domingo, 7 de dezembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte X.

26 de janeiro de 1986 – as provas – I.

 

Em mais um arrazoado construído a partir de fragmentos de memórias de um tempo já pretérito que ainda não se fez passado já passado, uma vez que os seus sedimentos ainda podem ser escavados nas diversas camadas que compõem a memória, este escrevedor traz a tantos quantos se dignem a ler as linhas que se seguem, mais um tratado em que o caminhar de José Mário se faz reconstruir, ainda que fragmentariamente, apontando para o seu empreendimento no concurso de pavimentar o caminho que o leve a ingressar no ensino superior, com vistas a uma busca por implementar um processo formativo que lhe dê as ferramentas de trabalho no campo do ensino, bem como as condições de sua inserção econômica e social. Conforme assevera Paul Ricöeur (1913-2005), “[...] a memória continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no tempo, sem que nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem solução de continuidade. É principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade. [...]” (RICÖEUR, 2007, p. 108). Este escrevedor procura desenvolver os tratados que constrói a partir da memória, tomando a proposição acima transcrita, como fundamento basilar em que se estriba.

Era chegado o domingo, dia em que José Mário estaria pela primeira vez, diante de um certame em que igual a um bom número de outras pessoas, faria um conjunto de provas por meio das quais, sendo aprovados, ingressaria em um curso superior, ministrado por uma entidade pública de ensino. Portanto, se aproximava a hora em que tudo aquilo que buscara aprender – ou revisar; ou ainda, reaprender – durante todo o tempo transcorrido entre o dia em que fizera a inscrição para se habilitar a participar do desafio que era, sobretudo para ele, o intento de se fazer imiscuir entre os aprovados e, o momento em que se daria o combate pelas quarenta vagas no curso de licenciatura em História, seria posto à prova.

A noite anterior àquele 26 de janeiro foi de sono agitado, iniciado ainda cedo, quiçá antes das vinte e uma horas; noite longa, quase interminável; madrugada que se fazia arisca e, não chegava; alvorada marcada pela algazarra alegre da passarada que parecia teimar em não se apresentar aos ouvidos atentos daquele quase insone rapaz; o cheiro do amanhecer que se fazia fugidio, esquivando-se do nariz que tanto esperava poder o aspirar e, finalmente, perceber que ali sim, era chegada a hora de se levantar. As horas que não dormira, foram marcadas pelos ruminares das últimas lições; foram inundadas por perguntas que não se conseguiria respostas: qual será o tema da redação: Qual será a modalidade da redação: será uma “dissertação”? Será uma “descrição”?... Assim pensava; mas também, procurava se esforçar por reconciliar o sono, visto que a manhã que tão ansiosamente esperava chegar, seria longa e, exigiria concentração, atenção e cuidado para melhor apreender a leitura das questões, compreender o que se cobrava do candidato a partir dos enunciados nelas propostos e, sobretudo, entabular as respostas com lógica e coerência.

Enfim chegada que fora aquela manhã, José Mário se pusera de pé; tomara sua ducha fria; se encaminhara para o café. Aquele, saliente-se, fora um tanto diferente do padrão de café, uma vez que, sua mãe, entendendo que ele teria que estar por toda a manhã envolto na tarefa de fazer as provas; e ambos, não dispondo de recursos que permitisse a aquisição de lanches ou frutas para enganar a fome, lhe pusera um apetitoso prato de feijão com mocotó que ela acabara de preparar ainda antes do nascer do sol, que ele, evidentemente, se deliciara com a iguaria, entendendo que aquilo seria, sim, suficiente para aguentar todo o tempo que teria de provas, visto, como se disse, não ter outra maneira de mitigar a fome, no caso de se apresentar antes que pudesse terminar a sua realização.

Desta forma, tendo terminado o “almoço antecipado”; tendo tomado a sua xícara de café, vestiu-se, apanhou os seus instrumentos de que se valia para execução daquele tipo de tarefa – máquina de escrever Olivetti; reglete e punção para escrita em Braille – e partira em direção ao local das provas, que seriam aplicadas no espaço do seu velho conhecido “Estadual”. Saíra pouco antes ou pouco depois das seis da manhã; solitário, como quase sempre o fizera, percorrera o caminho habitual que o levara para o Centro Integrado Luís Navarro de Brito por tantos anos; todos que ali cursara o primeiro e o segundo graus. Fizera o trajeto a pé, pois, por ser um domingo, temia não passar ônibus em um horário que lhe permitisse chegar por volta das sete, quando seriam abertos os portões, procurando assim, fugir de algum transtorno que o impedisse de ter acesso ao local das provas. Quase fardado e calçado no seu tênis do tipo Kichute, aquele mesmo  dos últimos anos do segundo grau, andara sempre seguro do que fazia e do porquê fazia aquele trajeto, que, embora seu já conhecido, nunca lhe parecera tão longo e o seu fim esperado, tão demorado de se completar.

Portanto, logo após se distanciar cerca de quatrocentos metros do seu espaço de moradia, atravessara a via férrea e depois, a precária ponte sobre o rio Catu, ali, ele andara sentindo todo o frescor daquela manhã de verão, quando o sol se apresentava mais condescendente com o viajor, sem contar com o aspirar dos muitos cheiros do longo caminho, até então, pouco transitado por automóveis; aquele Luís Viana quase interminável, ainda era um bairro residencial, que, em uma quase madrugada de domingo, se mostrava bem mais silencioso, permitindo que se pudesse ouvir os chilreares dos muitos pássaros que povoavam a grande diversidade de árvores que ali existia e os últimos zunidos daqueles bichinhos noturnos que se refugiavam nos arbustos que formavam a paisagem do caminho que José Mário percorrera confiante, ansioso e temeroso, a um só tempo. Assim, embevecido pelos cheiros diversos vindos das chácaras que floresciam aqui e ali, deixando exalar os seus aromas tão suaves em delicados fragores de verão, ao longo dos cerca de dois quilômetros que foram sendo percorridos, seguia ele, procurando relembrar os ensinos de língua e literatura que recebera até aquele instante que se aproximava o momento de testar o quanto ele os apreendera. Ele, saliente-se, estava longe de apreciar todo aquele conjunto sinfônico que aquela orquestra da natureza lhe oferecia enquanto caminhava mergulhado naquela preocupação que quase o fizera indiferente à tão assombrosa harmonia estacional que o Eterno generosa e graciosamente lhe propiciava.

Enfim, pouco antes das sete horas, ele já lá estava, juntamente com uma multidão de outros seus concorrentes, certamente de origens sociais, econômicas e culturais bem diversas, que aguardavam a abertura dos portões, para então, darem início à jornada para a qual se inscreveram e dispuseram a enfrentar. Talvez, alguns já se conhecessem de outras jornadas; outro tanto, se encontravam pela primeira vez; José Mário, por sua vez, não fora reconhecido nem encontrara ninguém que lhe fosse conhecido. Ao serem abertos os portões, todos, absolutamente todos se dirigiram aos seus respectivos locais de prova, sem qualquer atenção àquele que, tal qual eles, também procurava se dirigir à sala indicada no seu cartão de inscrição, para lá, tomar contato com as provas e buscar responder as questões nelas propostas.

 

Alagoinhas – 07 de dezembro de 2025 – verão brasileiro.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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