– Obras e autores parte XI.
Já prestes a concluir esta série de arrazoados em que se vem
tratando das dificuldades encontradas por José Mário em se capacitar para
empreender a leitura mais além das linhas de um texto dado, cabe salientar que,
como se já vem pontuando nos garatujares anteriores, grande parte das obras que
se dispusera a ler, mesmo no ambiente escolar – em casos em que conseguira
acordos ou anuência de algumas docentes –, os títulos e os autores eram de sua
livre escolha. Para tanto, ele procurava convencer os professores da
necessidade de o fazer, argumentando que tal ou qual obra por ele escolhida, já
se encontrava transcrita em Braille, o que tornaria a sua tarefa mais
exequível, por não ter que enfrentar os transtornos advindos de fatores que iam
desde a aquisição, a possível transcrição e, por fim, a leitura e compreensão
de um título que ainda não estivesse em Braille. Eventualmente encontrando
alguma resistência em algumas de suas mestres, ele procurava respeitosamente argumentar,
dizendo que, em virtude das suas condições econômicas e sociais, não teria como
adquirir a obra por elas escolhidas, outrossim, informava que não contava com
colegas que morassem próximo do seu lugar de morada e, para completar, não
teria como remunerar alguém que lhe pudesse ler o título em questão, para que
depois ele pudesse ser por elas avaliado. Quase sempre, ele conseguia convencer
as mestres a flexibilizarem no tocante à escolha da sua obra de trabalho,
embora algumas delas se mostrassem recalcitrantes e não cedessem em suas
posições e auras de autoridade, acabando por designar uma obra diferente
daquela que fora proposta para o restante da turma, o que, saliente-se,
didaticamente não era a melhor escolha a ser feita. Crê-se que, ao se
posicionarem estabelecendo uma obra para toda a turma e uma outra para aquele
aluno que não a poderia comprar ou, se o pudesse, não a poderia ler com
autonomia, acabava por segregar as avaliações, já que não o poderia fazer sob
os mesmos critérios adotados para todo o grupo..
Assim, ao procurar
ponderar com as suas professoras a impossibilidade de aceder com autonomia
algumas das obras por elas propostas para a leitura obrigatória e avaliativa, aquele
estudante buscava demonstrar para elas que, malgrado aqueles impedimentos,
tanto de ordem econômica e social, quanto aquelas outras de caráter técnico,
havia nele o interesse e a vontade de ler e por tal leitura ser avaliado, como
o seria os seus demais colegas. Além da compreensão de que a leitura da mesma obra
que o seria pelos demais alunos possibilitaria a realização de avaliações mais
justas, José Mário entendia que para ele, um leitor voraz e interessado na leitura
como sendo uma atividade escolar, daria a ele a oportunidade de melhor
compreender os textos, mediante as explicações e as ponderações das suas
mestres, uma vez que considerava que elas deveriam ser proficientes na execução
daquele tipo de conteúdo e, como tais, estariam plenamente capacitadas para o
bom andamento do seu processo formativo, que, ao fim e ao cabo, o levaria a
alcançar o amadurecimento como cidadão e como estudante. Isto implicaria em uma
melhor compreensão da vida em sociedade; na interação necessária para a sua
inserção no mundo do trabalho e, nas lutas pelo seu integral processo de
aceitação por parte da construção social como um todo, a despeito de limitações
sensoriais inerentes à sua condição de
cegueira.
Portanto, todo aquele conjunto de obras que ele leu, fê-lo,
em geral, por sua própria escolha, sempre com o intuito de desenvolver o seu
processo formativo. Sem qualquer critério lastreado em qualquer distinção de
pertencimento de tal ou qual obra, em tal ou qual escola literária, ele se
aplicava em obter o material em Braille e, uma vez chegando às suas mãos, ele
percorria diligentemente as suas páginas, nem sempre alcançando compreendê-las
nas suas intertextualidades, como já se vem salientando há já alguns arrazoados.
No entanto, algumas delas ele não logrou completar a leitura, tendo já sido
apontadas algumas dentre elas, aqui nestes garatujares, como foi o caso de “O
Romance de um Moço Pobre”, alguns títulos de Monteiro Lobato, entre outros já
comentados em escritos anteriores.
Aqui, no entanto, vale mencionar uma das obras primas da
lavra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), de quem se vem tratando nas
últimas postagens. Aquele rapaz com inúmeros defeitos de formação escolar, não
concebia que alguém já morto e sepultado, viesse a escrever um tratado abordando
situações, circunstâncias e aspectos retroativo de sua vida já finda, apontando
para o que já vivera e, quiçá, elaborando juízo sobre o que fizera, sobre o que
propusera, sobre o que pensara devesse ter feito e, assim por diante. Para Zé
Mário, não fazia o menor sentido ler um texto escrito a partir da sepultura do
seu autor. Ora, pensava o rapaz atônito,
ali já era demais para aquele desnorteado leitor que, se mal compreendia as
linhas pelas quais transitavam os seus dedos, página a página, imagina
compreender um escrito produzido a partir de um lugar em que, quem lá se
encontra, não pode nem mesmo se revolver no ataúde em que está encerrado... Onde
já se viu, um defunto se arvorar a escrever um texto zombando até mesmo
daqueles que choravam a sua morte! Ali, era exigir “demais da conta”, como
diriam mineiros e goianos, para um leitor que se encontrava fechado em si mesmo
e, sem algum outro leitor mais bem versado nas lides da produção literária
brasileira e oitocentista para dialogar consigo... Como compreender se tratar
de fina ironia de Machado de Assis, se para aquele leitor raso e sem uma
compreensão daquilo que se encontrava nas entrelinhas da aludida obra, a
literatura nada mais era do que construções romanescas envolvendo indivíduos vivos,
com enredos que envolvia tramas amorosas ou, quando muito, tramas envolvendo
disputas políticas econômicas em torno de alguma fortuna ou alguma coisa do
tipo?
Assim pensando e, diante da completa incompreensão daquilo
que intentara ler, nada mais restou àquele estudante de primeiro grau,
afrontado de chofre na sua plena ignorância das ferramentas literárias e da
genialidade de Machado de Assis, senão fecharas “Memórias Póstumas de Brás
Cubas”, sem que houvesse ultrapassado as primeiras cinco ou seis páginas - como
já prevenira o seu autor ao apresentar a obra ao público -, para só voltar a
abri-la cerca de vinte anos depois e, por fim, ler por completo e, melhor compreender
aquela composição magistral do cognominado “Bruxo do Cosme Velho”. Daquela vez,
a obra fora mais bem compreendida e, até se lançou mão de alguns de seus trechos
para desenvolver a peça introdutória de dissertação de mestrado, defendida em
1998.
Alagoinhas – 30 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.
Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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