sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A SÉTIMA SÉRIE EM TRÊS TEMPOS - I –

 

1977: Sem Escola, Sem trabalho E Sem Dinheiro

 

A memória coletiva, que é desencadeada a partir dos rememorares do indivíduo, segundo o entendimento de autores como Maurice Halbwach (1877-1945), Paul Ricöeur (1913-2005), dentre outros, como já se tem insistido, ao procurar trazer o passado para o presente, além de retomar alguns fragmentos do passado abordado, só o pode fazer mediante uma ressignificação daquilo que é lembrado, para recompor a história vivida socialmente em um tempo dado. É pois o caso deste escrevedor que vem procurando recompor um passado já vivido em algumas áreas, tais como a escola, o trabalho, o cotidiano e, em algumas vezes, até um certo construto cultural, político e econômico que o cercara em um tempo marcado por diversas nuances de sua percepção de mundo, por vezes, ainda muito pouco profunda. Tal percepção foi desenvolvida com o passar dos anos; o que o leva a reconhecer os limites que então o cercavam. Logo, as suas reminiscências, inevitavelmente, ao se afluírem ao centro do seu pensar, já estarão modificadas, precisamente, por aquele desenvolvimento. Com estes elementos em mente, neste e nos dois próximos arrazoados, se pretende, além de trazer alguns elementos vividos por José Mário nos quase cinquenta anos já transcorridos do seu mourejar em busca de afirmação como pessoa, como cidadão e como alguém que se apresentava ao mundo para aprender dele, quer fosse através do processo de escolarização, quer fosse pelo viver em um mundo no qual, como todos os demais que com ele se empenhavam em se fazer inserir no âmbito da vida adulta, mergulhara no processo de construção dos meios para ingressar no conjunto da  chamada “população economicamente ativa", procurará trazer ao leitor, algumas reflexões que apontem para o desenvolvimento do seu modo de pensar e de perceber o mundo à sua volta, na medida em que os seus êxitos e/ou os seus fracassos, possam contribuir para o seu preparo intelectual, cognitivo e emocional, com o fito de se apresentar mais firme e seguro, diante dos enfrentamentos que terá diante de si, vida a fora.

É assim que, conforme já foi dito em arrazoados anteriores, José Mário, enfim, entrava em sala para iniciar a sua caminhada na sétima série. Também, igualmente já se disse, que ele estava com pelo menos três anos de atraso em relação àquilo que era considerado com “idade escolar”, para estar naquela série. Por esta razão, quase todos os seus colegas eram mais novos do que ele, mais ou menos naquele momento da vida; embora houvesse um ou outro mais próximo da sua faixa etária, isto consistia na tão propalada exceção, que acaba por confirmar a regra. Ao que parece, as turmas do vespertino eram construídas considerando-se os grupos que de alguma maneira já haviam ultrapassado a idade escolar ideal para a série que pretendiam cursar. Vem daí, o esforço para que uma parte da composição delas estivesse aliada com aquele princípio. Mas, é evidente que isto não se conseguiria plenamente, visto que, as diferenças significativas existentes, mesmo naqueles grupos com os quais se buscava homogeneizar a distribuição de estudantes da forma mais equânime que se pudesse, não poderiam ser disfarçadas. Portanto, a despeito daqueles esforços de uniformização das turmas, formando-as com alunos muito díspares em seus modos de ser, em seus modos de viver, em seus lugares de habitação, em suas maneiras de apreensão de mundo, em suas faixas etárias – ainda que aproximadas -, todas aquelas diferenças, bem como aquelas outras encontradas nos níveis de desenvolvimento cognitivo, de capacidade de apreensão dos conteúdos propedêuticos, se apresentavam, inexoravelmente, quando chegava a hora de se aplicar e/ou desenvolver o processo de ensino e de aprendizagem.

Certamente, nem José Mário, nem os demais alunos – ao menos, grande parte deles -, sabiam da existência de tais esforços. O que ele sabia, isto sim, é que precisaria envidar os seus e, com muito maior empenho em o fazer, para que pudesse caminhar com alguma firmeza, com o fito de alcançar o fim do ano e com ele, a aprovação. Logo de princípio, ele precisaria encontrar parceiros que o pudessem ajudar naquele intento; colegas que lessem o que os professores escrevessem no quadro e, como quase sempre acontecia, não dissessem o que haviam escrito; aquele colega, certamente, precisaria ler para os dois, pois, além de o fazer para José Mário, precisaria fazer também para si, uma vez que, deveria copiar em seu caderno. Para não sobrecarregar em demasia e, um dentre eles, precisaria ter outros que se dispusessem a colaborar consigo, naquela mesma tarefa, dividindo a carga a ser levada por eles, no geral.

De modo que, isto não lhe custou muitos dias para assim suceder, uma vez que, ele ali encontrara um antigo colega dos tempos do ensino primário, nas suas duas últimas séries, transcorrido nas dependências da escola Brasilino Viegas, ocasião em que já interagiam como parceiros de estudos e de troca de ideias, além de dividirem muitas e duradouras experiências de aprendizagens. José Mário e aquele grande amigo, não perderam de todo o contato, apesar de não se encontrarem em sala de aulas há pelo menos três anos, pois entre os dois se construiu uma excelente relação de profícua amizade. Entre o fim do ensino primário e o reencontro dos amigos na sétima, José Mário o visitara algumas vezes em sua residência – poucas, é certo, -, para tardes memoráveis de conversas e sonoras gargalhadas...

Dessarte, aquele e alguns outros colegas se revezavam na “arte” de ditar o quadro para o colega que o não podia ver; também se agrupavam para estudos coletivos, sobretudo, nas matérias onde as dificuldades de acesso aos livros didáticos, não se restringiam ao colega cego – que aliás, não tinha acesso a obras em braile, daquelas utilizadas pelos professores em sala -, mas, se estendiam àqueles outros que, por razões as mais diversas, não as poderiam adquirir para o seu uso pessoal.

Por outro lado, um outro esforço que José Mário precisaria envidar para continuar a caminhar no seu processo de formação escolar, seria o de desenvolver os meios a partir dos quais, ele pudesse interagir com os seus professores, com a pretensão de permitir a comunicação escrita entre ele e os seus mestres, visto que, aqueles docentes não sabiam Braille; outros só ouviram falar daquele método de leitura e escrita usado pelos cegos; e, alguns deles, sequer ouviram falar da existência de um sistema  em forma de pontos grafados em alto relevo, por meio do qual o aluno cego acedia às obras literárias, àquelas produzidas para fins didáticos ou mesmo, realizavam as suas avaliações. Para tanto, ele precisou recorrer à escrita datilográfica, por meio da qual poderia comunicar aos seus professores os resultados de sua aprendizagem, com o evidente impedimento de ele mesmo poder ler aquilo que escrevera, ainda que para retificar a grafia de uma palavra, corrigir ou reparar algum ponto avaliado. Ou seja, do jeito que saísse, estava saído.., não havia jeito a ser dado, nem remédio a ser aplicado.

Um outro inconveniente que se apresentara àquela solução buscada, se referia ao modo como se procederia com a temível matemática, com os seus inúmeros modos de construção formados por letras, sinais, colchetes, chaves e parêntesis matemáticos. Como ele faria tudo aquilo em uma máquina de escrever comum, visto que, mal ele conseguia escrever de maneira correta as construções da língua portuguesa? Neste embalo, também se acresce o estudo da língua inglesa, que, aliás, ele sequer via sentido prático – ou mesmo a francesa, pela qual ele se afeiçoara -,  visto que ele nunca houvera tido contato com as suas formas gráficas. Estas e outras questões se lhe apresentavam ao espírito, por todo o tempo que precisou enfrentar os processos de avaliação, principalmente.

Aqui, faz-se necessário abrir um parêntesis, para considerar que, por conta das circunstâncias que provocaram a saída de José Mário do Instituto dos Cegos da Bahia, ele tinha bem claro que não contaria com qualquer apoio especializado, advindo do “setor Braille” da Secretaria de Educação da Bahia, visto que ele fora tido como aluno rebelde e indisciplinado, de modo que, com tais considerações, ele estaria alijado do rol daqueles pelos quais se teria alguma atenção. Além disto, acrescente-se o fato de que, para as dirigentes daquele órgão, o diminuto número de professores disponíveis para atuar naquele tipo de “apoio”, a prioridade deveria ser dada aos alunos da capital e, claro, a aqueles que estivessem enquadrados nos afetos pessoais e/ou nos cânones disciplinares das “maestras” que davam o tom da música que os componentes da orquestra deveriam tocar.

Malgrado aquele aluno rebelde e indisciplinado ter tomado o rumo do seu caminhar nas próprias mãos, a despeito de não dispor de nenhum recurso econômico, social ou político para o fazer, em uma tarde morna, provavelmente de abril ou maio, ele recebera a visita de uma professora recém-concluinte de um curso de capacitação para o acompanhamento de alunos cegos, dado por aquele mesmo “Setor Braille” da Secretaria de Educação, apresentando-se como estando disposta a lhe propiciar o acompanhamento tiflológico que ele precisaria, para o bom andamento daquela caminhada.

Embora alvissareira aquela visita e, claro, bastante animador o seu propósito, logo mostrou-se inexequível, uma vez que a professora não possuía vínculo como tal no Estado e, propôs ao seu quase futuro aluno, que buscasse junto à Prefeitura e ao seu titular, a sua contratação. Claro que não avançou a proposta, por uma razão óbvia: o candidato a receber o acompanhamento especializado, não possuía qualquer meio que pudesse convencer o então prefeito a fazer aquela contratação, nem mesmo quem pudesse interferir junto a ele, no sentido de a obter. Imagine o caríssimo leitor, que o incauto José Mário, até procurou ser recebido pelo alcaide alagoinhense, apresentando como única credencial, com a qual ele acreditava que "talvez o sensibilizasse", o fato de ser um dos filhos de um seu antigo empregado no comércio de carnes verdes que o dirigente municipal possuía na cidade – tão ingênuo era o estudante, ao acreditar que com aquela credencial, o prefeito acabaria por atender o seu apelo e contrataria uma professora que, embora pudesse trazer alfabetização a outros cegos, naquele momento seria só para José Mário. De mais a mais, o que importaria ao então prefeito, que era rico e quase analfabeto, se aquele cego que ora se encontrava à sua frente, em seu gabinete, fosse atendido, ou não, por uma professora especializada, ou se outros cegos viessem a ter acesso à leitura e à escrita, ou, ficassem sem o ter?

Assim, o resultado daquela inesperada visita foi a frustração de quem teve um cobiçado doce entre os lábios e, quando pensava iria desfrutar o prazer de o saborear em sua plenitude, eis que o dito lhe cai das mãos em uma rua de areia densa e suja, o que o tornara inutilizável, deixando aquele que há pouco o tivera na boca, com a sensação de quem fora esmagado  pela impotência de não ter força política para dar existência legal à proposta, além do desalento pela perda irreparável daquela oportunidade, aliás, única, em todo o tempo da sua trajetória autônoma, iniciada após voltar de um curto período estudando em Salvador.

Mas, sejam fechados os já longos parêntesis e, retomem-se as considerações acerca dos esforços envidados por José Mário com vistas a se apropriar de ferramentas úteis ao seu bom caminhar nas sendas da escolarização, que àquela altura, se encontrava em um impasse, quanto à maneira de se estabelecer uma comunicação com os seus professores, mesmo que aquela fosse feita por uma via de mão única, visto que, ele apenas poderia se fazer ler; não poderia, no entanto, ler-se a si mesmo, nem ler o que eventualmente os seus mestres viessem a lhe escrever, a título de correção de rumos, de orientação de modos e formas de se expressar por escrito ou, redarguir-lhe em algum sentido ou direção, relativamente ao seu processo de desenvolvimento formativo.

Ainda assim, José Mário tratou de procurar aprimorar os seus parcos conhecimentos no manejo dos instrumentos datilográficos, adquiridos inicialmente em manuais em Braille, encontrados nas estantes da biblioteca do Instituto de Cegos da Bahia. Já houvera procurado fazer isto antes, quando nos meados do ano anterior tentara ingressar nos cursos de datilografia oferecidos na cidade. Não tendo porém os recursos financeiros que lhe permitissem a efetivação de matrícula em qualquer das escolas existentes, ele propôs que os horários não ocupados – por falta de alunos ou por não comparecimentos –, fossem franqueados a ele, para que pudesse, ao menos, treinar o domínio da utilização dos teclados, sem a obrigação de ser assistido por qualquer dos professores atuantes ali. Não se saberia dizer se por caridade ou por qualquer outro sentimento, o certo é que aquela proposta foi aceita e aquele estudante do “Estadual” pôde ter contato com as diversas máquinas de escrever que compunham o acervo da escola, trocando de uma para outra, logo que o seu ocupante por direito, chegasse para o fazer.

Destarte, fora lhe dado aceder duas vezes por semana a uma escola de datilografia situada no centro da cidade, bem al lado da famosa praça J. J. Seabra, conhecida como “o Coreto”, pela manhã, em um horário que lhe permitisse retornar para casa em tempo de se preparar e se dirigir para a escola, sem prejuízo do cumprimento pontual do seu turno de estudos, o que ele cumpriu rigorosamente, até meados de agosto, ou talvez já fosse setembro, aproveitando ao máximo aquela oportunidade que lhe fora conferida. Um tal empenho, resultou em bons frutos, no que tange à comunicação entre ele e os professores – não obstante os inúmeros defeitos da sua escrita, dos seus muitos vícios e desconhecimentos acerca do manejo das artes datilográficas -, no tocante à possibilidade daqueles em procederem uma avaliação rigorosa e assertiva, ao menos, assim pensava o aluno, considerando-se as matérias cujo conteúdo fosse discursivo; em outras, no entanto, as avaliações foram feitas oralmente, por escolha dos professores, aliás, saliente-se, uma forma de avaliar que ao aluno não agradava mas, pouco ou nada ele poderia fazer no sentido contrário.

Porém, a matemática, ah, a matemática, para ele, continuava um problema sem solução. As unidades se amontoavam em dezenas e centenas de cálculos não compreendidos e, por isto mesmo, mal ou  mesmo, não resolvidos, acabando por resultar em resoluções que era iguais ou inferiores a zero, implicando em reprovações em sequências infinitesimais. Neste sentido, aqueles péssimos resultados acumulados em três unidades já cursadas, restando só mais uma das quatro unidades, que compunham o ano letivo, acaba por produzir em José Mário, a certeza de reprovação iminente, o que o exasperava, uma vez que, ele não admitiria uma derrota assim, tão fragorosa, a despeito dos seus esforços no sentido de apreender os conteúdos que lhes foram apresentados; a despeito de ter razoáveis êxitos nas demais matérias, sucumbiria, justamente, naquela que ele menos compreendera, menos assimilara – sequer o mínimo para se fazer aprovar -; aquela que menos entrara na sua “cabeça animal”, conforme Raul Seixas o dissera alguns poucos anos antes, no seu “Ouro de Tolo”. Como se tudo aquilo fora pouco e, não fosse bastante, associado a tudo isto, estava o caminhar para os dezessete anos e, a necessidade de praticamente tudo aquilo que só poderia ser obtido mediante algum recurso financeiro, que por sua vez, aquela necessidade só poderia ser satisfeita, pensava o rapazinho que desconhecia o mais superficial da realidade que constituía o mundo ao seu redor, mediante a obtenção de um trabalho.

Assim pensando, sem nada dizer a ninguém, renunciou à escola e, se lançou em busca do trabalho que acreditava, supriria e  atenderia aquele seu desejo de ter com o que se fazer útil em casa e a si próprio. Ele até que, no princípio, alcançara encontrar o trabalho que, na verdade, seria utilizado como justificativa para fugir ao fracasso  escolar iminente, ao qual ele não queria se dobrar, sem um “travo de amargura”. Fora admitido como embalador em um depósito de um supermercado que se encontrava em vertiginosa ascensão na cidade, cujo horário de atuação era das oito as doze, das quatorze as dezoito horas e, seria remunerado com cem cruzeiros semanais, o que implicaria em quatrocentos cruzeiros mensais, o que correspondia a pouco mais de um terço do salário mínimo em vigor – salientando-se que havia uma considerável diferença entre o valor do salário mínimo que era pago na região suo/sudeste e nas demais regiões do Estado brasileiro. Destaque-se que, para aquele aprendiz de operário chegar até o local onde desempenharia a sua labuta, seria preciso a utilização de dois transportes ou, um até o terminal e se dirigisse a pé até lá, fazendo o tal trajeto em quatro momentos: na chegada para o início das atividades do dia; na saída para o almoço; na volta do almoço; na saída do fim do dia, o que requeria um esforço físico e mental considerável para cumprir rigorosamente aqueles horários de entrada e de saída, mesmo naqueles dias em que o trânsito na cidade ainda não era tão movimentado.

Entretanto, a sua "lua de mel" com o novo modo de viver, durara menos de um mês, malgrado a expectativa que aquele rapaz alimentara, no sentido de ter iniciado ali uma nova etapa da sua vida adulta, visto que, dali por diante, não seria mais a farda da escola, já fora da idade que teria que vestir; mas, a roupa de trabalho; não seria mais o cumprimento de horários relacionados à matérias a serem cursadas, mas horário de trabalho, pelo que seria remunerado e, cujo não cumprimento, resultaria em corte no dinheiro que teria a receber. No entanto, agastado e desencantado com a labuta diária a que era submetido um trabalhador sem qualificação e sem força física, aliás, razão pela qual fora liberado de uma “virada de turno” feita pelos demais trabalhadores, para abastecer as quatro lojas com um produto que estivera em falta – o que o fez pensar ser incapaz para realizar aquele tipo de esforço -, fê-lo recuar da empreitada laboral, solicitando a sua demissão, antes mesmo que se completasse o primeiro mês de sua vida de trabalhador.

Em suma, ao fim e ao cabo, aqueles dois movimentos intempestivos que fizera quase ao final de 1977, –acabaram por deixá-lo, sem êxito na escola – reprovado que fora por faltar nos últimos meses letivos -, sem o trabalho que logo lhe parecera infrutuoso, o que logo lhe fizera perceber o equívoco da sua decisão, intempestivamente tomada, no sentido de buscar a obtenção  de um trabalho em detrimento de continuar o processo de escolarização e, por fim, sem o dinheiro, que acreditava passaria a fazer parte do seu mourejar diário, mediante a remuneração obtida em troca do seu farfalhar no depósito daquele supermercado.

 

– Alagoinhas, 21 de fevereiro de 2025

 

Professor Jorge Damasceno– historiadorbaiano@gmail.com 

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