sexta-feira, 7 de março de 2025

A SÉTIMA SÉRIE EM TRÊS TEMPOS II

 

1978: Sem Escola, Sem Jogo de Bola, sem garota cortejada.

 

O escrito que o leitor ora tem diante de si, procura continuar a discorrer sobre os descaminhos de José Mário, no seu labutar com o seu processo de escolarização formal, apontando para os seus descontínuos lidares com a “sétima série”. Aqui, se pretende retornar ao percurso que ele procurou cumprir, com vistas a alcançar êxito em completar a aquela série, cuja primeira exposição foi desenvolvida no primeiro dos três arrazoados com os quais se pretende ocupar, de acordo com o proposto no título dado a este rememorar, fundamentado em um tempo pretérito.

 No dizer de Ecléa Bose (1936-2017), o rememorar é sempre um processo desencadeado a partir de uma evocação, a partir da capacidade daquele que pretende tornar presente uma ou mais lembranças, a partir daquilo que viveu ou conheceu do passado. Diz a autora de “Memória e sociedade: lembranças de Velhos” (1994) que, “Não há evocação sem uma inteligência do presente, um homem  não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais.  Aturada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação”. A “inteligência” que aparece no trecho citado, quereria dizer discernimento, na medida em que, aquele que evoca, precisaria perceber claramente, o que seria aquilo que lembra ter sido vivido em um tempo mais pretérito, e o que se trata do que é vivido no presente.

Ainda nesta mesma formulação, no período subsequente, Bosi sustenta uma assertiva incontornável para se conhecer e se compreender o lembrar, ao afirmar que

 

[...]. Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem  o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O  sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma  repetição do estado antigo, mas uma reaparição.(BOSI, 1994, p. 81). 

 

Conforme já foi dito em escritos anteriores, para José Mário, a passagem de 1977 para 1978, nada mais foi do que uma troca de calendários; uma substituição das velhas folhinhas de um ano que acabara de passar, por outras novas, para marcar o ano que acabara de começar. Para ele, quase tudo ficou por se fazer, se concluir, se começar. Entrara enfim no ano em que completaria dezoito anos, malgrado ter que esperar todo o ano iniciado em janeiro, para se tornar, finalmente, “de maior”, mal sabendo o que isto queria dizer, a não ser que, teoricamente, se faria independente!; no entanto, nem suspeitava que se tornaria independente apenas do ponto de vista formal; a autoridade e o sustento maternos se afirmavam e se faziam imprescindíveis – a pesar dos poucos recursos que possuía a executora de atividades precárias e informais -, a despeito daquela sua pretendida independência. Nem sequer o rapaz suspeitava que a autonomia financeira, aquela que de fato faz uma pessoa socialmente independente, demoraria tanto tempo para se fazer presente em seu viver, muito menos, que precisaria esperar cerca de dezoito longos anos mais à frente.

Portanto, logo no primeiro mês daquele “novo ano”, ele precisou efetivar a sua matrícula e, tomara uma decisão que já estava urdida em seu cérebro, desde que abandonara aquela primeira sétima série, há apenas uma unidade de sua conclusão, cuja duração, poderia corresponder a cerca de dois ou três meses, além daquele em que se retirara do processo. Enfim, decidira que pediria que fosse matriculado no noturno que, conforme já se disse, acreditava ser o turno adequado para a sua idade e a série que iria cursar.

Paralelamente a esta movimentação de José Mário no sentido de reingressar no processo formal de escolarização, ele estava se envolvendo com uma outra novidade para o seu estreito conhecimento do mundo vivido por aqueles que, tal qual ele, não enxergavam. Embora sem grande entusiasmo – como aliás, é comum em seu comportamento, quando se trata de alguma coisa que possam envolver mais do que três ou, no máximo, quatro pessoas, ou ainda, que precise expor publicamente as suas habilidades e/ou inabilidades, (rotulado como “antissocial”) -, juntamente com um seu amigo, que acabara de retornar a residir em Alagoinhas, passaram a criar e participar de um time de futebol de cegos na cidade.

No entanto, a despeito de ter participado de alguns jogos, por cerca de um ano, na condição de zagueiro sentado – como ele mesmo se descrevia – , passando por algumas cidades como Salvador, Feira de Santana e Candeias, ao contrário do seu amigo idealizador do dito time, José Mário, como se poderia imaginar, logo se afastou do folguedo, sobretudo, por ter compreendido em tempo, saliente-se,  não ter qualquer habilidade para dominar aquela bola que, ainda que com guizos para que se pudesse orientar, teimava em lhe escapar do controle, fugindo caprichosamente do seu alcance de defensor desastrado. E, certamente, percebera que nada alcançaria de relevante, ao se envolver com aquele “correr” inútil atrás de uma bola que nunca se deixaria dominar por ele. Se houvesse uma votação para escolher o melhor e o pior dos jogos, sem a menor dúvida, ele seria campeão imbatível, naquela última modalidade: “o pior em quadra”.

Tal compreensão, certamente, veio de sua participação em uma daquelas partidas, precisamente, aquela que se fez realizar em Candeias – região metropolitana de Salvador -, quando tomou um coice do atacante do time formado por cegos de  Salvador, que lhe valeu a retirada de quadra, antes do final da partida. Com o joelho doendo bastante; com dificuldade até mesmo para caminhar em direção ao local onde se reuniriam para o almoço, aquele “zagueiro sentado” ficou a ruminar acerca daquilo, talvez se perguntando: para quê?

Naquele dia, aliás, morria o papa Paulo VI, notícia que ouvira no rádio, ao chegar em casa, ainda mancando e com o joelho inchado. Claro que ele ocultara o joelho avariado, da vista de sua mãe; tivera que se virar como pudera, para amenizar as dores e, esperar que o caríssimo joelho se recuperasse naturalmente. O que, felizmente aconteceu. Contudo, José Mário não mais voltou a atuar no dito time de futebol de cegos de Alagoinhas, como acabou sendo conhecido.

Mas, retome-se o caminhar de José Mário, em seu já tardio processo de escolarização formal. Chega março e, com ele, o início do ano letivo, que se daria em um novo turno, como já se adiantou há algumas linhas, em que José Mário haveria de reiniciar o palmilhar do caminho há pouco interrompido. Teria, portanto, que encarar a sétima série, pela segunda vez, com aquele ar de alguma coisa que já cheirava a mofo, a curtume pleno de couros esticados, recém-saídos de animais há algum tempo abatidos ou, com ares de necrotério; com aquela disposição já arrefecida e com forças já diminutas, que, malgrado todo aquele sentimento, precisaria seguir, embora, não atinasse para onde ou mesmo,  para que fim.

Ao ultrapassar aquele já seu conhecido portão e, ingressar nas dependências do Centro Integrado Luís Navarro de Brito, o “Estadual”, com o qual já estava familiarizado, José Mário se deparou com colegas estranhos; nem sequer, um seu conhecido; professores diferentes e, sobretudo, indiferentes; talvez já cansados de jornada há muito iniciada – quer do ponto de vista diário, dividido em três turnos, quer do ponto de vista dos anos já passados em um jornalhar quase sem razão e sem fim, a não ser, o do sobreviver seu e dos seus – e, ele mesmo, sem ânimo e sem conseguir perceber sentido em tudo aquilo, encarara aquelas idas e vindas insossas, insípidas, inodoras, infrutíferas  e, portanto, inúteis. Todavia, ele teria de seguir; e, seguiu, até quando deu.

Os restantes meses daquele ano se passaram, como que arrastados em sua pesada marcha, como se fossem puxados por equinos – ou seriam muares; ou asininos, quem sabe, um velho jegue esquálido, arrancado de alguma seca no semiárido  brasileiro? - já quase sem forças, esfomeados, doentes e cansados, cujo passo, a cada centímetro arrastado, se fazia ainda mais arquejante, vacilante e quase imperceptível, à observação daquele impaciente vivente. Abril, maio, junho... E, nada de chegar dezembro, nada de avanço no aprender, no apreender, no compreender, sobretudo, ela, a já infame matemática dos seus inúmeros pecados! Não dá mais; e não deu. Nem deu, nem ficou qualquer memória de colegas ou professores com quais tivera interagido, salvo um, o de matemática, embora, felizmente, ele tenha esquecido o seu nome, mesmo não havendo esquecido o modo como ambos se trataram logo no primeiro dia: frios, solenes, equidistantes, dispostos a se afrontarem, porém, sem se defrontarem.

Aquela interminável espera foi mitigada por desvios de caminhos, que José Mário implementara, quando já se encontrava incomodado por todas aquelas noites enfadonhas que precisava encarar naquela sala de aulas, que tanto molestava o seu espírito. Ao invés de ir para o “Estadual”, ele se dirigia até a casa de uma de suas ex-colegas, que conhecera no ano anterior e, por quem se afeiçoara; mas, as visitas eram marcadas por intermináveis conversas sem destino a chegar, conduzidas pela sua timidez e, sobretudo, pelo seu medo de um duplo perder: perder aquela a quem cortejava – a quem chegara a dedicar algumas serenatas -; e, por via de consequência, perder também a condição de amiga, tão poucas eram! Mas, em suma, aquelas visitas regulares à cortejada, o ajudaram a passar aquele tempo que teimava em não querer passar. Mesmo não tendo sabido de qualquer manifestação em seu favor ou em seu desfavor, por parte daquela a quem dedicara algumas malbaratadas músicas, tropegamente tocadas ao violão, tal investida, de pretensa cortesania, fora um lenitivo àquele lento passar de dias, que o ajudara a se sentir um pouco melhor naquele caminhar quase inglório.

Enfim, depois de longa tergiversação e de não pequeno procrastinar, José Mário assumira que não permaneceria vivendo naquele “faz de conta” que ia para a escola e que ali estudava, situação já enfastiante para ele e, jogara a toalha. Não é possível precisar se lograra alcançar setembro; se ao menos fizera alguma avaliação, principalmente da temida matemática, cujo professor era um ser tão estranho, quanto indiferente; talvez, ele fosse um militar – sem que se saiba dizer se de força militar estadual ou da Armada Federal –, que pouco se importava com aquele aluno arredio, provocador, que ousava fumar charutos em sua aula, acintosamente dizendo ser maconha! Para aquele professor, tanto melhor que aquele aluno avesso a ele e à sua matéria, fosse reprovado; um estorvo a menos o seria para ele. De certo mesmo, o que se pode aqui afirmar, é que José Mário, uma vez mais, deixara para trás uma sétima série, por ele mal frequentada, em cujo transcurso, pouco fez para avançar, sem se submeter a quaisquer tipos de avaliações, por meio das quais, ao menos, viesse a ser  testado em seus “avanços”; preferindo o recuo à derrota, o que seria dos males o menor, assim o cria. Retomaria aquele seriar um dia? Naquele instante, ele não saberia responder; a sua disposição, porém, era de tomar o rumo do trabalho, tão logo alcançasse a maioridade, status que o final daquele ano lhe deixara e, que o início do outro lhe encontrara.

 

Alagoinhas, 07 de março de 2025

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

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