– Obras e autores parte VIII.
Conforme se vem
salientando nestes garatujares, os elementos trazidos ao crivo da arguta
observação de tantos quantos se interessem em lê-los, estão ineludivelmente
arraigados no rememorar daquele que os escreve, considerando, evidentemente, o
que se vem dizendo acerca do lembrar, do esquecer, do silenciar, do apagar. Estes
movimentos da memória têm por princípio a preservação do vivido ou, pelo menos,
o esforço para não o perder de todo, fazendo daquela experiência uma espécie de
trampolim para o salto nas lembranças e, por consequência, procurar construir
um caudal de elaborações de um dado passado lembrado. Conforme preconiza Jeanne
Marie Gagnebin,
“[...]. Tal rememoração implica uma certa
ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se
lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para
dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve
direito nem à lembrança nem às palavras.
A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas
estranhas ressurgências do passado no
presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado,
mas também de agir sobre o presente. A
fidelidade ao passado, não sendo um fim
em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2009, P. 55).
Há já algumas postagens, vem-se desenvolvendo arrazoados que
demonstrem a hipótese que os move, que é a de que José Mário em seu processo
formativo, sofreu com a falta de alguns instrumentos que lhe facilitassem a
apreensão dos elementos que constituem o modo de pensar inerente ao mundo em
que estava inserido, que lhe ajudassem a absorver não somente os textos que lhe passassem sob os dedos, mas, sobretudo, o
ajudassem a perceber com clareza, as articulações empregadas nas construções
literárias que formatam os diversos contextos sobre os quais se desenrolavam os
enredos propostos pelos autores das obras lidas. Tal falta acabou por produzir alguns
déficits no seu processo formativo que dificultaram e muito, a construção de
ferramentas interpretativas dos ditos e dos não ditos inerentes aos textos
literários, retardando a sua compreensão de mundo, a sua construção de um pensamento
crítico, procrastinando assim o seu crescimento, amadurecimento e frutificação
intelectual, tão necessários à interação social, à intervenção no que diz
respeito às relações com o conviver com a sociedade e com as exigências
inerentes ao processo de inserção como força de trabalho ativa na produção
material e imaterial, indispensáveis ao viver e à sobrevivência junto aos
demais elementos constitutivos da formação econômica e social a que pertence.
É neste sentido que aqui se traz mais um conjunto de obras
que foram lidas por José Mário quando
estava procurando desenvolver o seu processo formativo para a vida adulta e
laboral, mas, a despeito da atenção e do interesse com que se lançou à tarefa
de percorrer as suas páginas em Braille, não as entendeu, ou, o que viria a ser
a mesma coisa, não conseguiu abstrair daquela obra entrada naquilo que viria a
se denominar “escola realista”, aquilo que era objetivo do autor, comunicar por
meio dos seus escreveres, muito menos, compreendeu que se tratava de um
retratar histórico através da literatura, de um ciclo econômico do Brasil, há
já algum tempo sendo superado por outros ciclos que lhe sobrepuseram: o ciclo
da cana de açúcar.
Desta forma, para
trazer ao público leitor um pouco daquela fase da História econômica brasileira
através da produção literária, José Lins do Rego (1901-1957), desenvolveu uma
espécie de série composta por cinco títulos, que consistiu em desenvolver
tramas distribuídas em publicações trazidas à lume em cerca de aproximadamente cinco anos entre a primeira e a quinta obra –
tendo surgido uma sexta, publicada sete anos depois da quinta dentre elas -,
através da qual ele elaborou uma saga elementar para a compreensão daquele
Brasil que se queria novo, sobretudo, após a eclosão dos episódios que desaguaram
naquilo que ficou historicamente conhecida como “A Revolução de 30”, que pôs
fim ao período chamado de “República Velha” ou, “República do Café com Leite”,
período em que as oligarquias rurais pouco a pouco, perdiam a hegemonia
exercida sobre aquela sociedade em que a maioria da população nascera,
crescera, se desenvolvera e morrera nos interstícios das propriedades rurais
pertencentes aos chefes locais, sendo forçada a dar lugar a uma “burguesia”
urbana em franco crescimento, que reclamava um lugar político equivalente ao
domínio econômico que se lhe afigurava como inerente à riqueza que acumulara
até ali. .
Portanto, Menino de
Engenho 1932, Doidinho 1933, Bangüê 1934, O Moleque Ricardo 1935 e Usina 1936, além
de Fogo Morto que foi publicada em 1943, eram as obras que compunham o que se
convencionou denominar de “ciclo da cana-de-açúcar”, onde Lins do Rego procurara
mostrar aos seus leitores o paulatino e vigoroso enfraquecimento do domínio
exercido pelos coronéis dos engenhos sobre a grande maioria da população, quase
sempre a eles subordinada e, por eles, constantemente ameaçada, se acaso lhes
contrariasse a vontade ou, não lhes atendesse os caprichos. Oriundos dos
setores que dominaram a cena política e a vida econômica e que deram as cartas
para o funcionamento da sociedade brasileira, praticamente, por todo o tempo de
construção do Estado e de sua formação sociocultural, no instante mesmo em que se
dera o processo de ocupação portuguesa. Desde a implantação da República no
último decênio do século XIX, aqueles coronéis experimentavam um franco e
inelutável declínio de sua importância econômica e, veem erodida a relevância de
sua participação política no que tange à determinação dos destinos daquela
Nação, nascida como resultado do fim do império dos Orleans e Bragança.
Assim, quarenta e
dois anos depois da publicação de Menino de Engenho, Zé Mário, arrastado pela
onda levantada por outros colegas que, tal qual ele, também entraram em contato
com aquelas obras no mesmo momento da formação escolar, acabara por ler as três
primeiras delas, sem contudo, encontrar em suas páginas, nada mais do que texto
muito bem escrito – como não poderia deixar de o ter sido – e que a ele se lhe
afigurava como uma prosa bem concatenada e coerente, sem, no entanto, fazer
grande sentido para aquele leitor superficial.
Conforme já se
apontou acima, não obstante o interesse, a atenção e o empenho de José Mário em
se assenhorar do conteúdo das obras que se dispusera a percorrer com os seus
dedos, pouco ficou daquele esforço em tomar contato com o enredo desenvolvido
pelo autor, a não ser, alguns fragmentos que se lhe introjetaram na memória,
como duas quadras recitadas pelas gentes em seus azafamas diários que Lins do
Rego transpusera a sua trama, apesar de Zé Mário talvez não ser capaz de dizer
em qual das três que lera se encontrariam as quadras infamantes, urdidas e que eram
disparadas por três ou mais grupos de subalternos que se conflagravam entre si,
embora, aquele leitor não atinasse a razão de tais confrontos, se nenhum dos
grupos era formado pelos proprietários ou pelos seus herdeiros. A primeira das
quadras que passava de boca em boca, no formato de insultos cuspidos na cara
dos contendores, dizia: “Branco Deus fez; mulato Deus pintô; caboco bufa de
porco, nêgo o diabo cagô. A segunda delas dizia: “Branco dorme na sala; mulato
no corredô; caboco na cozinha; nêgo no cagadô”. Elas eram recitadas uns contra
os outros e, dependendo dos níveis de acirramento dos ânimos, poderia acabar em
pródiga pancadaria.
Mas, qual era a razão
daquela animosidade, o voraz leitor não conseguira encontrar. Na verdade, se
quer ele atentara para aquilo que poderia estar no subtexto daquela
manifestação insidiosa, como sendo uma relação conflituosa que formatasse uma
reação à mestiçagem – para não dizer uma rejeição a ela - presente na
configuração da população rural, que constituía o maior contingente que formava
as gentes que habitava nos engenhos. Ao contrário: ele entendia como alguma
coisa passível de risos; como se fossem brincadeiras inofensivas para aqueles
que eram listados entre uns que tinham alguns privilégios – que ocupavam os
melhores lugares da casa – e, outros que eram deslocados para as áreas mais
insalubres do lugar. Não compreendia se tratar de modos de que aquela gente se
valia para lidar com a condição a que estava sujeita ou, quiçá, de se ajustar à
posição em que se encontrava, que, lhes
parecia, talvez se possa dizer, ser melhor do que a do outro que se lhe
encontrava colocado logo abaixo. E, saliente-se, conforme se pôde perceber nas
quadras acima transcritas de memória – ressalte-se -, o elemento negro sempre é
estabelecido nos degraus mais baixos e degradantes do existir humano, nas
situações mais vexatórias em relação aos demais rejeitados sociais e, que não
sem uma boa dose de contradição, se imaginam melhores, acreditando-se situar acima
daqueles na hierarquia social vigente, sem atinar que, no fim e ao cabo, todos
eles estão sujeitos à mesma tirania exercida pela opressão que os possuidores
dos meios de produção, faz recair sobre aqueles que nada mais possuem, senão a
sua força de trabalho.
Alagoinhas, 10 de
agosto de 2025 – inverno brasileiro.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com––––
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente; quero saber o que você pensa!