludiu acima. Para ele, não havia uma “ditadura Militar” mas, sim, um
“Regime Militar” que governava o Brasil, instituído mediante uma “Revolução” em31
de março de 1964, que trazia como objetivo livrar o País da “corrupção” e do “comunismo”
que ameaçava subverter a “pátria”, a “religião” e o “civismo” dos brasileiros. Isto
é o que lhe era ensinado e, claro, no que ele acreditava. Informações acerca de
tortura como aquelas que ceifaram vidas como as de um ex-deputado, de um jornalista
e de um operário, massacres como os do Araguaia, por exemplo, a ele não chegara,
se não, muito tibiamente, quando passara a cursar o segundo grau e, quando já contava
vinte e um para vinte e dois anos e, mais claramente, um pouco mais tarde, quando
entrara no curso de Licenciatura em História, na Faculdade de Formação de Professores
de Alagoinhas, em 1986, quando contava vinte e cinco anos.
Conforme já se disse, ali, aos dezessete, José Mário não possuía
acesso a qualquer tipo de meio de informação que não fosse o rádio, meio vigiado
bem de perto pela Censura e, que também exercia a autocensura; aos jornais, às revistas
ou a quaisquer outros meios de difusão escritos, mesmo os de caráter favorável ao Regime, ele não tivera como aceder,
visto não haver nenhuma outra forma de leitura compatível com a condição de cegueira,
que não fosse aquela propiciada pelo Braille, ou pela leitura feita por terceiros.
Considerando-se que as pessoas do seu convívio que eventualmente pudessem ler
algum impresso estivessem no mesmo patamar que ele, no que tange à leitura meramente
textual, sem quaisquer níveis de interpretação e/ou inserção nas camadas intertextuais,
pouco ou nada lhe faria avançar no terreno do conhecimento das vicissitudes da política
e da sociedade brasileira de então.
Assim, nem mesmo as chamadas “músicas de protesto” eram por ele
compreendidas como tais; quando muito, eram apreendidas como irreverentes e ousadas,
sem lhe causar maiores impressões, no que tange a compreender plenamente a mensagem
que os seus autores e/ou intérpretes procuravam passar. Embora José Mário apreciasse
a belíssima interpretação de “Cálice” e, até cantasse aquela música lançada em 1978,
que ele ouvira na rádio Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, nada entendia da subliminaridade
que trazia aquela letra, que, inclusive fora severamente censurada pela diocese
de Belém, o que, aliás, ele considerou absurda pois, conseguira entender que a letra
não tratava de criticar um dos caros elementos da Igreja Católica, conforme entendia
um dos seus prelados. No entanto, ele não conseguia associar aquele tipo de texto
à situação política vivida naquele Brasil em que vivia; não compreendia que se tratava
de uma música que pretendia denunciar o regime militar que, além de acumular crises econômicas
e sociais – que ele desconhecia naquele momento, volte-se a salientar -, também
fazia crescer o número de mortos e desaparecidos políticos.
Mas, enfim, chega março e com ele, talvez, logo na sua primeira
semana, o início do ano letivo. Com ele, também se reencontram antigos colegas,
toma-se contato com outros novos e, no seu já velho conhecido Estadual, recomeça
o périplo na busca pela continuidade do seu processo formativo: era a sétima série
que para ele se apresentava, como mais uma etapa que precisaria completar. Nela,
tomara contato com algumas matérias que lhe pareciam de fácil absorção , como a
já aludida Educação Moral e Cívica e os inúteis Estudos Sociais; outras, se lhe
afiguravam com um maior grau de dificuldade, o que exigiria dele um pouco mais de
esforço cognitivo para dar conta daquilo que lhe seria cobrado, como fora o caso
de mais uma invenção do Regime, “comunicação e expressão”, que pretendia juntar
em uma única matéria, a gramática com os seus intrincados conteúdos, a Redação,
com as suas técnicas do “bem escrever” e a literatura, resumida a leituras de alguma
obra indicada pelo professor, cujo entendimento era cobrado mediante questões pouco
abrangentes ou inovadoras, no que tange ao real interpretar de texto.
Mas, ainda mais grave foi o modo como se lhe afigurava a velha
e quase intransponível matemática, com aspecto de que lhe impingiria maiores dificuldades
para atravessar os seus emaranhados de parêntesis, colchetes e chaves, os tão temidos
e, para ele, indecifráveis “monômios” e “polinômios”. Aliás, ao que parece, todos
os estudantes que os tiveram que enfrentar, sempre se perguntaram, no auge da sua
agonia por não conseguir compreender a razão de ser daqueles indigitados, qual a
necessidade de ser imposto a todos o seu ensino? Qual a utilidade prática que aquilo
viria a ter para o cidadão que, mais tarde, se teria que apresentar para habilitar-se
em Administração, Secretariado, magistério ou enfermagem? Visto que há bem pouco
tempo foram extintos os cursos colegiais e Clássicos, para que atormentar aqueles
adolescentes, mormente, aqueles que não possuíam qualquer pendor pelos cálculos?
A despeito de tais questões ainda permanecerem sem resposta e
os tais “monômios” e “polinômios” permanecerem atormentando a juventude dos tempos
da “Inteligência Artificial”, José Mário foi fragorosamente derrotado por eles,
naquele ano e no seguinte.
Professor José Jorge Andrade Damasceno – alagoinhas 02 de fevereiro
de 2025
historiadorbaiano@gmail.com
José Mário um estudante comum do interior da Bahia em tempo de ditadura alheio ao que ocorria no país por conta de sua vida simples, pacata e sem acesso à informação.
ResponderExcluir