terça-feira, 21 de setembro de 2021

Um escrevedor volta a falar de memória musical – V: com o rádio no pé do ouvido – 1980 – O RECOMÊÇO

Um escrevedor volta a falar de memória musical – V: com o rádio no pé do ouvido – 1980 – O RECOMÊÇO

 

Tendo batido a cara na porta do setor pessoal da empresa para a qual fora orientado a comparecer no dia trinta e um de dezembro, no dia seguinte, terça-feira, primeiro dia do ano de 1980, este escrevedor e sua mãe, já se encontravam em Alagoinhas, depois de uma noite quase não dormida. Mãe e filho dividiram uma cama na casa de umas parentes. Para ele, aquilo prenunciara o que seria residir naquele local; também prenunciara os limites de movimentos que o lugar lhe imporia, visto ser um terreno completamente desconhecido, o que o obrigaria a depender de terceiros para sair e chegar; prenunciara um ambiente de restrições e dificuldades outras. Tais prenúncios fervilhavam em seu cérebro, pouco a pouco fortalecendo a decisão de não continuar ali e naquelas circunstâncias, apenas para ter uma vaga de trabalho cuja remuneração não seria suficiente para fazer frente às suas necessidades, acrescidas das responsabilidades inerentes ao viver em casa de terceiros.

Ao acordarem ainda cedo, ele comunicara a sua mãe a decisão tomada: não ficaria. Não estava disposto a depender de terceiros para morar, sair e chegar na moradia. Os horários de saída e os ônibus que precisaria pegar para cumprir o horário de trabalho, também foi um elemento importante na argumentação. Não convencida e até certo ponto contrariada, dona Manda aquiesceu e, pouco antes da hora do almoço já estavam acomodados em seus espaços, pouco mais de vinte e quatro horas após tê-los deixado para trás, rumo a capital.

Naquela tarde, voltara a circular no centro da cidade, como se dele tivesse afastado há anos. Fora ao posto telefônico da Telebahia, ainda na Sóror Joana Angélica e, enquanto conversava com um amigo dos tempos escolares, chega-lhe aos ouvidos os acordes executados pelo Trio Elétrico Valneijós, que interrompera o papo e, o arrastara atrás de si. Entrou no meio da turba, como se fosse – como de fato o foi – a última vez que sairia quase insano atrás daquele caminhão eletrizante, que percorrera o centro e dirigiu-se à Praça Maestro Santa Isabel, de onde este escrevente se dirigiu para sua casa.

Não ficou qualquer memória do que se tocou/dançou naquele dia. Mas, eram muitas as interrogações, as dúvidas e a necessidade de encontrar alguma resposta para algumas delas. Era o ano em que completaria vinte anos. O que tem definido? Nada. O que tem de perspectiva? Nada! O que fará para prover a si, a sua mãe que já apresentava nítidos sinais de cansaço? Não sabia, não atinava.

No domingo 06, fora ao aniversário da filha de um amigo, onde comera e bebera como poucas vezes o fizera; naquele mesmo domingo, fora até a casa de João e, lá estava seu pai e irmãos mais novos. Pegara no colo a irmã caçula – era a primeira vez que tinha nos braços um dos frutos de seu pai, ainda aprendendo a caminhar; a segunda vez que a tivera no colo, foi quatro anos mais tarde, quando o fora visitar convalescendo de infarto -, que contava pouco mais de um ano.

Talvez em busca de alguém que lhe ouvisse, na manhã do domingo seguinte, 13,dirigiu-se a casa de um casal amigo de sua mãe – seu Teobaldo e dona Jandira -, que o recebera, mas, não lhe poderia dar atenção naquela hora, pois estavam de saída para a “Escola Dominical”. Mas, fizeram o convite para os acompanhar, caso quisesse. O visitante declinara, visto não estar adequadamente vestido para se dirigir àquele local – que acreditava exigir roupas sóbrias, como aliás, acreditava ser as que vestiam o casal e os seus filhos. Mas, retrucaram, poderia ir à noite, para assistir ao culto. Começava as dezenove horas.

Um tanto desapontado com a situação que se encontrara, passou a se perguntar de si para consigo:

- O que haverá de tão importante ali, para eles terem um horário de permanência tão rígido e longo? O que se faz, o que se diz, em duas horas de culto pela manhã, e outras duas à noite?

Ainda na noite daquele domingo, se dirigira até o local onde congregava aquele casal, que não lhe era de todo desconhecido, visto que, alguns anos antes, até chegara a fazer uma “decisão”, não levada adiante, entre outras razões, pela sua dependência de pessoas para ir e vir aos lugares. Tudo ali lhe soara interessante e, convidado a voltar no domingo seguinte, quando se comemoraria o aniversário de organização da Igreja com “dias de conferência”, ainda movido pela curiosidade, acabou atendendo ao convite e fazendo – ou se diria, renovando – a decisão de ingressar no Evangelho, naquela Igreja que alguns meses depois o receberia como membro.

A próxima resolução a ser posta em prática, seria aquela que, com o tempo, seria a tomada de decisão que lhe daria os meios de que precisava para atender a sua premente necessidade de ter os meios para prover a si e a sua mãe, ter uma prole e, sobretudo, ter o respeito que dignifica  o homem. Embora o intervalo entre aquela retomada dos estudos e o início da concretização de tais objetivos tenha sido de dezesseis anos, aquela terça-feira chuvosa, 22 de janeiro de 1980, foi o recomeço da caminhada. Logo pela manhã, este garatujador dirigiu-se ao Estadual e, na secretaria, atendido por Seu Faustino, sempre atencioso funcionário, solicitou que fosse mais uma vez matriculado, para enfim, concluir a sétima série, duas vezes abandonada nos anos anteriores.

E a música? Bom. Aqui, faz-se necessário uma observação. O ainda mal iniciado ano de 1980, ainda repercutia o ano anterior, que transcorrera sob o signo da “abertura lenta, gradual...” promovida pelo governo do último dos generais-presidentes e, os compositores estavam mais livres para fazer fluir as suas letras, ainda focadas na ditadura iniciada em 1964, que, saliente-se, mantinha o controle do país, apesar da “abertura”. Era a volta dos exilados, a reestruturação dos partidos políticos e, Gilberto Gil – entre outros artistas e compositores acossados pela censura - escrevendo e cantando as suas músicas, exprimindo a dor daqueles que tiveram seus amigos e aliados presos ou mortos pela repressão política, sobretudo, aquela que fora lastreada no Ato Institucional número 5. É sob este pano de fundo que aquele ano continua repercutindo uma versão de “No Woman, No Cry” que chega avassaladora nos receptores de rádio – de Amplitude modulada e a Frequência Modulada, cada vez mais fazendo parte dos hábitos daqueles que ainda apreciavam o rádio como meio de entretenimento. Era aquela interpretação de Gil que chegavam aos ouvidos deste escrevente, enquanto eram vividos aqueles dias de profundas mudanças.

 

https://youtu.be/80G7jbLNc9c

 

José Jorge Andrade Damasceno

 21 de setembro de 2021     

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