domingo, 2 de fevereiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS – Parte IV.

– Os “Monômios” e os “Polinômios”

 

Fechados os parêntesis abertos no arrazoado anterior para que se pudesse refletir um pouco sobre alguns questionamentos propostos acerca daquilo que se escreveu sobre José Mário e a sua solidão em meio à multidão, volte-se, enfim, para o ano que se iniciara com a sua ida até a câmara municipal, prestigiar a investidura dos novos ocupantes dos cargos mais importantes da urbe alagoinhense. Ao sair daquela cerimônia pública, aberta ao ingresso de qualquer cidadão que por ela se interessasse, José Mário, provavelmente, dirigiu-se para o Jardim Pedro Braga, onde morava o seu irmão paterno mais velho com senhora e filhos ou, quiçá, dirigira-se ao então bairro do 10 de novembro, onde residia uma das suas irmãs paternas com marido e filhos, onde talvez tivera almoçado e tirado o cochilo da tarde; mas, também, ele poderia ter, simplesmente, retornado para a casa materna, desencantado pelo fracasso que experimentara, no seu intento de firmar novos lassos de convivência social.

O que ele fizera no transcurso de todo os meses de janeiro, de fevereiro e o início de março, não é possível precisar, embora se possa inferir que mantivera a sua rotina de visitas aos seus irmãos; de observar os nasceres e os terminares de dias quentes de verão, sem quaisquer perspectivas de novidades que lhes pudessem trazer alguma nova expectativa de mudança significativa no seu farfalhar. Talvez se possa aqui conjecturar, que ele estivesse dividido entre as suas audições de rádio e a angustiante espera da chegada de março, quando retomaria os ires e vires para o Centro Integrado Luiz Navarro de Brito, o já aludido “Estadual”, onde cursaria a sétima série do 1º, nível 2, como eram denominadas as seriações escolares, a partir da Lei 5692 de 1971, implementada pela Ditadura Militar que governava o Brasil desde 1964, cujo objetivo era reformar o ensino, suprimindo dele, elementos que pudessem incutir a subversão nos estudantes das novas gerações.

Para tanto, a dita Lei trouxera como novidade, a obrigatoriedade de ensinar Educação Moral e Cívica no primeiro grau e, Organização Social e Política brasileira, no segundo grau, para incutir a “brasilidade” nos jovens – o que, conforme pensavam os seus idealizadores, evitaria que caíssem nas garras do comunismo, que eles acreditavam estar logo ali, pronto para acercar e ganhar a juventude incauta e inocente -, além de introduzir os “Estudos Sociais” na grade de matérias a serem estudadas, com o fito de substituir o “pernicioso” estudo de matérias como “História”, Geografia, Sociologia ou Filosofia, o que, ainda conforme pensavam as elites governantes, levariam o cidadão a pensar, a refletir e, eventualmente, a contestar o regime que os oprimia em seu direito de pensar e, até mesmo o de viver e prover as necessidades básicas dos seus– quando prendia, torturava e tirava a vida de pessoas que julgavam “subversivas”, cujo crime era se contrapor ao Regime, sendo Rubens Paiva, Vladmir Herzog e Manoel Fiel Filho, aqueles que poderiam ser evocados como tendo sido os exemplos mais ilustrativos daqueles ”tempos de chumbo” vividos no País – e, como disse Chico Buarque de Holanda, viessem a “perceber” que os “subtraía”, por meio de “tenebrosas transações”.

Convém aqui ressaltar que, conforme já foi dito no primeiro escrito destas digressões, à época a que elas se reportam, José Mário não atinava para nada do que se aludiu acima. Para ele, não havia uma “ditadura Militar” mas, sim, um “Regime Militar” que governava o Brasil, instituído mediante uma “Revolução” em31 de março de 1964, que trazia como objetivo livrar o País da “corrupção” e do “comunismo” que ameaçava subverter a “pátria”, a “religião” e o “civismo” dos brasileiros. Isto é o que lhe era ensinado e, claro, no que ele acreditava. Informações acerca de tortura como aquelas que ceifaram vidas como as de um ex-deputado, de um jornalista e de um operário, massacres como os do Araguaia, por exemplo, a ele não chegara, se não, muito tibiamente, quando passara a cursar o segundo grau e, quando já contava vinte e um para vinte e dois anos e, mais claramente, um pouco mais tarde, quando entrara no curso de Licenciatura em História, na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, em 1986, quando contava vinte e cinco anos.

Conforme já se disse, ali, aos dezessete, José Mário não possuía acesso a qualquer tipo de meio de informação que não fosse o rádio, meio vigiado bem de perto pela Censura e, que também exercia a autocensura; aos jornais, às revistas ou a quaisquer outros meios de difusão escritos, mesmo os de caráter  favorável ao Regime, ele não tivera como aceder, visto não haver nenhuma outra forma de leitura compatível com a condição de cegueira, que não fosse aquela propiciada pelo Braille, ou pela leitura feita por terceiros. Considerando-se que as pessoas do seu convívio que eventualmente pudessem ler algum impresso estivessem no mesmo patamar que ele, no que tange à leitura meramente textual, sem quaisquer níveis de interpretação e/ou inserção nas camadas intertextuais, pouco ou nada lhe faria avançar no terreno do conhecimento das vicissitudes da política e da sociedade brasileira de então.

Assim, nem mesmo as chamadas “músicas de protesto” eram por ele compreendidas como tais; quando muito, eram apreendidas como irreverentes e ousadas, sem lhe causar maiores impressões, no que tange a compreender plenamente a mensagem que os seus autores e/ou intérpretes procuravam passar. Embora José Mário apreciasse a belíssima interpretação de “Cálice” e, até cantasse aquela música lançada em 1978, que ele ouvira na rádio Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, nada entendia da subliminaridade que trazia aquela letra, que, inclusive fora severamente censurada pela diocese de Belém, o que, aliás, ele considerou absurda pois, conseguira entender que a letra não tratava de criticar um dos caros elementos da Igreja Católica, conforme entendia um dos seus prelados. No entanto, ele não conseguia associar aquele tipo de texto à situação política vivida naquele Brasil em que vivia; não compreendia que se tratava de uma música que pretendia denunciar o regime  militar que, além de acumular crises econômicas e sociais – que ele desconhecia naquele momento, volte-se a salientar -, também fazia crescer o número de mortos e desaparecidos políticos.

Mas, enfim, chega março e com ele, talvez, logo na sua primeira semana, o início do ano letivo. Com ele, também se reencontram antigos colegas, toma-se contato com outros novos e, no seu já velho conhecido Estadual, recomeça o périplo na busca pela continuidade do seu processo formativo: era a sétima série que para ele se apresentava, como mais uma etapa que precisaria completar. Nela, tomara contato com algumas matérias que lhe pareciam de fácil absorção , como a já aludida Educação Moral e Cívica e os inúteis Estudos Sociais; outras, se lhe afiguravam com um maior grau de dificuldade, o que exigiria dele um pouco mais de esforço cognitivo para dar conta daquilo que lhe seria cobrado, como fora o caso de mais uma invenção do Regime, “comunicação e expressão”, que pretendia juntar em uma única matéria, a gramática com os seus intrincados conteúdos, a Redação, com as suas técnicas do “bem escrever” e a literatura, resumida a leituras de alguma obra indicada pelo professor, cujo entendimento era cobrado mediante questões pouco abrangentes ou inovadoras, no que tange ao real interpretar de texto.

Mas, ainda mais grave foi o modo como se lhe afigurava a velha e quase intransponível matemática, com aspecto de que lhe impingiria maiores dificuldades para atravessar os seus emaranhados de parêntesis, colchetes e chaves, os tão temidos e, para ele, indecifráveis “monômios” e “polinômios”. Aliás, ao que parece, todos os estudantes que os tiveram que enfrentar, sempre se perguntaram, no auge da sua agonia por não conseguir compreender a razão de ser daqueles indigitados, qual a necessidade de ser imposto a todos o seu ensino? Qual a utilidade prática que aquilo viria a ter para o cidadão que, mais tarde, se teria que apresentar para habilitar-se em Administração, Secretariado, magistério ou enfermagem? Visto que há bem pouco tempo foram extintos os cursos colegiais e Clássicos, para que atormentar aqueles adolescentes, mormente, aqueles que não possuíam qualquer pendor pelos cálculos?

A despeito de tais questões ainda permanecerem sem resposta e os tais “monômios” e “polinômios” permanecerem atormentando a juventude dos tempos da “Inteligência Artificial”, José Mário foi fragorosamente derrotado por eles, naquele ano e no seguinte.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – alagoinhas 02 de fevereiro de 2025

 

historiadorbaiano@gmail.com 

Um comentário:

  1. José Mário um estudante comum do interior da Bahia em tempo de ditadura alheio ao que ocorria no país por conta de sua vida simples, pacata e sem acesso à informação.

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