Um escrevedor volta a falar de memória musical III – Com o
rádio no pé do ouvido: 1978 entre o auge da “Discoteque” e a morte de dois
Papas.
O ano começa como todos os anos até aqui já vividos por este
escrevente: milhares de felicitações e vãos desejos de “um ano bom”; um grande
número de expectativas afloradas no curso de uma vida que se aproximava do ano
da maior idade, que se preparava para o alistamento militar, a retirada de
novos documentos, o reinício de mais uma temporada escolar, prometendo mais
tropeços em meio à raiz quadrada, à famigerada
equação do primeiro grau, com seus jogos de sinais, números dentro e fora dos
parêntesis, dos colchetes e das chaves... coisas que se embaralhavam no
bestunto do aluno que partia para cursar a segunda sétima série, já que no ano
anterior, ele a abandonara por se apresentar com grande dificuldade para
operacionalizar aquelas complicadas sentenças matemáticas e, pior do que isto,
poder demonstrar aos professores os parcos resultados alcançados, visto que
naquele caso, a ferramenta datilográfica não o ajudaria. Se recusando a uma
reprovação por conceito, optou pelo abandono, após fazer algumas contas e
entender que não alcançaria a média naquela matéria que teimava em não se
deixar apreender pelo seu bestunto. D
Mas, o camarada não era de todo rude; além de obter alguns
progressos no aprendizado de violão, também conseguiu chutar uma bola, adaptada
pelo seu colega de vadiagens. Nesta toada, foram realizadas algumas partidas
envolvendo os cegos de Salvador, Alagoinhas e Feira de Santana, nas quadras do 4º
batalhão da Polícia Militar e no clube Acra; no clube de regatas Itapagipe e na
quadra do hoje já inexistente ginásio do Balbininho em Salvador – aliás,
horrível para os cegos que ouvem mal! – e na quadra do Tênis clube de Feira de
Santana, além de Candeias, do centro social urbano da Caixa D’água.
Aquele ano também foi marcado pelo êxito da música “dancing”,
que já entrara no Brasil um tanto tímida, uns dois ou três anos antes. No entanto, 1978, ela
ganhou força junto ao público jovem, não só com um grande número de faixas internacionais,
como com algumas versões e, até mesmo alguns grupos especialmente criados para
surfar naquela nova onda.
Grace Jones - La Vie En Rose –
John Travolta & Olivia Newton-John - Summer Nights –
John Travolta & Olivia Newton-John - You're The One That
I Want –
No ano anterior, Rita Lee já satirizava aquele modismo, bem
à maneira brasileira:
E, no ano seguinte, ela reforça a sua sátira, precisamente
com algumas músicas que embarcaram nos “embalos de sábado à noite”. Mas,
saliente-se de passagem, que ela mesma não se poupou da acidez de suas críticas:
Ao mesmo tempo em que Caetano Veloso cantava São Paulo, de
um modo um tanto quanto filosófico, já que a expressão “Narciso acha feio o que
não é espelho”, acabou por ser uma espécie de “emblema” daquela São Paulo que
ele retratara em “Sampa”:
Mas, sem qualquer sombra de dúvidas, a música que mais refletiu o estado de ânimo daquele brasileiro
que já começava a ganhar algum entendimento do cenário político do país foi “Cálice”,
magistralmente interpretada por Chico Buarque de Holanda e Milton Nascimento, não
sem grandes dificuldades, visto que a Censura Federal era implacável com as
letras de Chico, embora aquela gente pouco entendesse dos seus versos, apenas
tidos por “subversivos”.
Como sempre, este escrevedor ouviu pela primeira vez esta
música, através da rádio Mundial do Rio de Janeiro, bem como através da rádio
Jornal do Brasil, no cair da tarde ou ao anoitecer, que a propagação hertziana
facilitava a chegada daquelas emissoras de rádio “AM” por estas paragens.
Muitas vezes com o rádio apertado ao ouvido, buscando uma melhor absorção tanto
da melodia, quanto da letra que emanava daquela interpretação precisa do
momento político e social de repressão e truculência propugnada pelo governo
dos generais, iniciado pelo golpe de 1964.
Já no segundo semestre do ano de 1978, tendo retornado de
uma daquelas partidas de futebol acima mencionada, ao chegar em casa, já quase
por volta das oito da noite de um domingo, 6 de agosto, como habitualmente
fazia, encostou o rádio ao pé do ouvido para se inteirar das notícias e, também
pela rádio Jornal do Brasil, este garatujador ouviu a notícia da morte do Papa
Paulo VI, que, como seria de se esperar, desencadeou uma grande comoção entre os professantes da fé católica,
embora aquela morte tenha se dado dentro das premissas naturais do viver
humano.
No entanto, a surpresa ficaria por conta da morte do seu sucessor,
João Paulo I, que governara os católicos pelo curto período de pouco mais ou
menos três meses. Mais intrigante do que o seu efêmero pontificado, foi o mistério
que envolveu a causa e a circunstância de sua morte.
José Jorge Andrade Damasceno – 13 de setembro de 2021.
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