Janeiro 1986 – Às vésperas das provas – II.
Ainda uma vez, se apresenta mais um escrito fundamentado nas
reminiscências do seu autor, para submeter ao crivo daqueles que se dignem a
emprestar um pouco do seu tempo para percorrer as suas linhas. Conforme já se
vem apontando há nove semanas, estes garatujares são frutos dos sedimentos
arrancados das escarpas da memória de quem se lembra, para que ao trazer à tona
os fragmentos deles derivados, se possa desenvolver os objetivos a que se
propõe ao elaborar tais rememorares: construir um conjunto de escritos que deem
testemunho de um tempo vivido. Conforme sustenta P. Ricöeur (1913-2005), “[...],
o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a
história” (RICÖEUR, 2007, p. 41). De tal testemunho se vem valendo este
escrevedor para trazer à lume, algumas das facetas que envolveram o caminhar de
José Mário em seu esforço para construir o seu jornalhar, quer enquanto
estudante que se via necessitado de aprofundar o seu processo formativo escolar,
quer enquanto cidadão que passara a entender ser indispensável ter uma formação
concreta do ponto de vista profissional, se quisesse se fazer inserir no viver
cotidiano do mundo à sua volta.
Em tal perspectiva, talvez se possa iniciar considerando
que, o domingo que dera início à semana que antecedera àquela em que José Mário se dirigiria ao seu velho
conhecido “Estadual” para a realização do tão ansiosamente aguardado
vestibular, marcara uma espécie de contagem regressiva em termos de finalização
dos esforços envidados até ali, com o fito de buscar desenvolver uma preparação para o enfrentamento
de um certame para o qual, por conta das suas circunstâncias – algumas delas já
apontadas em arrazoados anteriormente postados neste blog –, ele não estava em
condições de o fazer. Conforme já se vem salientando, a sua defasagem propedêutica,
nas diversas áreas do conhecimento que seriam demandadas no referido certame,
era, em grande medida, notoriamente indisfarçável e,. cuja possibilidade de
contornar, exigira dele, empenho, disciplina férrea e a busca de apoios
daqueles com quem pudesse contar, tanto do ponto de vista material, quanto do
ponto de vista intelectual e professoral, conforme se leu em escritos
pretéritos.
Naquele terceiro domingo de janeiro, “comme d’habitude”, depois
de se barbear, do banho e de tomar o seu café, José Mário deixa a sua
residência, para dali se dirigir ao espaço onde passara a se reunir a “Assembléia
de Deus”, cujo percurso talvez se compusesse de uns dois quilômetros, feito a
pé. Após cerca de 50 minutos de caminhada no sol das oito e meia daquele
levantar de verão, ali chegara para tomar parte da “Escola Dominical”, no
entanto, sem estar ali, exceto o seu corpo, nem mesmo atentando para o que se
dizia acerca da “lição”.
Ele, por certo, divagava em pensamentos irrequietos e, a
cada momento mais distantes, quiçá, desejando imaginar o que se cobraria dele
dali há mais um domingo, a respeito da Língua portuguesa e de sua gramática, dos
autores, das obras e das “escolas”/estilos que compunham o vasto campo da Literatura
brasileira; o que se lhe seria pedido para dissertar, descrever, criar, ou
mesmo interpretar; como seria a prova de língua estrangeira? E as questões de
História, Geografia, Ecologia... Ah!: e as de matemática, de física, química ou
biologia, das quais ele pouco ou nada sabia? Fervilhavam no seu espírito,
inúmeras perguntas para as quais ele sequer atinava haver respostas; e
cabriolavam no seu cérebro situações e/ou circunstâncias para as quais ele imaginava
rebentar diante de si, sem que houvesse como atinar para as resolver ou mesmo,
remediar.
Como pode observar o
arguto leitor, José Mário se encontrava no interior daquele espaço de culto,
ainda em processo de construção – ainda não havia piso: apenas o concreto;
ainda não havia vitrais: apenas um grande espaço vazio nas suas janelas; até os
bancos eram improvisados em madeira bruta, sem que houvesse como encostar –
mas, os seus “sentidos” estavam dali distantes e, vagueavam bem longe dos
ressoares das vozes que ecoavam naquele lugar, quer fossem as que cantavam,
quer fossem as que proferiam confusas e uníssonas orações, ou, como já se
indicou, nem mesmo aquelas que “ensinavam aquelas “lições””, como que às apalpadelas. Pouco ou nada ele
absorvera daquela atividade – mecanicamente desenvolvida, saliente-se, de
passagem – tendo apenas concorrido para não se sentir “faltoso” ao culto, sem
uma justificativa plausível. Dali saíra, conforme ali chegara; disperso,
distante, reflexivo, sem qualquer “logro naquela empreitada matinal. Mas, o
retorno para casa, sob o causticante sol do meio-dia, foi presidido pelo azorrague
da fome. No entanto, o retorno à obrigação eclesiástica para o culto da noite,
não foi diferente. Cumpriu-se o rito, até se imiscuiu na liturgia. Porém: dali
estava distante, como na manhã descrita.
A manhã e todo o dia da segunda, do mesmo modo como
transcorreu por toda aquela semana iniciada no domingo dezenove, foi de intensificação
dos estudos, bem do mesmo modo que foi marcada pelo avultar da ansiedade, pela realização das últimas
leituras avulsas e solitárias, bem como, com as últimas lições de gramática e
literatura. Nelas não era possível ir longe nas divagações – embora houvesse
alguns lapsos de fuga dos pensamentos –, visto que a necessidade de melhorar o
seu conhecimento das matérias, o obrigavam a voltar para o lugar onde a atenção
lhe era cobrada pela excelente experiência da sua professora, que, por isto
mesmo, conseguia perceber o quão distante e disperso se fizera o seu aluno.
Destarte, em tardes cada vez mais quentes, à medida que
aquele janeiro avançava, José Mário se dirigia até aquela casa acolhedora da
sua mestre, na qual passara todos aqueles quase três meses que se interpuseram
entre a decisão de prestar o vestibular e a sua realização efetiva. Sob o
intenso sol das treze horas, sem qualquer meio de transporte, lá se ia ele,
percorrer aqueles quase dois quilômetros – a referida casa se localizava no
mesmo bairro da igreja aludida acima, situando-se em uma rua paralela –, a fim
de receber não só instruções e orientações relacionadas à matéria em causa,
como também desfrutar de apoio e acolhida, elementos que foram primordiais para
que José Mário levasse a empreitada até o seu final.
É preciso reiterar ainda uma vez que, não tendo economizado
esforços e atenção para aquele vestibulando mergulhado no desejo de seguir
adiante em seu périplo rumo ao patamar superior dos estudos, aquela professora de
saudosa memória para este escrevedor, teve um papel preponderante no sentido de
promover alguma confiança de que ele poderia vir a ter êxito naquela jornada,
fazendo com que José Mário, embora estando com uma sensação de que naufragaria naquele
navegar “impreciso”, se enchesse de ânimo e se dirigisse ao local de provas, para
ali, procurar exercitar o que aprendera em todo aquele tempo de calor intenso e
de muitas dúvidas sobre o seu devir.
Alagoinhas – 30 de novembro de 2025 – primavera brasileira.
Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
Cada vez que leio essas histórias fico embevecida
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