segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS - PARTE III

Em desalinho com as “trocas simbólicas”

 

Deixe-se 1976 para trás e, adentre-se um pouco mais em 1977. Antes, porém, é preciso fazer uma pequena pausa, com o fito de considerar algumas observações feitas por leitor anônimo do último arrazoado – e se foi leitora, há que desculpar este escrevedor, pois, a condição de anonimato não lhe permite inferir o gênero -, nas quais algumas questões são levantadas, no sentido de provocar algumas reflexões. Em um primeiro comentário, a pessoa anônima assevera que “[...] José Mário é um dentre os milhares ou milhões de indivíduos sem conexão social. Indivíduos que procuram algo, mas não sabem o que é. Ávidas de experiências. Essas criaturas não conseguem atrair a atenção de outras para interações como bate papo ou troca de opiniões.”  O pressuposto não está de todo equivocado. No entanto, a pessoa anônima não considerou a possibilidade de não estar no querer do personagem, a sua condição de “desconectado social”; embora ele não seja o único, conforme  acertadamente asseverou, ele é parte de um grupo de indivíduos que, à sua época, não conhecia os códigos sociais sob os quais estava sendo esmagado, em sua instintiva busca de um “lugar social” para se fazer inserir. Eram escassas ou inexistentes as ferramentas de que precisava para manobrar adequadamente o cipoal de códigos, regras e normas sociais que, embora consuetudinários, estava ali para ser decifrado, cumprido ou mesmo infligido. Para tanto, era preciso que fosse conhecido e, José Mário não o conhecia; uma vez conhecido, era preciso ser compreendido, refletido e interpretado. Para fazer tão profundo exercício de exegese, seria preciso dispor de um ferramental intelectual, bibliográfico e/ou hemerográfico  que o ajudasse naquela empreitada e, ele não o possuía, nem podia aceder, ainda que em bibliotecas e/ou centros de pesquisa coletivos.

Em uma segunda observação, quiçá a mesma pessoa levanta uma questão, própria de quem tem algum conhecimento na área das ciências sociais, na medida em que salienta alguns elementos que acabam por intervir na busca por inserção social de José Mário, que certamente a pessoa anônima conhece, mas, prefere que haja respostas às suas ponderações, o que se procederá, crê-se, em formato de um pequeno diálogo entre escrevedor e comentarista.

- “Por que e em que medida as pessoas não enxergam José Mário?”

- Porque as pessoas como ele são socialmente invisíveis,  conforme o classificariam muitos estudiosos de diversas áreas das ciências humanas e sociais. O conceito de “invisibilidade social”, é entendido aqui como sendo o fenômeno que aponta para um processo de não se perceber o outro à sua volta, quando aquele outro destoa de alguns padrões elencados socialmente, fazendo com que seja ignorado por todos quantos cruzem por aquele ser, nos ires e vires de tantos quantos se entendam como parte socialmente ajustada.

- “Que tipo de relação social ele busca no grande tecido urbano?”

- Ele só buscava estabelecer no “grande tecido humano”, aquelas relações sociais que seriam inerentes às pessoas da sua idade, do seu local de convivência, que, ingenuamente, ele acreditava também estar ao seu alcance, visto que, conforme já se disse linhas atrás, ele ignorava haver algum tipo de codificação tácita e implícita, naquela sociedade em que vivia, que dissesse que não lhe era permitido estar aqui, ali ou alhures, no seu espaço de interação social, cultural, escolar ou afetiva.

Uma terceira observação feita sobre o escrito da postagem anterior, esta mais áspera, ácida e marcadamente psicologizante, a pessoa anônima afirma, peremptoriamente: “Acertadamente, José Mário é uma personagem que não se encontrou ainda no mundo. Precisa ter consciência de si mesmo antes de querer ou exigir relacionar-se com os outros. Ele parece ser puramente ingênuo.”

Não, caro anônimo e arguto leitor. Ele não era ingênuo. Ele vivia em um tempo em que o conhecimento e as informações não chegavam de modo equânime. Já foi dito em outro arrazoado, que o seu acesso aos livros, aos jornais, às revistas e à formação escolar eram precárias e frágeis. No entanto, há que se ponderar que, ainda que esteja correta a assertiva, não é justo que ele tenha sido lançado à própria sorte, no seu intento de se “encontrar”, já que se assevera ter ele aquela necessidade de o fazer, para poder querer se integrar ao tecido social que lhe era hostil, que o  invisibilizava, que sempre o impelia para às suas margens, onde quase sempre esteve  a deriva e suplantado pelos demais que se fizer incorporar àquela tessitura estrutural do construto social.

Para uma melhor compreensão dos pressupostos aqui apontados, é imperioso lembrar aos que dedicam um pouco do seu tempo para ler estes garatujes, que, mesmo para aqueles nascidos entre os fins dos anos 1950 e 1970, que possuíam um acesso menos restrito a informações, a leituras, bem como a outros meios de apreensão do mundo à sua volta, a tomada de decisões sobre o que fazer, o que não fazer, sobre o quando fazer, sobre o como fazer, era um exercício duro e, não raro, sujeito a pequenos ou grandes equívocos, algumas vezes  incontornáveis, quando fosse preciso rever um rumo a ser tomado, uma vez que eles estavam bem aquém daqueles outros, nascidos entre os 1980 e meados da década de 1990, no que tange ao conjunto de instrumentos, meios e capacidades de reunir uma ampla gama de informações, a partir das quais fariam as suas escolhas, tomariam as suas decisões, estabeleceriam – ou não -, tais ou quais relações, em tais ou quais medidas. Isto quer dizer que, ter completado ou estar por completar dezessete anos, era muito diferente, considerando-se todas essas fatias de tempo, de acordo com os níveis de desenvolvimento: tecnológico, intelectual, educacional, econômico e social, quer tenha sido da sociedade como um todo, quer tenha sido do indivíduo e/ou dos grupos de indivíduos, em particular, que formam e/ou formatam a tessitura social vigente e prevalente, em um tempo dado.

Talvez, alguém pudesse objetar e, com razão, que o processo formativo de uma pessoa, não deva e nem possa reduzir-se à sua trajetória escolar formal, quer o ensino proveniente dela seja superficial, profundo; bancário ou reflexivo. No entanto, não se pode perder de vista a premissa de que, as bases elementares de um tal processo formativo, estão ou, deveriam estar lastreadas nos elementos propedêuticos infundidos no sistema cognitivo das pessoas que estejam inseridas no processo de escolarização, a partir do qual desenvolvem a sua caminhada rumo ao futuro. Alijar um indivíduo ou um grupo deles desta construção estrutural, levará o tal sujeito a envidar ainda maiores esforços para mitigar os prejuízos advindos de uma formação precária, do ponto de vista do acúmulo dos conhecimentos distribuídos por todo o processo de escolarização, caso ele queira ou precise se fazer catapultar  a patamares mais elevados no seu processo formativo como um todo.

No caso específico de José Mário  - além de alguns outros sujeitos que compartilhavam com ele as condições sociais, culturais, econômicas e sensoriais -, saliente-se de passagem que, precisou lidar com os inúmeros vácuos estruturais e experienciais no transcurso de grande parte daquele processo, retardando a integração dos elementos basilares que viessem a permitir a sedimentação dos fundamentos sobre os quais ele deveria assentar o seu saber, o seu conhecer, o seu entender, o seu compreender, o seu interpretar e, sobretudo, o seu agir diante da vida e das necessidades por ela impostas.

Portanto, considerando todas as perspectivas acima apresentadas em rápidas e simplificadas formulações, é em desalinho com as lógicas das “trocas simbólicas” que José Mário se apresenta ao ano de 1977, visto que, embora percebesse as desigualdades econômicas,, sociais e dos níveis de apreensão do conhecimento, até  por ele mesmo se relacionar diretamente com tais diferenças e, vivenciar em seu dia a dia de moço pobre e de residência distante do centro urbano, ele não as percebe como sendo fruto de uma construção social injusta, lastreada no sistema capitalista de produção e distribuição, mas sim, como algo dado em razão das diferenças oriundas dos processos formativos; dos esforços pessoais exitosos ou fracassados no  intuito de ser inserido no processo produtivo, conforme preconizam os meritocratas. Ele não conseguia perceber que as diferenças de local ou tipo de moradia, que as regularidade ou não das refeições, envolvendo qualidade, variedade e quantidade; que a posse ou não de uma indumentária adequada aos padrões vigentes; nem mesmo, que os espaços de socialização e a sua utilização, estavam diretamente relacionados com as formas de exploração da força de trabalho e ou, com as formas desiguais de apropriação dos bens produzidos e dos serviços prestados pelo conjunto da sociedade e, sobretudo, na sua distribuição desigual ou antes, na restrição ao acesso coletivo comum, senão, àquele grupo de indivíduos que pudesse fazê-lo, mediante a compra.

Em suma: embora tudo aquilo José Mário percebesse, vivenciasse e parcialmente o soubesse, não entendia que aquilo era um fenômeno socialmente construído e sustentado e, que havia um conjunto de códigos que regia o tal fenômeno. Talvez por isto, pensasse que tudo era previamente dado e, como tal, pouco propenso a reconfigurações. Faltava a ele o conhecimento histórico.

 

Alagoinhas, 27 de janeiro de 2025 – Professor Jorge Damasceno.

 

 - historiadorbaiano@gmail.com 

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