Janeiro de 1986 – Ano
“novo” que nada trazia de novo.
Em mais um esforço para trazer à lume alguns dos sedimentos de
memória escavados no fundo de armazenamento de placas sobrepostas de memórias,
este escrevedor chega com mais um arrazoado em que busca recuperar alguns
momentos do caminhar de José Mário nas sendas do seu processo formativo,
envolvendo alguns dos elementos com os quais ele fora pouco a pouco moldado,
para que pudesse dar os próximos passos na consecução do seu intento de se
tornar, enfim, um cidadão pleno e integralmente partícipe da vida econômica e
da convivência social, que se afirmava ser indispensável para a saúde humana. Neste
ponto, se faz necessário colocar em dúvida uma tal afirmativa, uma vez que, já
passados quase quarenta anos em que se deram as coisas aqui rememoradas, embora
tenha havido um avanço de José Mário no que tange à sua formação enquanto
cidadão economicamente produtivo, a tal “convivência social” ou, como entende
este escrevedor, a aceitação “social”, condicionada à inserção no processo
produtivo, acabou por permanecer sempre e em todo o tempo, no campo da expectativa,
expectativa, aliás, não plenamente correspondida, em consonância com a
realidade vivida. Conforme já se vem salientando ao longo destes garatujares, é
característica da memória de quem lembra, a propriedade de escolher o que
lembra e, sobretudo, de silenciar, esquecer ou falar sobre o que lembra. Há
vezes em que tais rememorares brotam aos borbotões, rebentando na memória de
quem se lembra, como ribeiros caudalosos, que jorram em profusões diversas e
díspares, forçando uma escolha daquilo que será dito, silenciado ou apagado por
quem lembra.
O mês de dezembro se encaminhava para o ocaso dos seus longos
e quase intermináveis trinta e um dias; dias que se tornavam mais quentes com a
chegada do verão nos trópicos; a primavera se apressava em seu passo rumo aos
ares temperados que dali há alguns meses ela alegraria com o seu despontar. Os
pássaros, as cigarras e os galináceos, sequer se davam conta de tais
alterações, afinal, aqueles seres estavam ajustados aos ires e vires das estações,
sem sofrerem as tensões inerentes aos humanos, cujas preocupações eram moldadas
pelo tempo do calendário; pelo tempo do relógio; pelo tempo do trabalho; pelo
tempo dos sinos das catedrais e das sirenes das escolas. Tal, evidentemente,
não se dava com as aves ou com os insetos, que nasciam, cresciam, se reproduziam,
envelheciam e morriam, sem que aqueles contares de tempo lhes importassem ou
moldassem o funcionamento dos seus equilíbrios biologicamente elaborados pelo Eterno
que os criou. Com jácas e cajus em abundância, o verão chegava e, com ele, as festas
de fim de ano que, saliente-se, que só o eram para tantos quantos tivessem os
meios econômicos para bancar os seus elevados custos. Aqueles que socialmente
estavam alijados de tais efemérides, quiçá, ficavam com as sobras e, em geral,
sobras apenas emocionais, se “alegrando” com os refestelares alheios e
distantes da realidade de grande parte dos terráqueos, entre os quais, José
Mário que, por azar, em tal ocasião, completava o seu acréscimo de dias vividos.
Assim, foi mergulhado em tais reflexões que ele recebera a virada
de mais uma página do calendário “gregoriano”, que indicara o ano de 1986, com
a cabeça prenhe de interrogações sem respostas e, pior, sem quaisquer esboços
de respostas. A tensão estava posta, por conta da aproximação da data de
realização das provas do vestibular a que se submeteria, mais para o final daquele
primeiro mês do ano que começara para José Mário, como o fora com os anteriores
– e, diga-se de passagem, como vieram a ser os que se sucederam –, marcados pelas
incertezas e incógnitas que sempre o cercaram em todo o tempo do seu viver. Não
possuía nada por certeza; os dias eram vividos sem quaisquer garantias do que
se teria, do que se seria, do que se daria... Um dia por vez, não por seu
querer racional; um dia por vez, por força da impossibilidade de prever ou
preparar o dia seguinte ou, ainda, sem sequer saber se haveria um dia seguinte.
Desta maneira, com todas aquelas dúvidas e questões
fervilhando naquele cérebro pleno de ansiedades, José Mário se dirigiu ao
espaço onde se reunia a igreja “Assembléia de Deus”, para ali participar do
entediante e pouco alentador ritual de “passagem de ano” – que os líderes
insistiam em chamar de “culto” –, cuja importância e eficácia – esta última,
sobejamente entendida como inexistente - para ele já se reduzira bastante,
desde que o começara a frequentar, sempre compulsoriamente, desde que lá
ingressara e, mesmo antes, quando participara entre os Batistas. Em ambos os
espaços, mas, principalmente no último deles, José Mário estivera com o fito de
ocupar um tempo que para ele era lento em sua passagem, uma vez que era inútil
tentar dormir nos horários costumeiros, em ocasião como aquela, em que os “alegres”
e ruidosos vizinhos procuravam macaquear os ricos e abastados membros de uma
elite social e econômica que celebravam com grande pompa o ano que para eles
fora permeado de lucros e dividendos, frutos da exploração de tantos quantos ora
estavam em grande euforia por terem sido os que trabalharam para que aqueles
outros pudessem esbanjar em suas festas comemorativas de “virada de ano”.
Sempre avesso a todo tipo de formalidade, tanto religiosa
quanto social , que por vezes, por pura conveniência, era catapultado ao nível
da “gratidão”, José Mário fora muitas vezes criticado pela sua descrença em relação
ao valor efetivo das diversas práticas litúrgicas.
Naquela mesma ocasião, fora confrontado por uma sua amiga, pelo fato de não ter
participado de um “culto” em celebração à conclusão do segundo grau, como ela e
outros o fizeram, inclusive, os filhos – principalmente as filhas –, dos figurões
da liderança eclesiástica. Calmamente e
com a convicção que o seu ceticismo lhe conferia, retrucou que, para ele,
aquela era apenas mais uma etapa do caminho percorrido e, que, de mais a mais,
muitas outras haveria que percorrer; era sim, grato ao Eterno por mais aquele
avançar; mas, não cria ser necessário uma manifestação celebrativa, apenas e
tão somente para atender às expectativas de quem quer que fosse, sem contar que
não possuía indumentária adequada ao tal “momento de gratidão”, nem teria como
obter, visto não dispor de erário onde pudesse buscar fazer frente àquela
necessidade extra de provimento.
Portanto, conforme ele mesmo esperava, saíra daquele ritual religioso,
pretensamente em “agradecimento” pela passagem de mais um ano, tão entediado e
com uma sensação de inutilidade, quanto saíra da sua casa para juntar-se àquela
horda de gente que dizia exprimir gratidão mas, que, ao que lhe parecera, mais
se esforçavam em dizer de si para consigo que estavam satisfeitos com o que
fizeram e/ou com o que obtiveram, do que propriamente, reconhecerem o quanto estavam
tristes e infelizes com a vida que levavam e com a pobreza que amargaram, na
verdade e sem mascaramentos, naquele ano que terminava e, para ele, já
terminava tarde e sem quase deixar saudade.
Alagoinhas – 16 de novembro de 2025 – primavera brasileira
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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