sábado, 1 de março de 2025

Ainda 1977 – Um Post-scriptum

 

ao rememorar, mais uma digressão percorre o espírito.

 

Aqui, caberia um “post-scriptum” à última das “Seis digressões sobre uns tempos idos – VI”, para que este escrevedor procure desenvolver mais uma digressão em torno do dia a dia de José Mário envolvendo os dias que se seguiram ao seu malogrado e precoce ingresso em atividade laboral remunerada, refletindo sobre um momento do seu mourejar, que, como se perceberá no transcurso deste enunciado, talvez possa se situar em um lapso de tempo que medeia entre o fim do curto período em que José Mário fez a sua inserção extemporânea naquele que mais tarde se convencionou denominar de “mundos do trabalho”, ou como diriam os pensadores econômicos, o seu curto período de inserção no contexto em que se agrupa a chamada “população economicamente ativa” e a sua quase imediata exclusão daquele conjunto de pessoas que laboravam em busca de salário – embora, sequer tenha sido inscrito nos registros estatísticos, uma vez que o seu ingresso na atividade laboral foi informal e efêmera -, inserção que se tornou uma experiência frustrante para aquele rapaz que pretendia se apresentar ao mercado de compra de força de trabalho, mercado que apenas o receberia como alguém que poderia vir a compor um “exercito de reserva de mão de obra”, que apenas serviria para exercer um certo controle sobre a massa salarial, permitindo o mercado comprador daquela mercadoria, então em grande expansão da correlação “demanda/oferta” – com razoável prevalência da segunda sobre a primeira -, exercer o controle do crescimento dos seus preços, forçando o aviltamento do seu valor. Com isto, agregaria lucro “mais valia”, ampliando assim a pressão sobre eventuais demandas por melhorias dos valores pagos pela utilização da força de trabalho que já se encontrava sob o seu domínio.

Ainda em Alagoinhas, tendo deixado para trás as salas e carteiras escolares do “Estadual”, não mais pertencendo ao conjunto dos quase sete mil alunos que frequentavam aquele estabelecimento de ensino, José Mário, despojado de quase tudo que intentara desenvolver naquele ano de 1977, passava a imaginar o que faria para superar aqueles acúmulos de desastres e de decisões tomadas sob a égide do desespero e da necessidade de fazer frente às demandas que se lhe apresentavam, a despeito de não dispor das ferramentas adequadas para o fazer, se colocando em um cruzar de pensamentos e ideias que lhe fervilhava no cérebro e na alma. 1978 era logo ali; as suas perspectivas em relação àquele ano que se aproximava, se limitavam ao trocar de calendário. Ainda estava por completar dezessete anos e, nada de concreto levaria para o iniciar do ano dezoito, o que bastante o afligia, na medida em que a maioridade se aproximava célere e, noves fora a obrigação  de se alistar e de tirar o seu título de eleitor, nada mais se lhe afigurava de concreto para o ano que já estava quase às portas.

Conforme se vem apontando ao longo dos arrazoados anteriores, tomando-se como base o postulado de Ecléa Bosi (1936-2017), que diz ser a memória “[...] um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. [...].” (BOSI, 1994, p. 39), o que significaria afirmar que o rememorar de um caminhar individual e/ou coletivo, estaria diretamente imbricado no viver o presente, uma vez que é nele que a lembrança se apresenta ao espírito daquele que lembra. Talvez, este pressuposto ajude a aqueles que ora percorrem estas linhas, a entender um pouco melhor o que pretende o seu autor, ao procurar trazer alguns dos elementos do cotidiano de José Mário, na medida em que, apresenta alguns lembrares daquilo que se referem a um tempo passado, embora, já ressignificados pelo presente. Mais adiante, a mesma autora sustenta que “[...], a lembrança pura, quando se atualiza na  imagem-lembrança, traz à  tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não  mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento por via da memória. [...].” (BOSI, 1994,p. 49). Portanto, há um esforço no sentido de se fazer uma busca pelo rememorar de um  certo “passado”, que talvez ainda não tenha “passado”, no dizer do francês Henry Rousso “Un Passé Qui ne passe pas”. Mais ainda: conforme a ilustração trazida pelo italiano Enzo Traverso, em obra de 2012, “[...], a memória nunca é cristalizada; mais se parece  com um estaleiro aberto, em contínua operação. [...]. (TRAVERSO, 2012, p. 23).

Tomando Halbwach (1877-1945) como referência basilar para a sustentação dos seus postulados, Bosi arremata, para as finalidades da reflexão aqui proposta, assegurando que:

 

[...]. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição,  no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.  Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é  a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não  somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com  ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato  de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto  de vista. (BOSI, 1994, p. 55).

 

Assim, partindo das premissas encontradas nas formulações acima evocadas, é que se pretende discorrer sobre mais um rememorar daquele que ora escreve estas linhas, procurando estruturar alguns nexos que propicie reflexões sobre os elementos que forjaram uma parte da trajetória daquele que se esforçava por se imiscuir no curso do tecido social que o envolvia, sobretudo, na sua procura por se fazer participante da vida econômica. José Mário, instigado pelas proposições da sua genitora, começava a perceber que o tempo não mais lhe era favorável, no sentido de insistir em se esforçar para obter a conclusão do seu processo de escolarização formal. Ele começava a pensar que, não faria mais qualquer sentido, ainda matricular-se para refazer a sétima série, no mesmo turno  em que malograra naquela primeira tentativa. Além de não querer mais se encontrar com os antigos colegas, que no ano seguinte já estariam na oitava série – por vergonha e, com um naco de vaidade ferida -, era para ele um tanto fora de propósito, ter sua matrícula inserida entre aqueles alunos, que, certamente, seriam ainda mais moços do que ele. Com isto em mente e esmagado por aquelas impetuosas vagas de pensamentos que se lhe ocupava a massa cinzenta; premido pelas circunstâncias e, empurrado pela necessidade premente de alcançar os degraus que precisaria vencer para “ser alguém na vida” e, sobretudo, convencido de não haver outro jeito para fazê-lo – mesmo já quase descrente de que aquilo assim seria, isto é, que o processo de escolarização formal  lhe daria acesso aos meios que precisava para “vencer” a pobreza, a falta de quase tudo, inclusive a de perspectiva, saliente-se ainda uma vez, de passagem -, ele procurou se matricular no noturno, período em que, acreditava, estaria em meio a alunos mais ou menos da sua mesma idade, e, talvez, com o seu mesmo nível de atraso, no concernente à tal de “idade escolar” adequada.

Passados os distantes folguedos e as inacessíveis festinhas de final de ano, a realidade gritava freneticamente em sua cara que mil novecentos e setenta e oito acabara de chegar. Impertinente e indiferente, ele se apresentava à vida de José Mário, fazendo com que percebesse uma obviedade, que talvez não estivesse tão clara para aquele que há pouco, entrara em sua décima oitava volta em torno do sol: o tempo não só não para, como também, não espera. Isto acaba por  exigir dos terráqueos, uma  contínua ação e constante reação, no sentido de se ajustar ao ritmo de seu curso, que se mantém, invariavelmente, em cadência permanente. O tempo que rege o viver humano, portanto, passa inexorável, implacável  , indiferente às dificuldades que alguém venha ter na compreensão do seu “passo” e/ou nunca parando nem recuando, à espera de que sejam destravados os impasses dos caminhantes..

É pouco provável que se possa alcançar o que estivera no seu íntimo, nem mesmo no seu ânimo, quando José Mário procurava refletir o ano que já se findara e com ele as perspectivas não atingidas e, de que maneira pensava encarar aquele outro em que completaria a maioridade. No entanto, talvez se possa especular, a despeito do lapso de tempo já deixado para trás,, por meio de alguns fragmentos de memórias que se se apresentam no momento de lembrares presentes, partindo de algumas observações em torno dos rastros deixados pelas  suas pegadas no terreno pisado entre os meses finais daquele 1977 e, quase todos os transcorridos no ano que logo, logo se iniciaria.

Portanto, foi entre os acordes de “maluco beleza”, “Tigresa” e “Sonhos”, que José Mário transitou todo aquele último trimestre do ano, se envolvendo em um episódio, embora memorável, sequer cogitável no início do seu percurso anual – aliás, nem mesmo a sua ida à cerimônia de posse dos novos Edis e do alcaide, acontecida no primeiro dia do ano, fora por ele cogitado, em algum momento. O episódio aludido, se deu mais ou menos nos finais de outubro, quando, incentivado pelo seu professor de violão, José Mário resolveu concorrer em um concurso de calouros, na condição de intérprete, em uma festa tradicional do bairro, realizada anualmente na Praça Santa Isabel, a “Festa da Mocidade”.

Cabe informar ao leitor, que aquela ideia não partiu dele, embora a ele coubesse a decisão de sua execução, evidentemente. A ideia apareceu, depois que José Mário participara de simulações de programas de calouros, ora, na condição de jurado; ora na condição de intérprete, desenvolvidas pelo professor, juntamente com os seus filhos, como forma de descontração e, como eles diziam, como uma forma de desinibir, quiçá, futuros artistas. Aquela brincadeira transcorria em um amplo espaço lateral à residência para onde ele acorria com o fito de receber os ensinos que lhe eram propiciados pelo pai daqueles filhos, os quais ele considerava “gênios”. A partir das lições ali recebidas, José Mário pretendia conseguir dominar aquele instrumento que tanto apreciava, escutado por meio das audições de rádio, nas quais gente como Wilson Dantas, Raimundo Espinheira, entre outros, quando executavam magistralmente o “pinho”, em um programa levado ao ar pela então Rádio Emissora de Alagoinhas, a (ZYC31) - não sendo possível para este escrevedor precisar com qual intervalo, se semanal ou diário -, entre as vinte e as vinte e duas horas.

Assim, em uma de suas participações naqueles programas simulados, na condição de intérprete, José Mário surpreendeu a todos – até mesmo a consorte do professor, que raramente aparecia para pessoas estranhas ao seu convívio familiar, assomou à porta para ver o que se passava -, ao levar a música de um desconhecido “Matusalém”, para defender junto àqueles jurados mirins e o seu professor. Durante toda a execução da música “As Aventuras de Matusalém”, tanto os jurados, quanto o seu mentor, não conseguiam conter as gargalhadas, por conta do caráter pouco usual da composição apresentada. Mesmo assim, o intérprete foi aplaudido e, portanto, o vencedor da noite.

Talvez fosse final de setembro ou meados de outubro e, se avizinhava a já mencionada “Festa da Mocidade”. Acreditando poder concorrer a algum prêmio que, de outra forma não alcançaria ter como adquirir, como um violão, por exemplo, José Mário começou a procurar alguma música com a qual viesse a participar dos programas de calouros, daquela vez, não mais simulados. Mesmo a festa já tendo sido iniciada, o candidato a calouro não atinava o que cantaria no dito certame, visto que, os candidatos do início da semana, foram todos desbancados, um a um, por uma magistral interpretação de “Sonhos”, composição de Peninha, com um primoroso acompanhamento e voz firme e bonita, ostentada por um garoto que, talvez contasse coisa de 12 anos se muito, pois, a sua voz ainda não houvera sofrido as alterações inerentes à adolescência. Chegando em casa em uma daquelas noites de domínio absoluto do garoto, eis que José Mário, ao sintonizar a Rádio Mundial do Rio de Janeiro – mas, também pode ter sido a Rádio Jornal do Brasil, cuja transmissão era realizada a partir daquela mesma cidade -, ouvira pela primeira vez a música recentemente lançada por Raul Seixas: “No Dia em que a Terra Parou”.

Ele, por certo, entendia que, tentar interpretar aquela melodia, seria um risco que correria, por ser uma música que os instrumentistas encarregados pelo acompanhamento dos calouros não conheciam e, claro, José Mário não a saberia executar corretamente ao violão, por ser ainda neófito no manejo daquele instrumento. Não obstante tudo aquilo, no dia seguinte, ainda bem cedo, correu para o centro da cidade e, com a benevolência dos proprietários da “Revidisc Magazine”, ele pôde ouvir, memorizar e, em casa, transcrever para o papel, em Braille, aquela letra que tanto o impactara, apesar do seu pouco entendimento, acerca da mensagem que o “maluco beleza” queria passar.

No entanto, o risco maior estava na execução da música por parte do conjunto oficial da festa, conforme aludido linhas acima. Porém, depois de arranhar satisfatoriamente as notas e os acordes, cria, partiu para o tudo ou nada. No penúltimo dia da festa, quando aquele menino de voz firme e melodiosa batia a todos os seus concorrentes, José Mário se inscreve e, vai defender aquela música que ninguém conhecia e, por conseguinte, ninguém a conseguiria tocar a contento, para o acompanhar. Arriscou. Pegou uma das guitarras dos meninos do “Fantástico” – nunca sequer houvera tocado em uma antes – e se acompanhou, não sem atropelos e tropelias, acabando por desbancar o vencedor de todas as noites anteriores, indo assim para a final no último dia da festa.

Bem mais tarde, ao rememorar e refletir sobre aquele episódio, José Mário acabou por reconhecer que o seu êxito naquele programa de calouros não fora justo, uma vez que, embora tenha conseguido cantar corretamente a música que escolhera, cometera inúmeras falhas na sua claudicante execução à guitarra, como se fora aquele time que vence a partida com um gol em completo impedimento do atacante, nos últimos minutos do jogo. Diante de tal constatação, entendeu que a sua vitória naquelas duas noites, deveu-se, ainda que não exclusivamente, à sua condição de cegueira. Evidentemente, ao chegar a aquela conclusão, sentiu-se humilhado, pois, o garoto que vencera todos os demais concorrentes, em todas as edições anteriores do programa de calouros, tivera uma performance infinitamente melhor do que ele. E mais: começara a entender um pouco, o porquê que, conforme o entendimento firme e profundamente fincado no imaginário social, a pessoa cega é compreendida como sendo naturalmente dotada de capacidade inerente à sua condição sensorial, para interpretação musical e/ou instrumental. Este fundamento, equivocado, saliente-se, poderia ter levado os jurados a ignorarem todo o desempenho dos demais concorrentes de José Mário naquela refrega musical. Por conta disto, ele nunca mais participou de certame semelhante.

 

Alagoinhas – 01 de março de 2025.

 

Professor Jorge Damasceno– historiadorbaiano@gmail.com

 

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