sábado, 30 de agosto de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XIII

 

– Obras e autores parte XI.

 

Já prestes a concluir esta série de arrazoados em que se vem tratando das dificuldades encontradas por José Mário em se capacitar para empreender a leitura mais além das linhas de um texto dado, cabe salientar que, como se já vem pontuando nos garatujares anteriores, grande parte das obras que se dispusera a ler, mesmo no ambiente escolar – em casos em que conseguira acordos ou anuência de algumas docentes –, os títulos e os autores eram de sua livre escolha. Para tanto, ele procurava convencer os professores da necessidade de o fazer, argumentando que tal ou qual obra por ele escolhida, já se encontrava transcrita em Braille, o que tornaria a sua tarefa mais exequível, por não ter que enfrentar os transtornos advindos de fatores que iam desde a aquisição, a possível transcrição e, por fim, a leitura e compreensão de um título que ainda não estivesse em Braille. Eventualmente encontrando alguma resistência em algumas de suas mestres, ele procurava respeitosamente argumentar, dizendo que, em virtude das suas condições econômicas e sociais, não teria como adquirir a obra por elas escolhidas, outrossim, informava que não contava com colegas que morassem próximo do seu lugar de morada e, para completar, não teria como remunerar alguém que lhe pudesse ler o título em questão, para que depois ele pudesse ser por elas avaliado. Quase sempre, ele conseguia convencer as mestres a flexibilizarem no tocante à escolha da sua obra de trabalho, embora algumas delas se mostrassem recalcitrantes e não cedessem em suas posições e auras de autoridade, acabando por designar uma obra diferente daquela que fora proposta para o restante da turma, o que, saliente-se, didaticamente não era a melhor escolha a ser feita. Crê-se que, ao se posicionarem estabelecendo uma obra para toda a turma e uma outra para aquele aluno que não a poderia comprar ou, se o pudesse, não a poderia ler com autonomia, acabava por segregar as avaliações, já que não o poderia fazer sob os mesmos critérios adotados para todo o grupo..

 Assim, ao procurar ponderar com as suas professoras a impossibilidade de aceder com autonomia algumas das obras por elas propostas para a leitura obrigatória e avaliativa, aquele estudante buscava demonstrar para elas que, malgrado aqueles impedimentos, tanto de ordem econômica e social, quanto aquelas outras de caráter técnico, havia nele o interesse e a vontade de ler e por tal leitura ser avaliado, como o seria os seus demais colegas. Além da compreensão de que a leitura da mesma obra que o seria pelos demais alunos possibilitaria a realização de avaliações mais justas, José Mário entendia que para ele, um leitor voraz e interessado na leitura como sendo uma atividade escolar, daria a ele a oportunidade de melhor compreender os textos, mediante as explicações e as ponderações das suas mestres, uma vez que considerava que elas deveriam ser proficientes na execução daquele tipo de conteúdo e, como tais, estariam plenamente capacitadas para o bom andamento do seu processo formativo, que, ao fim e ao cabo, o levaria a alcançar o amadurecimento como cidadão e como estudante. Isto implicaria em uma melhor compreensão da vida em sociedade; na interação necessária para a sua inserção no mundo do trabalho e, nas lutas pelo seu integral processo de aceitação por parte da construção social como um todo, a despeito de limitações  sensoriais inerentes à sua condição de cegueira.

Portanto, todo aquele conjunto de obras que ele leu, fê-lo, em geral, por sua própria escolha, sempre com o intuito de desenvolver o seu processo formativo. Sem qualquer critério lastreado em qualquer distinção de pertencimento de tal ou qual obra, em tal ou qual escola literária, ele se aplicava em obter o material em Braille e, uma vez chegando às suas mãos, ele percorria diligentemente as suas páginas, nem sempre alcançando compreendê-las nas suas intertextualidades, como já se vem salientando há já alguns arrazoados. No entanto, algumas delas ele não logrou completar a leitura, tendo já sido apontadas algumas dentre elas, aqui nestes garatujares, como foi o caso de “O Romance de um Moço Pobre”, alguns títulos de Monteiro Lobato, entre outros já comentados em escritos anteriores.

Aqui, no entanto, vale mencionar uma das obras primas da lavra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), de quem se vem tratando nas últimas postagens. Aquele rapaz com inúmeros defeitos de formação escolar, não concebia que alguém já morto e sepultado, viesse a escrever um tratado abordando situações, circunstâncias e aspectos retroativo de sua vida já finda, apontando para o que já vivera e, quiçá, elaborando juízo sobre o que fizera, sobre o que propusera, sobre o que pensara devesse ter feito e, assim por diante. Para Zé Mário, não fazia o menor sentido ler um texto escrito a partir da sepultura do seu autor. Ora, pensava  o rapaz atônito, ali já era demais para aquele desnorteado leitor que, se mal compreendia as linhas pelas quais transitavam os seus dedos, página a página, imagina compreender um escrito produzido a partir de um lugar em que, quem lá se encontra, não pode nem mesmo se revolver no ataúde em que está encerrado... Onde já se viu, um defunto se arvorar a escrever um texto zombando até mesmo daqueles que choravam a sua morte! Ali, era exigir “demais da conta”, como diriam mineiros e goianos, para um leitor que se encontrava fechado em si mesmo e, sem algum outro leitor mais bem versado nas lides da produção literária brasileira e oitocentista para dialogar consigo... Como compreender se tratar de fina ironia de Machado de Assis, se para aquele leitor raso e sem uma compreensão daquilo que se encontrava nas entrelinhas da aludida obra, a literatura nada mais era do que construções romanescas envolvendo indivíduos vivos, com enredos que envolvia tramas amorosas ou, quando muito, tramas envolvendo disputas políticas econômicas em torno de alguma fortuna ou alguma coisa do tipo?

Assim pensando e, diante da completa incompreensão daquilo que intentara ler, nada mais restou àquele estudante de primeiro grau, afrontado de chofre na sua plena ignorância das ferramentas literárias e da genialidade de Machado de Assis, senão fecharas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, sem que houvesse ultrapassado as primeiras cinco ou seis páginas - como já prevenira o seu autor ao apresentar a obra ao público -, para só voltar a abri-la cerca de vinte anos depois e, por fim, ler por completo e, melhor compreender aquela composição magistral do cognominado “Bruxo do Cosme Velho”. Daquela vez, a obra fora mais bem compreendida e, até se lançou mão de alguns de seus trechos para desenvolver a peça introdutória de dissertação de mestrado, defendida em 1998.

 

Alagoinhas – 30 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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