domingo, 10 de agosto de 2025

AS LINHAS E AS ENTRELINHAS - X

 

– Obras e autores parte VIII.

 

Conforme se vem salientando nestes garatujares, os elementos trazidos ao crivo da arguta observação de tantos quantos se interessem em lê-los, estão ineludivelmente arraigados no rememorar daquele que os escreve, considerando, evidentemente, o que se vem dizendo acerca do lembrar, do esquecer, do silenciar, do apagar. Estes movimentos da memória têm por princípio a preservação do vivido ou, pelo menos, o esforço para não o perder de todo, fazendo daquela experiência uma espécie de trampolim para o salto nas lembranças e, por consequência, procurar construir um caudal de elaborações de um dado passado lembrado. Conforme preconiza Jeanne Marie Gagnebin,

“[...]. Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem  às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao  presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no  presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas  também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo  um fim em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2009, P. 55).

 

 

Há já algumas postagens, vem-se desenvolvendo arrazoados que demonstrem a hipótese que os move, que é a de que José Mário em seu processo formativo, sofreu com a falta de alguns instrumentos que lhe facilitassem a apreensão dos elementos que constituem o modo de pensar inerente ao mundo em que estava inserido, que lhe ajudassem a absorver  não somente os textos que lhe  passassem sob os dedos, mas, sobretudo, o ajudassem a perceber com clareza, as articulações empregadas nas construções literárias que formatam os diversos contextos sobre os quais se desenrolavam os enredos propostos pelos autores das obras lidas. Tal falta acabou por produzir alguns déficits no seu processo formativo que dificultaram e muito, a construção de ferramentas interpretativas dos ditos e dos não ditos inerentes aos textos literários, retardando a sua compreensão de mundo, a sua construção de um pensamento crítico, procrastinando assim o seu crescimento, amadurecimento e frutificação intelectual, tão necessários à interação social, à intervenção no que diz respeito às relações com o conviver com a sociedade e com as exigências inerentes ao processo de inserção como força de trabalho ativa na produção material e imaterial, indispensáveis ao viver e à sobrevivência junto aos demais elementos constitutivos da formação econômica e social a que pertence.

É neste sentido que aqui se traz mais um conjunto de obras que foram lidas  por José Mário quando estava procurando desenvolver o seu processo formativo para a vida adulta e laboral, mas, a despeito da atenção e do interesse com que se lançou à tarefa de percorrer as suas páginas em Braille, não as entendeu, ou, o que viria a ser a mesma coisa, não conseguiu abstrair daquela obra entrada naquilo que viria a se denominar “escola realista”, aquilo que era objetivo do autor, comunicar por meio dos seus escreveres, muito menos, compreendeu que se tratava de um retratar histórico através da literatura, de um ciclo econômico do Brasil, há já algum tempo sendo superado por outros ciclos que lhe sobrepuseram: o ciclo da cana de açúcar.

Desta forma, para trazer ao público leitor um pouco daquela fase da História econômica brasileira através da produção literária, José Lins do Rego (1901-1957), desenvolveu uma espécie de série composta por cinco títulos, que consistiu em desenvolver tramas distribuídas em publicações trazidas à lume em cerca de aproximadamente  cinco anos entre a primeira e a quinta obra – tendo surgido uma sexta, publicada sete anos depois da quinta dentre elas -, através da qual ele elaborou uma saga elementar para a compreensão daquele Brasil que se queria novo, sobretudo, após a eclosão dos episódios que desaguaram naquilo que ficou historicamente conhecida como “A Revolução de 30”, que pôs fim ao período chamado de “República Velha” ou, “República do Café com Leite”, período em que as oligarquias rurais pouco a pouco, perdiam a hegemonia exercida sobre aquela sociedade em que a maioria da população nascera, crescera, se desenvolvera e morrera nos interstícios das propriedades rurais pertencentes aos chefes locais, sendo forçada a dar lugar a uma “burguesia” urbana em franco crescimento, que reclamava um lugar político equivalente ao domínio econômico que se lhe afigurava como inerente à riqueza que acumulara até ali. .

Portanto, Menino de Engenho 1932, Doidinho 1933, Bangüê 1934, O Moleque Ricardo 1935 e Usina 1936, além de Fogo Morto que foi publicada em 1943, eram as obras que compunham o que se convencionou denominar de “ciclo da cana-de-açúcar”, onde Lins do Rego procurara mostrar aos seus leitores o paulatino e vigoroso enfraquecimento do domínio exercido pelos coronéis dos engenhos sobre a grande maioria da população, quase sempre a eles subordinada e, por eles, constantemente ameaçada, se acaso lhes contrariasse a vontade ou, não lhes atendesse os caprichos. Oriundos dos setores que dominaram a cena política e a vida econômica e que deram as cartas para o funcionamento da sociedade brasileira, praticamente, por todo o tempo de construção do Estado e de sua formação sociocultural, no instante mesmo em que se dera o processo de ocupação portuguesa. Desde a implantação da República no último decênio do século XIX, aqueles coronéis experimentavam um franco e inelutável declínio de sua importância econômica e, veem erodida a relevância de sua participação política no que tange à determinação dos destinos daquela Nação, nascida como resultado do fim do império dos Orleans e Bragança.

Assim, quarenta e dois anos depois da publicação de Menino de Engenho, Zé Mário, arrastado pela onda levantada por outros colegas que, tal qual ele, também entraram em contato com aquelas obras no mesmo momento da formação escolar, acabara por ler as três primeiras delas, sem contudo, encontrar em suas páginas, nada mais do que texto muito bem escrito – como não poderia deixar de o ter sido – e que a ele se lhe afigurava como uma prosa bem concatenada e coerente, sem, no entanto, fazer grande sentido para aquele leitor superficial.

Conforme já se apontou acima, não obstante o interesse, a atenção e o empenho de José Mário em se assenhorar do conteúdo das obras que se dispusera a percorrer com os seus dedos, pouco ficou daquele esforço em tomar contato com o enredo desenvolvido pelo autor, a não ser, alguns fragmentos que se lhe introjetaram na memória, como duas quadras recitadas pelas gentes em seus azafamas diários que Lins do Rego transpusera a sua trama, apesar de Zé Mário talvez não ser capaz de dizer em qual das três que lera se encontrariam as quadras infamantes, urdidas e que eram disparadas por três ou mais grupos de subalternos que se conflagravam entre si, embora, aquele leitor não atinasse a razão de tais confrontos, se nenhum dos grupos era formado pelos proprietários ou pelos seus herdeiros. A primeira das quadras que passava de boca em boca, no formato de insultos cuspidos na cara dos contendores, dizia: “Branco Deus fez; mulato Deus pintô; caboco bufa de porco, nêgo o diabo cagô. A segunda delas dizia: “Branco dorme na sala; mulato no corredô; caboco na cozinha; nêgo no cagadô”. Elas eram recitadas uns contra os outros e, dependendo dos níveis de acirramento dos ânimos, poderia acabar em pródiga pancadaria.

Mas, qual era a razão daquela animosidade, o voraz leitor não conseguira encontrar. Na verdade, se quer ele atentara para aquilo que poderia estar no subtexto daquela manifestação insidiosa, como sendo uma relação conflituosa que formatasse uma reação à mestiçagem – para não dizer uma rejeição a ela - presente na configuração da população rural, que constituía o maior contingente que formava as gentes que habitava nos engenhos. Ao contrário: ele entendia como alguma coisa passível de risos; como se fossem brincadeiras inofensivas para aqueles que eram listados entre uns que tinham alguns privilégios – que ocupavam os melhores lugares da casa – e, outros que eram deslocados para as áreas mais insalubres do lugar. Não compreendia se tratar de modos de que aquela gente se valia para lidar com a condição a que estava sujeita ou, quiçá, de se ajustar à  posição em que se encontrava, que, lhes parecia, talvez se possa dizer, ser melhor do que a do outro que se lhe encontrava colocado logo abaixo. E, saliente-se, conforme se pôde perceber nas quadras acima transcritas de memória – ressalte-se -, o elemento negro sempre é estabelecido nos degraus mais baixos e degradantes do existir humano, nas situações mais vexatórias em relação aos demais rejeitados sociais e, que não sem uma boa dose de contradição, se imaginam melhores, acreditando-se situar acima daqueles na hierarquia social vigente, sem atinar que, no fim e ao cabo, todos eles estão sujeitos à mesma tirania exercida pela opressão que os possuidores dos meios de produção, faz recair sobre aqueles que nada mais possuem, senão a sua força de trabalho.

 

Alagoinhas, 10 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com–––– 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente; quero saber o que você pensa!