sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS - PARTE VI

EM ALGUMA DAS SALAS DO “PAVILHÃO LUIZ VIANA”.

 

Ao iniciar esta última das seis digressões aqui propostas e, para uma melhor compreensão a respeito do que se pretende discorrer neste conjunto de divagações até aqui apresentado, faz-se necessário reafirmar o caráter seletivo da memória, visto ser ela um elemento essencial do existir humano, sobretudo, do seu “existir social”, que é formada por um grande número de camadas que vão se tornando cada vez mais espessas, à medida do passar do tempo. Algumas daquelas camadas são chamadas ao presente, mediante sensações olfativas, auditivas, gustativas ou táteis – no caso de pessoas cegas -, além, claro, da perspectiva visual, que pode ser acionada pelos fragmentos de imagens, desencadeando feixes de lembranças, que, por sua vez, ao ser evocados  a partir do presente, agrega as experiências sociais e/ou individuais acumuladas ao longo dos anos; incorpora àqueles lembrares, informações acumuladas em momentos posteriores à lembrança evocada.     

O tempo transcorrido entre o que é lembrado e o momento em que se desencadeia o lembrar, promove o acúmulo de outras camadas sobre aquela que ora é evocada, formando um todo complexo, exigindo a atenção de quem se lembra, no sentido de abstrair-se dos aludidos dois momentos. Neste arrazoado, este tempo está sendo denominado de “tempos idos”, apontando para um tempo já vivido, mas que, por conta de já se haver passado um feixe de tempo experienciado por aquele que lembra, entre o que é lembrado e a sua manifestação por escrito, no sentido de evitar que o “ontem” ora trazido à memória, se confunda com o que agora seja escrito – ou verbalizado oralmente -, mediante a evocação de uma memória já coberta por inúmeras camadas de outras lembranças, de um grande número de informações, de aprendizagens, de sentimentos e de marcas indeléveis deixadas pelo tempo já vivido por quem se dispõe a lembrar.

À título de ilustração do que se apôs acima, entre tantas outras que se poderia encontrar na literatura atinente ao tema, é possível evocar a experiência de Macel Proust (1871-1922), por ele mesmo apontada como desencadeadora de uma avalanche de lembranças, a partir das quais, pôde construir uma das mais icônicas obras acerca da memória. A partir de uma estranha sensação experimentada por meio do paladar – memória gustativa – e do olfato – memória olfativa – produzidas ao entrar em contato com elementos inerentes ao seu quotidiano infanto juvenil, após assomar-se de uma xícara de chá com “Madeleine” que lhe foram oferecidos pelas mãos maternas, quando já contava um pouco mais de “tempos vividos”, conforme comenta Mario Sergio Conti, autor da introdução de “À Procura do Tempo Perdido” (Companhia das Letras 2022):

“[...], o bolinho que o Narrador,  na meia-idade, come ao tomar chá num dia de inverno em Paris. Ele sente um prazer imenso, uma energia libertadora que advém de sentidos básicos, despertados pelo cheiro e pelo sabor do pequeno doce. Como não consegue entender a fonte da sua alegria, o Narrador recorre a inúmeros pensamentos paralelos, que o ajudam a se aproximar do cerne da força maravilhosa que o toma. Em frases longas, separadas por pontos e vírgulas, ele especula, nuança, indaga, pondera, tenta fixar a sensação fugidia. Até que a descobre. É a memória involuntária das manhãs de domingo de suas férias na cidadezinha de Combray, quando sua tia lhe servia chá com madalenas. Tudo aquilo que tantas vezes buscara lembrar, e não conseguiu, lhe aparece de súbito e com nitidez: ”a boa gente da aldeia e suas pequenas casas, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo aquilo que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá. [...]” (CONTI, 2022, p. 10).

 

Da interação entre o paladar, acionado pelo toque da “Madalena” no palato e na língua do “Narrador” e o cheiro do chá, outro dos elementos desencadeadores das rememorações de Proust, conforme assegura Conti no seu arrazoado, foi, aquilo que se poderia entender como sendo um reestabelecimento de uma espécie de “tempo perdido”. portanto, Conte assevera que

“[...]. O tempo é assim recuperado. A obra magna de Proust é produto desse duplo movimento. O primeiro, vertical, vai e volta entre o  passado, o presente e o futuro. O segundo, horizontal, é um ”Nilo da  linguagem, que transborda e frutifica os vastos espaços da verdade”,  como escreveu Walter Benjamin, o primeiro tradutor para o alemão  de Para o lado de Swann. Nesse rio de frases que se expandem, o Narrador compara, reconsidera, contrasta, qualifica e aprofunda a situação vivida, mesclando-a com aportes vindos da pintura, da botânica,  da literatura, da música, da moda, da arquitetura, da psicologia, do  teatro, da crônica dos costumes e da história francesa.  [...]” (CONTI, 2022, p. 10).

 

Desta forma, aqui se tem procurado rememorar “uns tempos vividos”, considerando-se um ponto do quotidiano de um sujeito que esperava o recomeço do seu caminhar rumo ao robustecer do seu processo formativo para a vida, na medida em que, ele não se sentia pronto para enfrentar a sua realidade, aquela que se lhe apresentava como perspectiva de alguém “sem eira nem beira, sem ramo de figueira”, conforme o dito popular, uma vez que, além de não possuir lastros econômicos, políticos ou sociais para bancar os custos de uma inserção qualificada no mundo do trabalho, ele já iniciara o seu ano dezessete e, ainda se encontrava em uma série escolar, bem abaixo daquela em que já deveria cursar àquela altura: a segunda do segundo grau, conforme os ditames pedagógicos encontrados nas Leis que regiam o sistema educativo do Brasil, a partir da década de 1970. Tais rememorares se relacionam com pessoas e lugares, que, ao contrário do fenômeno descrito por Marcel Proust, fenômeno que permeou toda a sua obra, os rememorares apresentados no curso destes arrazoados, estão relacionados com pessoas, objetos e espaços com os quais se interagiu naqueles “tempos idos”, que se manifesta por meio  das diversas camadas que compõem o lembrar, sujeitas às ressignificações já aludidas linhas atrás. No caso aqui especificado, não houve nenhum fator externo desencadeador; houve sim, um esforço por lembrar do vivido, mediante reflexões, audições de músicas tocadas à época, sensações e/ou  impressões táteis, olfativas e gustativas, que se apresentam como tendo sido experimentadas naqueles lidares cotidianos que marcaram José Mário, enquanto se dirigia ao lugar onde tomaria contato com a sua nova série, com sua nova turma e,, por fim mas, não menos importante, interagiria com os seus novos professores, por meio de todos eles, procuraria enfrentar os percalços e os entraves que se lhe adviriam ao mourejar nas sendas formativas.

Depois de uma noite longa e quiçá, mal dormida, a manhã daquele dia em que finalmente José Mário se dirigiria ao Centro Integrado Navarro de Brito, para ali viver o seu primeiro dia de aula do ano de 1977,pode ter sido preenchida com alguma audição de rádio, talvez, conforme era o seu viver quotidiano, intercalando programas de notícias e música. Ou, como era seu costume em vários momentos da sua jornada diária,  ele procurara andar um pouco no entorno do espaço em que residia – talvez um banho no rio da Brasilinha -, enquanto aguardava o momento em que ouviria o soar da sirene da “Leste”, indicando dez para as onze – momento em que se teria que dirigir para casa, caso lá não estivesse afim de tomar banho, vestir a farda e almoçar -, para depois, se dirigir até o local onde embarcaria no transporte coletivo que o deixaria no centro da cidade, em um terminal que ali funcionara até o início dos anos 1990.

Algum tempo depois, o seu padrasto introduziu na casa um aparelho de televisão, conforme ele mesmo dissera, tratava-se de um equipamento da marca GE, modelo Máscara Negra, que adquirira de segunda mão, o que lhe permitiu incorporar àquele ritual, o costume de ouvir as músicas executadas durante os instantes que antecedia a abertura da TV Aratu, então afiliada à rede Globo de Televisão – emissora de Salvador que opera no canal 4, cujo “jingle” de abertura iniciava com a frase “bom dia Bahia, Bahia do meu coração” e concluía com o epiteto “Canal quatro está chegando ao seu lar, TV Aratu está no ar” -, onde seria exibido um programa em que se ensinava inglês, cujo conteúdo não lhe despertava grande interesse, só mantendo o aparelho ligado para esperar a audição da música de abertura do “Sítio do Picapau Amarelo”, cantada por Gilberto Gil e, claro, o episódio, que ouvia, pouco antes do banho e do almoço.

Portanto, aquele seria o primeiro dia em que José Mário se dirigiria até o “Estadual”, no turno vespertino para retomar mais uma etapa letiva. Tomara banho, vestira a farda que consistia em uma calça de tergal, “boca de sino”, uma camisa daquele mesmo tecido, na qual já estava inserido o escudo do CILNB. O calçado era um Kichute”, talvez ainda aquele utilizado no ano anterior; levava uma prancheta com o seu material de escrita, uma Reglete de mesa, acompanhada de algumas folhas de papel ofício, visto não dispor mais de papel Braille além do punção que era levado no bolso.  Assim, depois de ter comido o seu almoço, composto de feijão, arroz, alguma “mistura” e, a indispensável farinha, que viria a ser o meio pelo qual a refeição renderia e, após o toque da sirene da Leste, que indicava já ser meio dia, o ansioso estudante saíra de casa para embarcar no ônibus que o levaria ao referido terminal, situado à rua Castro Leal, onde se imiscuiria naquele mar formado pelos demais jovens e adolescentes que convergiam dos diversos bairros da cidade, para dali, iniciarem a caminhada que os levaria até espaço onde seriam repartidos entre os pavilhões, as salas e as diversas séries a serem cursadas, para enfim, tomarem contato com os professores com os quais interagiriam por todo aquele ano, com as matérias que precisariam assimilar e com as tarefas escolares que teriam que desenvolver.

Ao ingressar no “Estadual” por aquele que então era o portão central, descia-se por uma espécie de rua calçada e com meio fio, andava-se cerca de 20 ou 30 metros  e se alcançava o pavilhão Luiz Viana, situado bem em frente. Algo parecido com um esquadro de marceneiro, ao lado direito do chegante, se destaca uma parte do prédio, iniciada antes mesmo que se acesse à sua frente, onde funcionavam os cursos de Técnicas Comerciais, Educação para o lar, além de abrigar as salas em que funcionava primeiro grau nível 1; à frente do chegante, se estendia um amplo espaço onde se podia encontrar as salas de coordenação, uma cantina – para os alunos que a podiam utilizar -, um bebedouro e um espaço usado para os jogos de bola de meia; ali, portanto, paralelo ao do prédio comentado acima, entrava-se pelo lado direito, percorria-se alguns corredores, subia-se e descia-se alguns conjuntos de degraus e, subindo-se o último deles, talvez a penúltima ou a última das salas, uma vez aberta, lá estavam carteiras, quadro e janelas que formavam o mobiliário e o espaço onde por quase todo o ano de 1977, arejada pela ventilação natural, José Mário ali esteve assistindo as aulas, sendo avaliado e, quando possível, interagindo com os colegas de labores inerentes ao processo formativo e adestramento cognitivo.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas, 14 de fevereiro de 2025

 

- historiadorbaiano@gmail.com 

Um comentário:

  1. As digressões dos tempos idos, me fez uma reflexão dos desafios para inclusão, e da resistência em meio às diversidade. E o ponto de vista da perspectiva de quem conta essa memória!
    Parabéns, professor pela reflexão e a escrita .

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