– Obras e autores parte XI.
Retomando neste penúltimo arrazoado proposto para aquilo que
aqui se vem discorrendo sob as dificuldades encontradas por José Mário em compreender
para além das “linhas que passaram sob os seus dedos em suas leituras feitas no
transcurso do seu processo formativo”, pretende-se analisar mais uma dentre
elas, talvez, a mais difícil para ele, na medida em que o gênero daquela obra em
especial, fugir completamente do escopo já restrito de sua compreensão dos propósitos
do autor, na medida em que, para cada “caixinha” em que se encaixa um gênero de
obra - romance/novela, crônica, conto,
... – existe um propósito para a sua escrita e para a sua publicação/circulação.
E, como não poderia deixar de ser, há um tempo “histórico” em que aquela obra
se inscreve e, a partir dele, se faz necessário compreender a sua razão de ser.
Àquela altura da sua formação escolar, ele ainda não distinguia o tempo em que
foram escritas as obras que lera, do tempo e da realidade em que estava
vivendo. Nesta perspectiva, ele não fazia diferença entre a realidade do século
XIX – tempo da escrita a ser evocada aqui – e o momento real no qual ele estava
inserido, terceiro quartel do século XX.
Em completo acordo com José d’Assunção Barros que,
evocando Marc Bloch (1871-1944), quando preconiza que ”a História é o estudo [ou a
ciência] dos homens no tempo”, prossegue
Barros asseverando que “[...]. Situar todas as coisas no tempo — enxergá-las
sob a perspectiva de que cada uma delas
interage e ajuda a constituir um
contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que também se inscrevem no tempo — é típico da
História. Os historiadores estão presos ao tempo, literalmente. [...].” e Barros
prossegue apontando o que para ele é fundamental, a perspectiva de que “[...] tudo se inscreve no tempo, de que tudo se transforma — e de
que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas
transformações, deixando que incida
sobre elas uma análise que será a nossa e
que, de resto, também se inscreve no tempo” (BARROS, 2013, Pp. 17-18.
E, acrescenta este escrevedor que, pelo fato de ser a “História”
escrita, pensada e estudada com base no transcorrer do “tempo”, para ser apreendida,
faz-se necessário recorrer aos rastros por ela deixados em sua passagem. Tais rastros
são também encontráveis nas “Fontes históricas”, que, em última instância, são
os vestígios que podem ser apreendidos pelo historiador, tanto por meio de uma
diversidade de registros, como os
pictóricos, os escritos, os fotográficos
ou, os imagéticos em geral, dentre
outros, quanto os diversos registros sonoros produzidos mais recentemente e “monumentalizados”
em discos – em diversos formatos), fitas cassete ou VHS, “CDs”, “DVDs”, “MP3”, e
ainda aqueles outros que ficaram na memória e que só poderão ser apreendidos
mediante entrevistas gravadas pelo historiador/pesquisador oral. Esta, por sua
vez, uma vez evocada, pode escolher o que lembrar ou esquecer, qual lembrança tornar
pública ou qual silenciar. Assim sendo, à medida em que estes garatujares
vinham sendo elaborados, algumas camadas de memória eram escavadas e levantadas
e por conseguinte, alguns outros lembrares ressurgiam, mediante as evocações
daquilo que pudesse trazer um certo passado à luz das reflexões históricas a
ele pertinentes.
Conforme se tem salientado ao longo destas reflexões,
algumas obras foram percorridas por Zé Mário, sem que ele pudesse apreender com
precisão qual era a real pretensão dos autores em as produzir e qual o objetivo
em fazê-las circular e, sobretudo, a razão daquelas obras terem ultrapassado
não só o tempo de vida dos autores e dos leitores a que se dirigiam, bem como, a
razão porque chegaram até ele e aos seus coetâneos, ao ponto de ainda terem a
sua leitura cobrada nas escolas em suas diversas fases, incluídas entre as
leituras obrigatórias para os candidatos aos certames de ingresso nas universidades,
independentemente dos cursos pretendidos e, mais: ainda tendo a leitura delas estimuladas
pelos meios de comunicação, sobretudo,
através das adaptações para as telenovelas, em diversas emissoras de televisão
e, até mesmo , adaptações para difusão radiofônica.
Mesmo que a sua compreensão aos dezessete ou dezoito anos
não alcançasse inferir as reflexões acima propostas, José Mário continuava a
fazer as suas leituras, malgrado todas aquelas limitações já postas em
arrazoares anteriores. De sorte que, continuando a percorrer algumas das obras de
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), embora o fizesse motivado pela riqueza
e profundidade do vocabulário nelas encontrado, por não conseguir estabelecer
diferença entre romance, crônica ou conto – conforme já se explicou – ele arriscara
a leitura de “O Alienista”, publicado em 1882, fazendo-o em sua íntegra, a
despeito do descompasso entre a leitura e a compreensão do que lia. Por não
saber distinguir o estilo da composição literária, uma vez mais, logo imaginara
se tratar de uma obra cujo enredo passaria pelos clichês já consolidados no seu
modo de pensar a literatura: um ou dois pares românticos; algumas intrigas e
disputas; depois, tudo se resolvendo para acabar em pares felizes e leitores
satisfeitos com o final por ele esperado e/ou desejado.
É certo que, à medida em que avançava no percurso das páginas
do escrito machadiano, compreendia que eles não se encaminhariam na direção que
aquele leitor esperava; o enredo se entrelaçando entre diagnósticos de “loucura”
pouco a pouco se alastrando pela cidade, fazia com que aquele leitor começasse
a perder o entendimento da proposta do autor – se é que em algum momento o
tivera –, na medida em que Machado encaminhava o seu Doutor Bacamarte a compreender
que, no fim e ao cabo, quem era o “luco” e necessitado de confinamento era ele
próprio. O desavisado leitor não sabia que se tratava de uma ironia machadiana,
ao modismo que grassara no século em que aquele conto fora escrito, uma espécie
de “medicalização do modo de vida da sociedade”, que pressupunha uma “dominação”
de formas de pensar baseadas em um “saber médico superior”, que marcara as
ações das autoridades públicas de então. O tal “saber médico superior”, procurava
chamar para si o conhecimento absoluto das razões que levavam aos adoeceres então
frequentes de uma parte considerável da população, fazendo-se imperiosa a
obediência às suas prescrições, tanto medicamentosas, quanto comportamentais.
É assim que, por não conhecer as circunstâncias que marcaram
a produção da obra que lera e que, por isto mesmo não entendera, José Mário também
não foi capaz de compreender nem a obra em si, nem a fina ironia nela presente.
Só bem mais tarde, ao tomar contato com tratados que lhe apresentaram o contexto
em que aquele tratado estava inserido, entre eles, o que relata o movimento
chamado de “cemiterada” –História que pode ser conferida na obra de João José Reis
(A Morte é Uma Festa – e, as motivações que o desencadeara, é que ele começou
então a tomar contato com expressões como “miasma”, que fora um dos motes
fundamentais da tentativa de “reinado” dos saberes médicos na sociedade brasileira
dos
“oitocentos”, que Machado tão magistralmente ironizara por meio do seu “Simão
Bacamarte.
Alagoinhas – 07 de setembro de 2025 – inverno brasileiro – Ducentésimo terceiro ano da “independência
política” do Brasil –
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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