Já se disse em outras ocasiões, que, apesar de procurar não
demonstrar os seus reagires de modo efusivo e de não ser dado a expansividades,
José Mário, como os demais terráqueos, possuía os seus momentos de reflexões e
ponderações. Logo após ter saído daquela sala localizada no pavilhão Jairo Azi –
àquela altura, já conhecido entre os estudantes e professores como “treme-treme”
-, ele voltara para casa por volta das dezessete horas, fazendo o trajeto de
cerca de dois ou três quilômetros andando, que consistia em sair dos seus muros,
seguindo pela rua 21 de abril até a longa rua Severino Vieira; descê-la até o
cruzamento com a Luiz Viana, virando a esquerda e, caminhar até as proximidades
do “Campo do Curtume”, virar a direita; atravessar uma ponte rústica que ligava
o 2 de julho ao antigo matadouro; atravessar a via férrea, virar à esquerda e,
logo em seguida, virar a direita, andando em uma rua inteiramente de chão
batido, marcada por valetas por onde corriam os esgotos, por mais cerca de quatrocentos
metros, em direção da “Captação do Saae”, chegando por fim, ao seu lugar de
morada. Isto ele fizera, como se quisesse ruminar em seu cérebro, não só aquele
ano letivo em que ele finalmente tivera êxito em concluir a carrancuda sétima
série, bem como, procurava mentalmente palmilhar cada degrau daqueles lances de
escada que precisara vencer e, entre escorregos e tropeços, tivera que voltar
por mais duas vezes a intentar alcançar o seu topo. Alguns degraus eram
limosos; outros, estavam quebrados em alguns lugares chaves, dificultando o caminhar,
se não suave e tranquilo, ao menos, seguro e firme, rumo aos seus patamares.
Ponderava outrossim, porque insistira em querer vencer aqueles degraus, prescindindo
dos corrimões que o ajudariam a se equilibrar, nos momentos em que escorregasse
em um ponto coberto de limo, ou tropeçasse em algum obstáculo inerente mesmo,
ao esforço de subir degraus tão incertos no que tange à sua conservação, quanto
desnivelados, no que tange à regularidade de sua construção.
Ao fim da caminhada, onde alternara lapsos de alegria por
ter finalmente sido habilitado a cursar a oitava série, entremeados com
espasmos de medos e dúvidas, no sentido de como seria aquela última etapa do
primeiro grau, acerca das ponderações e reflexões que intentara fazer enquanto
caminhava, concluíra, não sem uma profunda desilusão, que não alcançara
qualquer resposta aos seus “Por quês”, ainda menos, aos seus “para quês”, que
aliás, o acompanhara por todos aqueles anos de enfrentamentos da realidade que
teimava em lhe gritar na cara, o que ele de fato era – ninguém, -, o que ele de
fato possuía – nada, coisa alguma, perspectiva nenhuma -, o lugar a que de fato
ele pertencia – a pobreza que embargava as possibilidades; a cegueira inibidora
de sonhos e de quimeras.
E ainda, como se tudo não bastasse, inúmeras vezes ouvira de
um bom número de professores, a tese que, ainda sem saber como e sem ter o
necessário instrumental teórico ele de si para consigo combatia, que rezava,
com toda a força do “cientificismo” que era evocado para a sua internalização,
que dizia ser o “homem” u produto do seu meio – sobretudo, o social.
Nunca é demais salientar que, com aquela assertiva, se
pretendia naturalizar a ideia de que a prostituta geraria inúmeras outras prostitutinhas;
os ladrões, outro tanto de ladrõezinhos; os beberrões, criariam algumas levas
de beberrões, em profusão; a empregada, cujo salário era um lugar para morar, alguma
roupa para “tapar as vergonhas” e alguma
coisa para comer, inevitavelmente, geraria outras tantas empregadas que, substituiriam
as suas genitoras, progenitoras, gerações infinitamente repetidas – aliás, era
esta, a melhor parte da aplicação da aludida assertiva, pois, reproduziria uma
escravidão não declarada e, plenamente justificada -; o pobre, outro tanto ainda maior de pobrezinhos;
o carvoeiro, faria das suas proles, outros tantos pequenos carvoeiros, que gerariam
outros, mais outros; sem que viesse a haver, em qualquer tempo, alguma solução
de continuidade. Tal proclamação acrítica, poderia – e talvez, se queria –
provocar uma apatia social – assim como um aplacar de consciências nobres e
letradas, inclusive do magistério que se acreditava “casta” superior, que se empenhava
pela humanidade, embora não acreditasse na melhoria dela -, o que,
evidentemente, inibiria qualquer outro esforço, de quem quer que fosse, no
sentido de procurar quebrar aquele ciclo já consolidado e, com as suas bases
solidamente fincadas, não só entre os que se encontravam no topo da pirâmide,
quanto e, sobretudo, daqueles que formavam a base dela, inclusive, no seu
imaginário. Daí perguntar o sujeito, esmagado não só pelas suas próprias
dificuldades individuais e familiares mas, também pelo peso da pirâmide que o
esmaga social, cultural e economicamente: para quê? Por quê?
Portanto, é já entrado nos seus vinte anos, que José Mário chega
na sala de aula, no mês de março de 1981, para cursar a oitava série, ano que,
não houvesse contratempos, fecharia o ciclo do então chamado primeiro grau, compreendendo
os quatro anos iniciais, cursados no Grupo Escolar Brasilino Viegas, entre os anos
de 1969 e 1974 e, os quatro outros anos,
cursados no Estadual, no Complexo Escolar Carneiro Ribeiro Filho, No instituto
Central de Educação Isaías Alves (ICEIA) – estes últimos em Salvador entre 1975
e 1976 – e , por fim, outra vez no Centro Integrado Luís Navarro de Brito
(Estadual), entre 1976 e 1981. Como se pode perceber, foi preciso percorrer quase
vinte e dois anos – alguns de seus colegas nasceram neste intervalo e se
formaram, enquanto ele, patinava no terreno escorregadio do primeiro grau –
para que José Mário viesse a integralizar as séries que lhe dessem acesso ao
segundo grau, indicando que ele precisou de cerca de dois anos e meio para conseguir
completar cada uma das séries. Isto fez com que ele ficasse muito para trás, no
que tange ao caminhar necessário em busca de alcançar “um lugar ao sol”, como
se diria, na medida em que, para pleitear alguma vaga de emprego em oferta, não
obstante a avultada demanda – e, ainda uma vez, não obstante às suas condições
sensoriais desfavoráveis – era preciso ter, ao menos para ele, alguma formação
que lhe cacifasse para lograr êxito na empreitada.
De modo que, aquele novo período escolar, no âmbito do
processo de educação formal – ou, como parte dela - fora iniciado com José
Mário já trazendo algumas preocupações, expressas, aliás, por outras pessoas do
seu entorno: o que faria para se bastar, uma vez que andava para os vinte e um
anos e nada tinha de seu? Quando, como e com quem constituiria uma “família”? Esta
última preocupação se lhe assoma ao espírito àquela altura do seu viver, por
conta de uma guinada que dera um ano antes, fazendo-se ingressar na Primeira
Igreja Batista de Alagoinhas, na condição de um de seus membros, estabelecendo
um elemento a mais na sua construção mental. No entanto, apesar de algumas
vezes pensar naqueles temas, compreendia de antemão, que nenhuma resposta
objetiva e concreta poderia ser encontrada, enquanto não houvesse alcançado uma
formação que lhe permitisse dar os passos necessários e indispensáveis para desenvolver
quaisquer planos com o fito de avançar em qualquer direção que desejasse e/ou
pudesse decidir.
É assim pensando, ponderando e considerando, que José Mário
inicia o seu trajeto pela oitava série e, claro, levara como uma de suas
preocupações fundamentais, no que tange ao corpo disciplinar que precisaria dar
conta, a sua sempre “pedra no sapato”: a matemática. Como não poderia deixar de
ser, principiara muitíssimo mal aquela maldita, fechando a primeira unidade com
média de quatro e meio, por mera condescendência da sua professora, Zenilda,
que lhe propusera algumas operações simples, para a nota atingir, ao menos, a
média, que era cinco, fizera as operações por ela propostas e, conseguira,
felizmente na prorrogação, não ficar com quatro e meio, que foi o que
conseguira no tempo normal.
Alagoinhas-Bahia – março de 2025.
Professor José Jorge Andrade Damasceno.
E-mail: historiadorbaiano@gmail.com
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