ao rememorar, mais uma digressão percorre o espírito.
Aqui, caberia um “post-scriptum” à última das “Seis
digressões sobre uns tempos idos – VI”, para que este escrevedor procure desenvolver
mais uma digressão em torno do dia a dia de José Mário envolvendo os dias que
se seguiram ao seu malogrado e precoce ingresso em atividade laboral remunerada,
refletindo sobre um momento do seu mourejar, que, como se perceberá no
transcurso deste enunciado, talvez possa se situar em um lapso de tempo que medeia
entre o fim do curto período em que José Mário fez a sua inserção extemporânea naquele
que mais tarde se convencionou denominar de “mundos do trabalho”, ou como
diriam os pensadores econômicos, o seu curto período de inserção no contexto em
que se agrupa a chamada “população economicamente ativa” e a sua quase imediata
exclusão daquele conjunto de pessoas que laboravam em busca de salário – embora,
sequer tenha sido inscrito nos registros estatísticos, uma vez que o seu
ingresso na atividade laboral foi informal e efêmera -, inserção que se tornou
uma experiência frustrante para aquele rapaz que pretendia se apresentar ao
mercado de compra de força de trabalho, mercado que apenas o receberia como
alguém que poderia vir a compor um “exercito de reserva de mão de obra”, que
apenas serviria para exercer um certo controle sobre a massa salarial, permitindo
o mercado comprador daquela mercadoria, então em grande expansão da correlação “demanda/oferta”
– com razoável prevalência da segunda sobre a primeira -, exercer o controle do
crescimento dos seus preços, forçando o aviltamento do seu valor. Com isto, agregaria
lucro “mais valia”, ampliando assim a pressão sobre eventuais demandas por
melhorias dos valores pagos pela utilização da força de trabalho que já se
encontrava sob o seu domínio.
Ainda em Alagoinhas, tendo deixado para trás as salas e
carteiras escolares do “Estadual”, não mais pertencendo ao conjunto dos quase
sete mil alunos que frequentavam aquele estabelecimento de ensino, José Mário,
despojado de quase tudo que intentara desenvolver naquele ano de 1977, passava
a imaginar o que faria para superar aqueles acúmulos de desastres e de decisões
tomadas sob a égide do desespero e da necessidade de fazer frente às demandas
que se lhe apresentavam, a despeito de não dispor das ferramentas adequadas
para o fazer, se colocando em um cruzar de pensamentos e ideias que lhe
fervilhava no cérebro e na alma. 1978 era logo ali; as suas perspectivas em
relação àquele ano que se aproximava, se limitavam ao trocar de calendário.
Ainda estava por completar dezessete anos e, nada de concreto levaria para o
iniciar do ano dezoito, o que bastante o afligia, na medida em que a maioridade
se aproximava célere e, noves fora a obrigação de se alistar e de tirar o seu título de
eleitor, nada mais se lhe afigurava de concreto para o ano que já estava quase
às portas.
Conforme se vem apontando ao longo dos arrazoados
anteriores, tomando-se como base o postulado de Ecléa Bosi (1936-2017), que diz
ser a memória “[...] um cabedal infinito
do qual só registramos um fragmento. [...].” (BOSI, 1994, p. 39), o que
significaria afirmar que o rememorar de um caminhar individual e/ou coletivo,
estaria diretamente imbricado no viver o presente, uma vez que é nele que a
lembrança se apresenta ao espírito daquele que lembra. Talvez, este pressuposto
ajude a aqueles que ora percorrem estas linhas, a entender um pouco melhor o
que pretende o seu autor, ao procurar trazer alguns dos elementos do cotidiano de
José Mário, na medida em que, apresenta alguns lembrares daquilo que se referem
a um tempo passado, embora, já ressignificados pelo presente. Mais
adiante, a mesma autora sustenta que “[...], a lembrança pura, quando se atualiza na imagem-lembrança, traz à tona da consciência um momento único,
singular, não repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento
por via da memória. [...].” (BOSI, 1994,p. 49). Portanto, há um esforço no sentido
de se fazer uma busca pelo rememorar de um
certo “passado”, que talvez ainda não tenha “passado”, no dizer do
francês Henry Rousso “Un Passé Qui ne passe pas”. Mais ainda: conforme a
ilustração trazida pelo italiano Enzo Traverso, em obra de 2012, “[...], a
memória nunca é cristalizada; mais se parece
com um estaleiro aberto, em contínua operação. [...]. (TRAVERSO, 2012,
p. 23).
Tomando Halbwach (1877-1945)
como referência basilar para a sustentação dos seus postulados, Bosi arremata,
para as finalidades da reflexão aqui proposta, assegurando que:
[...].
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de
representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de
um fato antigo, ela não é a mesma imagem
que experimentamos na infância, porque nós não
somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de
realidade e de valor. O simples fato de
lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de
um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 1994, p. 55).
Assim, partindo das premissas encontradas nas formulações acima
evocadas, é que se pretende discorrer sobre mais um rememorar daquele que ora
escreve estas linhas, procurando estruturar alguns nexos que propicie reflexões
sobre os elementos que forjaram uma parte da trajetória daquele que se
esforçava por se imiscuir no curso do tecido social que o envolvia, sobretudo,
na sua procura por se fazer participante da vida econômica. José Mário,
instigado pelas proposições da sua genitora, começava a perceber que o tempo
não mais lhe era favorável, no sentido de insistir em se esforçar para obter a
conclusão do seu processo de escolarização formal. Ele começava a pensar que,
não faria mais qualquer sentido, ainda matricular-se para refazer a sétima
série, no mesmo turno em que malograra
naquela primeira tentativa. Além de não querer mais se encontrar com os antigos
colegas, que no ano seguinte já estariam na oitava série – por vergonha e, com
um naco de vaidade ferida -, era para ele um tanto fora de propósito, ter sua
matrícula inserida entre aqueles alunos, que, certamente, seriam ainda mais
moços do que ele. Com isto em mente e esmagado por aquelas impetuosas vagas de
pensamentos que se lhe ocupava a massa cinzenta; premido pelas circunstâncias
e, empurrado pela necessidade premente de alcançar os degraus que precisaria
vencer para “ser alguém na vida” e, sobretudo, convencido de não haver outro
jeito para fazê-lo – mesmo já quase descrente de que aquilo assim seria, isto
é, que o processo de escolarização formal lhe daria acesso aos meios que precisava para “vencer”
a pobreza, a falta de quase tudo, inclusive a de perspectiva, saliente-se ainda
uma vez, de passagem -, ele procurou se matricular no noturno, período em que,
acreditava, estaria em meio a alunos mais ou menos da sua mesma idade, e,
talvez, com o seu mesmo nível de atraso, no concernente à tal de “idade escolar”
adequada.
Passados os distantes folguedos e as inacessíveis festinhas
de final de ano, a realidade gritava freneticamente em sua cara que mil novecentos
e setenta e oito acabara de chegar. Impertinente e indiferente, ele se
apresentava à vida de José Mário, fazendo com que percebesse uma obviedade, que
talvez não estivesse tão clara para aquele que há pouco, entrara em sua décima
oitava volta em torno do sol: o tempo não só não para, como também, não espera.
Isto acaba por exigir dos terráqueos,
uma contínua ação e constante reação, no
sentido de se ajustar ao ritmo de seu curso, que se mantém, invariavelmente, em
cadência permanente. O tempo que rege o viver humano, portanto, passa inexorável,
implacável , indiferente às dificuldades
que alguém venha ter na compreensão do seu “passo” e/ou nunca parando nem
recuando, à espera de que sejam destravados os impasses dos caminhantes..
É pouco provável que se possa alcançar o que estivera no seu
íntimo, nem mesmo no seu ânimo, quando José Mário procurava refletir o ano que
já se findara e com ele as perspectivas não atingidas e, de que maneira pensava
encarar aquele outro em que completaria a maioridade. No entanto, talvez se
possa especular, a despeito do lapso de tempo já deixado para trás,, por meio
de alguns fragmentos de memórias que se se apresentam no momento de lembrares
presentes, partindo de algumas observações em torno dos rastros deixados pelas suas pegadas no terreno pisado entre os meses
finais daquele 1977 e, quase todos os transcorridos no ano que logo, logo se
iniciaria.
Portanto, foi entre os acordes de “maluco beleza”, “Tigresa”
e “Sonhos”, que José Mário transitou todo aquele último trimestre do ano, se
envolvendo em um episódio, embora memorável, sequer cogitável no início do seu
percurso anual – aliás, nem mesmo a sua ida à cerimônia de posse dos novos Edis
e do alcaide, acontecida no primeiro dia do ano, fora por ele cogitado, em
algum momento. O episódio aludido, se deu mais ou menos nos finais de outubro,
quando, incentivado pelo seu professor de violão, José Mário resolveu concorrer
em um concurso de calouros, na condição de intérprete, em uma festa tradicional
do bairro, realizada anualmente na Praça Santa Isabel, a “Festa da Mocidade”.
Cabe informar ao leitor, que aquela ideia não partiu dele,
embora a ele coubesse a decisão de sua execução, evidentemente. A ideia
apareceu, depois que José Mário participara de simulações de programas de
calouros, ora, na condição de jurado; ora na condição de intérprete, desenvolvidas
pelo professor, juntamente com os seus filhos, como forma de descontração e,
como eles diziam, como uma forma de desinibir, quiçá, futuros artistas. Aquela
brincadeira transcorria em um amplo espaço lateral à residência para onde ele
acorria com o fito de receber os ensinos que lhe eram propiciados pelo pai daqueles
filhos, os quais ele considerava “gênios”. A partir das lições ali recebidas,
José Mário pretendia conseguir dominar aquele instrumento que tanto apreciava, escutado
por meio das audições de rádio, nas quais gente como Wilson Dantas, Raimundo
Espinheira, entre outros, quando executavam magistralmente o “pinho”, em um
programa levado ao ar pela então Rádio Emissora de Alagoinhas, a (ZYC31) - não
sendo possível para este escrevedor precisar com qual intervalo, se semanal ou
diário -, entre as vinte e as vinte e duas horas.
Assim, em uma de suas participações naqueles programas
simulados, na condição de intérprete, José Mário surpreendeu a todos – até mesmo
a consorte do professor, que raramente aparecia para pessoas estranhas ao seu
convívio familiar, assomou à porta para ver o que se passava -, ao levar a
música de um desconhecido “Matusalém”, para defender junto àqueles jurados
mirins e o seu professor. Durante toda a execução da música “As Aventuras de
Matusalém”, tanto os jurados, quanto o seu mentor, não conseguiam conter as gargalhadas,
por conta do caráter pouco usual da composição apresentada. Mesmo assim, o intérprete
foi aplaudido e, portanto, o vencedor da noite.
Talvez fosse final de setembro ou meados de outubro e, se
avizinhava a já mencionada “Festa da Mocidade”. Acreditando poder concorrer a
algum prêmio que, de outra forma não alcançaria ter como adquirir, como um
violão, por exemplo, José Mário começou a procurar alguma música com a qual
viesse a participar dos programas de calouros, daquela vez, não mais simulados.
Mesmo a festa já tendo sido iniciada, o candidato a calouro não atinava o que
cantaria no dito certame, visto que, os candidatos do início da semana, foram
todos desbancados, um a um, por uma magistral interpretação de “Sonhos”,
composição de Peninha, com um primoroso acompanhamento e voz firme e bonita,
ostentada por um garoto que, talvez contasse coisa de 12 anos se muito, pois, a
sua voz ainda não houvera sofrido as alterações inerentes à adolescência. Chegando
em casa em uma daquelas noites de domínio absoluto do garoto, eis que José
Mário, ao sintonizar a Rádio Mundial do Rio de Janeiro – mas, também pode ter
sido a Rádio Jornal do Brasil, cuja transmissão era realizada a partir daquela mesma
cidade -, ouvira pela primeira vez a música recentemente lançada por Raul
Seixas: “No Dia em que a Terra Parou”.
Ele, por certo, entendia que, tentar interpretar aquela
melodia, seria um risco que correria, por ser uma música que os instrumentistas
encarregados pelo acompanhamento dos calouros não conheciam e, claro, José
Mário não a saberia executar corretamente ao violão, por ser ainda neófito no
manejo daquele instrumento. Não obstante tudo aquilo, no dia seguinte, ainda
bem cedo, correu para o centro da cidade e, com a benevolência dos
proprietários da “Revidisc Magazine”, ele pôde ouvir, memorizar e, em casa,
transcrever para o papel, em Braille, aquela letra que tanto o impactara,
apesar do seu pouco entendimento, acerca da mensagem que o “maluco beleza”
queria passar.
No entanto, o risco maior estava na execução da música por
parte do conjunto oficial da festa, conforme aludido linhas acima. Porém,
depois de arranhar satisfatoriamente as notas e os acordes, cria, partiu para o
tudo ou nada. No penúltimo dia da festa, quando aquele menino de voz firme e
melodiosa batia a todos os seus concorrentes, José Mário se inscreve e, vai
defender aquela música que ninguém conhecia e, por conseguinte, ninguém a
conseguiria tocar a contento, para o acompanhar. Arriscou. Pegou uma das guitarras
dos meninos do “Fantástico” – nunca sequer houvera tocado em uma antes – e se
acompanhou, não sem atropelos e tropelias, acabando por desbancar o vencedor de
todas as noites anteriores, indo assim para a final no último dia da festa.
Bem mais tarde, ao rememorar e refletir sobre aquele
episódio, José Mário acabou por reconhecer que o seu êxito naquele programa de
calouros não fora justo, uma vez que, embora tenha conseguido cantar
corretamente a música que escolhera, cometera inúmeras falhas na sua claudicante
execução à guitarra, como se fora aquele time que vence a partida com um gol em
completo impedimento do atacante, nos últimos minutos do jogo. Diante de tal
constatação, entendeu que a sua vitória naquelas duas noites, deveu-se, ainda
que não exclusivamente, à sua condição de cegueira. Evidentemente, ao chegar a
aquela conclusão, sentiu-se humilhado, pois, o garoto que vencera todos os
demais concorrentes, em todas as edições anteriores do programa de calouros,
tivera uma performance infinitamente melhor do que ele. E mais: começara a
entender um pouco, o porquê que, conforme o entendimento firme e profundamente
fincado no imaginário social, a pessoa cega é compreendida como sendo naturalmente
dotada de capacidade inerente à sua condição sensorial, para interpretação
musical e/ou instrumental. Este fundamento, equivocado, saliente-se, poderia
ter levado os jurados a ignorarem todo o desempenho dos demais concorrentes de
José Mário naquela refrega musical. Por conta disto, ele nunca mais participou
de certame semelhante.
Alagoinhas – 01 de março de 2025.
Professor Jorge
Damasceno– historiadorbaiano@gmail.com
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