domingo, 19 de setembro de 2021

UM ESCREVEDOR FALA DE MEMÓRIA MUSICAL - IV.

Um escrevedor volta a falar de memória musical – IV: com o rádio no pé do ouvido – 1979 – A Tentativa de Recolocação

 

O ano de 1979 se iniciou com muitas expectativas e foi concluído com um feixe de frustrações e desenganos. Algumas decisões que foram tomadas e iniciativas construídas a partir da perspectiva de ingressar no mercado de trabalho e, sobretudo, no rol dos “homens”, deixou claro para este escrevedor, que, embora ele de fato tenha conseguido ingressar no mercado de trabalho, o tal ingresso não o faria “homem” pleno de seus direitos e capaz de atender ao seu desejo de se tornar independente e pronto para assumir as rédeas de sua vida, na acepção mais ampla que isto possa ter. Ele entrara em uma atividade laboral por volta de abril daquele ano – ou fim de março.

NO entanto, na primeira semana de julho, ele já se encontrava a caminho do Senai para se colocar na fila daqueles que precisariam encontrar um novo local de exercício laboral, visto que era impossível manter-se residindo em Salvador ou, indo para lá e vindo para cá, mediante a remuneração recebida. O volume de recursos que precisava ser despendido para se morar em Salvador – em moradias precárias e/ou coletivas -, excedia o valor do salário-mínimo, que era a remuneração paga em grande parte dos estabelecimentos  laborais onde era alocada boa parte dos cegos que buscava o Senai para aquele fim.

Todo o resto daquele ano transcorreu em meio a expectativas, tentativas, insistências e buscas. O candidato a “homem” independente e dono de seu destino, custou a compreender as vicissitudes da vida laboral, sobretudo, daquela construída por e para os cegos, na medida em que, mesmo sabendo que os custos para se manter em Salvador não seriam cobertos pelo salário que receberia em qualquer outro empreendimento do mesmo porte daquele que lhe fora oferecido anteriormente - quer pela sua falta de preparo técnico especializado, quer pela inexistência de relações pessoais com o responsável pelo setor de colocação de mão de obra do Senai -, entendia que não haveria outra coisa a fazer, se não, esperar que de alguma maneira, a próxima colocação fosse melhor, haja visto que ele expusera ao “chefe do setor”, os motivos que o teriam levado a deixar a colocação anterior.

Assim, em uma das idas para entrevistar-se com “Seu Manoel”, voltara sem qualquer resposta favorável. E como se desdita pouca fosse bobagem, acabara por esquecer no ônibus em que voltava – o único objeto que conseguira comprar com a remuneração de seu trabalho, que não o pagamento de despesas com comida e moradia -, a sua bolsa capanga contendo os documentos pessoais, que levara consigo, na expectativa de que seria encaminhado para uma nova empresa.

Enfim dezembro. Com ele, sugira a esperada recolocação. Após correr para obter novos documentos, fora ao Senai. Lá, fora lhe dito que se apresentasse no novo local de trabalho, munido da documentação necessária para a admissão. Daquela vez, ele iria só. Não teria a necessidade de ser acompanhado pelo pessoal do Senai, pois, a empresa já era parceira e já recebia trabalhadores cegos, portanto, sabendo lidar com eles e lhes dar o treinamento necessário para o bom desempenho das tarefas que lhe seriam atribuídas.

Mas, qual seria a data em que o candidato a operário deveria se apresentar na empresa?

- 31 de dezembro. Pode chegar e procurar o setor pessoal com os documentos.

O crédulo e ainda “inocente, puro e besta” - conforme dissera Raul Seixas -, assim fez. No dia informado ele de fato se apresentou na empresa e, pediu para falar com o setor pessoal.

- Seu Manoel disse para eu vim e falar com ...

- “Meu amigo, hoje é véspera de ano! Não tem ninguém de chefia aqui. Só os peão”!

Experimentando uma de suas primeiras frustrações de rapaz feito adulto há pouco tempo, saiu dali com raiva do mundo e, sobretudo, de si mesmo. Como poderia ter ignorado as lógicas – talvez até mesmo desconhecido – das pessoas, que àquela altura, só estavam preocupadas com os seus folguedos e os seus comeres e beberes? Como ele pudera desconhecer que, ninguém deixaria de se envolver nos preparativos de suas comemorações, para ir receber um desempregado para o tirar daquela condição?

Foi com tais interrogações e entre goles de vinho – que para quase todos seria para comemorar a tal “chegada de um novo ano” - que ele passou aquela noite de trinta e um de dezembro para primeiro de janeiro, bafejado pela realidade nua e crua que lhe cuspira na cara: aprenda, bestão!

Talvez tenha sido aquilo que o fizera despertar para o fato de que, definitivamente, aquele não seria o seu caminho, visto que, ainda que lhe viesse a ser dado o dito emprego naquela empresa, não seria em nada diferente do que tivera anteriormente; que os recursos advindos do seu labor, não seriam suficientes, nem mesmo para residir em casa de parentes. Mesmo ali, seria preciso contribuir nas contas, na obtenção de víveres. E para ele, nada sobraria. Nada compraria para si, pois, é claro, não seria remunerado com mais de um salário.

Talvez fosse pensando em tudo aquilo, que ele cantasse a plenos pulmões “No aço dos meus olhos/e o fel das minhas palavras/Acalmaram meu silêncio/mas, deixaram suas marcas”; Se hoje sou deserto/é que eu não sabia, que as flores/com o tempo/perdem a força/e a ventania/vem mais forte...”

Era assim, com o rádio no pé do ouvido que, ao tocar “noturno”, em uma  interpretação magistral de Raimundo Fagner – aliás, para este garatujador, a melhor interpretação daquele cearense -, que se explodia o desejo de vociferar cada sílaba, cada verso daquela letra que, ainda hoje, demonstra a rudeza da vida, que para este narrador, se apresentara tão cedo, talvez, querendo mostrar o quanto ele teria de lutar, de brigar mas, sobretudo, o quanto ele teria que amadurecer, para não ser de todo tragado pelas encrespaduras do viver humano.

 

https://youtu.be/i3LGfg92xyE

 

José Jorge Andrade Damasceno

Domingo, 19 de setembro de 2021. 

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