EM ALGUMA DAS SALAS DO “PAVILHÃO LUIZ VIANA”.
Ao iniciar esta última das seis digressões aqui propostas e,
para uma melhor compreensão a respeito do que se pretende discorrer neste
conjunto de divagações até aqui apresentado, faz-se necessário reafirmar o
caráter seletivo da memória, visto ser ela um elemento essencial do existir
humano, sobretudo, do seu “existir social”, que é formada por um grande número
de camadas que vão se tornando cada vez mais espessas, à medida do passar do
tempo. Algumas daquelas camadas são chamadas ao presente, mediante sensações
olfativas, auditivas, gustativas ou táteis – no caso de pessoas cegas -, além,
claro, da perspectiva visual, que pode ser acionada pelos fragmentos de
imagens, desencadeando feixes de lembranças, que, por sua vez, ao ser
evocados a partir do presente, agrega as
experiências sociais e/ou individuais acumuladas ao longo dos anos; incorpora
àqueles lembrares, informações acumuladas em momentos posteriores à lembrança
evocada.
O tempo transcorrido entre o que é lembrado e o momento em
que se desencadeia o lembrar, promove o acúmulo de outras camadas sobre aquela que
ora é evocada, formando um todo complexo, exigindo a atenção de quem se lembra,
no sentido de abstrair-se dos aludidos dois momentos. Neste arrazoado, este
tempo está sendo denominado de “tempos idos”, apontando para um tempo já
vivido, mas que, por conta de já se haver passado um feixe de tempo experienciado
por aquele que lembra, entre o que é lembrado e a sua manifestação por escrito,
no sentido de evitar que o “ontem” ora trazido à memória, se confunda com o que
agora seja escrito – ou verbalizado oralmente -, mediante a evocação de uma
memória já coberta por inúmeras camadas de outras lembranças, de um grande
número de informações, de aprendizagens, de sentimentos e de marcas indeléveis
deixadas pelo tempo já vivido por quem se dispõe a lembrar.
À título de ilustração do que se apôs acima, entre tantas
outras que se poderia encontrar na literatura atinente ao tema, é possível
evocar a experiência de Macel Proust (1871-1922), por ele mesmo apontada como
desencadeadora de uma avalanche de lembranças, a partir das quais, pôde
construir uma das mais icônicas obras acerca da memória. A partir de uma
estranha sensação experimentada por meio do paladar – memória gustativa – e do olfato
– memória olfativa – produzidas ao entrar em contato com elementos inerentes ao
seu quotidiano infanto juvenil, após assomar-se de uma xícara de chá com
“Madeleine” que lhe foram oferecidos pelas mãos maternas, quando já contava um
pouco mais de “tempos vividos”, conforme comenta Mario Sergio Conti, autor da introdução de “À Procura
do Tempo Perdido” (Companhia das Letras 2022):
“[...], o
bolinho que o Narrador, na meia-idade,
come ao tomar chá num dia de inverno em Paris. Ele sente um prazer imenso, uma
energia libertadora que advém de sentidos básicos, despertados pelo cheiro e
pelo sabor do pequeno doce. Como não consegue entender a fonte da sua alegria,
o Narrador recorre a inúmeros pensamentos paralelos, que o ajudam a se
aproximar do cerne da força maravilhosa que o toma. Em frases longas, separadas
por pontos e vírgulas, ele especula, nuança, indaga, pondera, tenta fixar a sensação
fugidia. Até que a descobre. É a memória involuntária das manhãs de domingo de
suas férias na cidadezinha de Combray, quando sua tia lhe servia chá com
madalenas. Tudo aquilo que tantas vezes buscara lembrar, e não conseguiu, lhe
aparece de súbito e com nitidez: ”a boa gente da aldeia e suas pequenas casas,
e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo aquilo que toma forma e
solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá. [...]” (CONTI, 2022, p.
10).
Da
interação entre o paladar, acionado pelo toque da “Madalena” no palato e na
língua do “Narrador” e o cheiro do chá, outro dos elementos desencadeadores das
rememorações de Proust, conforme assegura Conti no seu arrazoado, foi, aquilo
que se poderia entender como sendo um reestabelecimento de uma espécie de
“tempo perdido”. portanto, Conte assevera que
“[...].
O tempo é assim recuperado. A obra magna de Proust é produto desse duplo
movimento. O primeiro, vertical, vai e volta entre o passado, o presente e o futuro. O segundo,
horizontal, é um ”Nilo da linguagem, que
transborda e frutifica os vastos espaços da verdade”, como escreveu Walter Benjamin, o primeiro
tradutor para o alemão de Para o lado
de Swann. Nesse rio de frases que se expandem, o Narrador compara,
reconsidera, contrasta, qualifica e aprofunda a situação vivida, mesclando-a
com aportes vindos da pintura, da botânica,
da literatura, da música, da moda, da arquitetura, da psicologia,
do teatro, da crônica dos costumes e da
história francesa. [...]” (CONTI, 2022,
p. 10).
Desta forma, aqui se tem procurado rememorar “uns tempos
vividos”, considerando-se um ponto do quotidiano de um sujeito que esperava o
recomeço do seu caminhar rumo ao robustecer do seu processo formativo para a
vida, na medida em que, ele não se sentia pronto para enfrentar a sua
realidade, aquela que se lhe apresentava como perspectiva de alguém “sem eira
nem beira, sem ramo de figueira”, conforme o dito popular, uma vez que, além de
não possuir lastros econômicos, políticos ou sociais para bancar os custos de
uma inserção qualificada no mundo do trabalho, ele já iniciara o seu ano
dezessete e, ainda se encontrava em uma série escolar, bem abaixo daquela em
que já deveria cursar àquela altura: a segunda do segundo grau, conforme os
ditames pedagógicos encontrados nas Leis que regiam o sistema educativo do
Brasil, a partir da década de 1970. Tais rememorares se relacionam com pessoas
e lugares, que, ao contrário do fenômeno descrito por Marcel Proust, fenômeno
que permeou toda a sua obra, os rememorares apresentados no curso destes
arrazoados, estão relacionados com pessoas, objetos e espaços com os quais se
interagiu naqueles “tempos idos”, que se manifesta por meio das diversas camadas que compõem o lembrar,
sujeitas às ressignificações já aludidas linhas atrás. No caso aqui
especificado, não houve nenhum fator externo desencadeador; houve sim, um
esforço por lembrar do vivido, mediante reflexões, audições de músicas tocadas
à época, sensações e/ou impressões táteis,
olfativas e gustativas, que se apresentam como tendo sido experimentadas
naqueles lidares cotidianos que marcaram José Mário, enquanto se dirigia ao
lugar onde tomaria contato com a sua nova série, com sua nova turma e,, por fim
mas, não menos importante, interagiria com os seus novos professores, por meio
de todos eles, procuraria enfrentar os percalços e os entraves que se lhe
adviriam ao mourejar nas sendas formativas.
Depois de uma noite longa e quiçá, mal dormida, a manhã daquele
dia em que finalmente José Mário se dirigiria ao Centro Integrado Navarro de
Brito, para ali viver o seu primeiro dia de aula do ano de 1977,pode ter sido
preenchida com alguma audição de rádio, talvez, conforme era o seu viver
quotidiano, intercalando programas de notícias e música. Ou, como era seu
costume em vários momentos da sua jornada diária, ele procurara andar um pouco no entorno do
espaço em que residia – talvez um banho no rio da Brasilinha -, enquanto
aguardava o momento em que ouviria o soar da sirene da “Leste”, indicando dez
para as onze – momento em que se teria que dirigir para casa, caso lá não
estivesse afim de tomar banho, vestir a farda e almoçar -, para depois, se
dirigir até o local onde embarcaria no transporte coletivo que o deixaria no
centro da cidade, em um terminal que ali funcionara até o início dos anos 1990.
Algum tempo depois, o seu padrasto introduziu na casa um aparelho
de televisão, conforme ele mesmo dissera, tratava-se de um equipamento da marca
GE, modelo Máscara Negra, que adquirira de segunda mão, o que lhe permitiu incorporar
àquele ritual, o costume de ouvir as músicas executadas durante os instantes
que antecedia a abertura da TV Aratu, então afiliada à rede Globo de Televisão
– emissora de Salvador que opera no canal 4, cujo “jingle” de abertura iniciava
com a frase “bom dia Bahia, Bahia do meu coração” e concluía com o epiteto
“Canal quatro está chegando ao seu lar, TV Aratu está no ar” -, onde seria
exibido um programa em que se ensinava inglês, cujo conteúdo não lhe despertava
grande interesse, só mantendo o aparelho ligado para esperar a audição da
música de abertura do “Sítio do Picapau Amarelo”, cantada por Gilberto Gil e,
claro, o episódio, que ouvia, pouco antes do banho e do almoço.
Portanto, aquele seria o primeiro dia em que José Mário se
dirigiria até o “Estadual”, no turno vespertino para retomar mais uma etapa
letiva. Tomara banho, vestira a farda que consistia em uma calça de tergal, “boca
de sino”, uma camisa daquele mesmo tecido, na qual já estava inserido o escudo
do CILNB. O calçado era um Kichute”, talvez ainda aquele utilizado no ano
anterior; levava uma prancheta com o seu material de escrita, uma Reglete de
mesa, acompanhada de algumas folhas de papel ofício, visto não dispor mais de
papel Braille além do punção que era levado no bolso. Assim, depois de ter comido o seu almoço,
composto de feijão, arroz, alguma “mistura” e, a indispensável farinha, que
viria a ser o meio pelo qual a refeição renderia e, após o toque da sirene da
Leste, que indicava já ser meio dia, o ansioso estudante saíra de casa para
embarcar no ônibus que o levaria ao referido terminal, situado à rua Castro
Leal, onde se imiscuiria naquele mar formado pelos demais jovens e adolescentes
que convergiam dos diversos bairros da cidade, para dali, iniciarem a caminhada
que os levaria até espaço onde seriam repartidos entre os pavilhões, as salas e
as diversas séries a serem cursadas, para enfim, tomarem contato com os professores
com os quais interagiriam por todo aquele ano, com as matérias que precisariam
assimilar e com as tarefas escolares que teriam que desenvolver.
Ao ingressar no “Estadual” por aquele que então era o portão
central, descia-se por uma espécie de rua calçada e com meio fio, andava-se
cerca de 20 ou 30 metros e se alcançava o
pavilhão Luiz Viana, situado bem em frente. Algo parecido com um esquadro de
marceneiro, ao lado direito do chegante, se destaca uma parte do prédio,
iniciada antes mesmo que se acesse à sua frente, onde funcionavam os cursos de
Técnicas Comerciais, Educação para o lar, além de abrigar as salas em que
funcionava primeiro grau nível 1; à frente do chegante, se estendia um amplo
espaço onde se podia encontrar as salas de coordenação, uma cantina – para os
alunos que a podiam utilizar -, um bebedouro e um espaço usado para os jogos de
bola de meia; ali, portanto, paralelo ao do prédio comentado acima, entrava-se
pelo lado direito, percorria-se alguns corredores, subia-se e descia-se alguns
conjuntos de degraus e, subindo-se o último deles, talvez a penúltima ou a
última das salas, uma vez aberta, lá estavam carteiras, quadro e janelas que
formavam o mobiliário e o espaço onde por quase todo o ano de 1977, arejada
pela ventilação natural, José Mário ali esteve assistindo as aulas, sendo
avaliado e, quando possível, interagindo com os colegas de labores inerentes ao
processo formativo e adestramento cognitivo.
Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas, 14 de
fevereiro de 2025
- historiadorbaiano@gmail.com
As digressões dos tempos idos, me fez uma reflexão dos desafios para inclusão, e da resistência em meio às diversidade. E o ponto de vista da perspectiva de quem conta essa memória!
ResponderExcluirParabéns, professor pela reflexão e a escrita .