Um escrevedor volta a falar de memória musical – IV: com o
rádio no pé do ouvido – 1979 – A Tentativa de Recolocação
O ano de 1979 se iniciou com muitas expectativas e foi
concluído com um feixe de frustrações e desenganos. Algumas decisões que foram
tomadas e iniciativas construídas a partir da perspectiva de ingressar no
mercado de trabalho e, sobretudo, no rol dos “homens”, deixou claro para este
escrevedor, que, embora ele de fato tenha conseguido ingressar no mercado de
trabalho, o tal ingresso não o faria “homem” pleno de seus direitos e capaz de atender
ao seu desejo de se tornar independente e pronto para assumir as rédeas de sua
vida, na acepção mais ampla que isto possa ter. Ele entrara em uma atividade laboral
por volta de abril daquele ano – ou fim de março.
NO entanto, na primeira semana de julho, ele já se
encontrava a caminho do Senai para se colocar na fila daqueles que precisariam
encontrar um novo local de exercício laboral, visto que era impossível
manter-se residindo em Salvador ou, indo para lá e vindo para cá, mediante a
remuneração recebida. O volume de recursos que precisava ser despendido para se
morar em Salvador – em moradias precárias e/ou coletivas -, excedia o valor do salário-mínimo,
que era a remuneração paga em grande parte dos estabelecimentos laborais onde era alocada boa parte dos cegos
que buscava o Senai para aquele fim.
Todo o resto daquele ano transcorreu em meio a expectativas,
tentativas, insistências e buscas. O candidato a “homem” independente e dono de
seu destino, custou a compreender as vicissitudes da vida laboral, sobretudo,
daquela construída por e para os cegos, na medida em que, mesmo sabendo que os
custos para se manter em Salvador não seriam cobertos pelo salário que
receberia em qualquer outro empreendimento do mesmo porte daquele que lhe fora
oferecido anteriormente - quer pela sua falta de preparo técnico especializado,
quer pela inexistência de relações pessoais com o responsável pelo setor de
colocação de mão de obra do Senai -, entendia que não haveria outra coisa a
fazer, se não, esperar que de alguma maneira, a próxima colocação fosse melhor,
haja visto que ele expusera ao “chefe do setor”, os motivos que o teriam levado
a deixar a colocação anterior.
Assim, em uma das idas para entrevistar-se com “Seu Manoel”,
voltara sem qualquer resposta favorável. E como se desdita pouca fosse bobagem,
acabara por esquecer no ônibus em que voltava – o único objeto que conseguira
comprar com a remuneração de seu trabalho, que não o pagamento de despesas com
comida e moradia -, a sua bolsa capanga contendo os documentos pessoais, que
levara consigo, na expectativa de que seria encaminhado para uma nova empresa.
Enfim dezembro. Com ele, sugira a esperada recolocação. Após
correr para obter novos documentos, fora ao Senai. Lá, fora lhe dito que se
apresentasse no novo local de trabalho, munido da documentação necessária para
a admissão. Daquela vez, ele iria só. Não teria a necessidade de ser
acompanhado pelo pessoal do Senai, pois, a empresa já era parceira e já recebia
trabalhadores cegos, portanto, sabendo lidar com eles e lhes dar o treinamento
necessário para o bom desempenho das tarefas que lhe seriam atribuídas.
Mas, qual seria a data em que o candidato a operário deveria
se apresentar na empresa?
- 31 de dezembro. Pode chegar e procurar o setor pessoal com
os documentos.
O crédulo e ainda “inocente, puro e besta” - conforme
dissera Raul Seixas -, assim fez. No dia informado ele de fato se apresentou na
empresa e, pediu para falar com o setor pessoal.
- Seu Manoel disse para eu vim e falar com ...
- “Meu amigo, hoje é véspera de ano! Não tem ninguém de
chefia aqui. Só os peão”!
Experimentando uma de suas primeiras frustrações de rapaz
feito adulto há pouco tempo, saiu dali com raiva do mundo e, sobretudo, de si
mesmo. Como poderia ter ignorado as lógicas – talvez até mesmo desconhecido –
das pessoas, que àquela altura, só estavam preocupadas com os seus folguedos e
os seus comeres e beberes? Como ele pudera desconhecer que, ninguém deixaria de
se envolver nos preparativos de suas comemorações, para ir receber um desempregado
para o tirar daquela condição?
Foi com tais interrogações e entre goles de vinho – que para
quase todos seria para comemorar a tal “chegada de um novo ano” - que ele
passou aquela noite de trinta e um de dezembro para primeiro de janeiro, bafejado
pela realidade nua e crua que lhe cuspira na cara: aprenda, bestão!
Talvez tenha sido aquilo que o fizera despertar para o fato
de que, definitivamente, aquele não seria o seu caminho, visto que, ainda que
lhe viesse a ser dado o dito emprego naquela empresa, não seria em nada
diferente do que tivera anteriormente; que os recursos advindos do seu labor,
não seriam suficientes, nem mesmo para residir em casa de parentes. Mesmo ali,
seria preciso contribuir nas contas, na obtenção de víveres. E para ele, nada
sobraria. Nada compraria para si, pois, é claro, não seria remunerado com mais
de um salário.
Talvez fosse pensando em tudo aquilo, que ele cantasse a
plenos pulmões “No aço dos meus olhos/e o fel das minhas palavras/Acalmaram meu
silêncio/mas, deixaram suas marcas”; Se hoje sou deserto/é que eu não sabia,
que as flores/com o tempo/perdem a força/e a ventania/vem mais forte...”
Era assim, com o rádio no pé do ouvido que, ao tocar “noturno”,
em uma interpretação magistral de
Raimundo Fagner – aliás, para este garatujador, a melhor interpretação daquele cearense
-, que se explodia o desejo de vociferar cada sílaba, cada verso daquela letra
que, ainda hoje, demonstra a rudeza da vida, que para este narrador, se
apresentara tão cedo, talvez, querendo mostrar o quanto ele teria de lutar, de
brigar mas, sobretudo, o quanto ele teria que amadurecer, para não ser de todo
tragado pelas encrespaduras do viver humano.
José Jorge Andrade Damasceno
Domingo, 19 de setembro de 2021.
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