domingo, 7 de setembro de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XIV


– Obras e autores parte XI.

 

Retomando neste penúltimo arrazoado proposto para aquilo que aqui se vem discorrendo sob as dificuldades encontradas por José Mário em compreender para além das “linhas que passaram sob os seus dedos em suas leituras feitas no transcurso do seu processo formativo”, pretende-se analisar mais uma dentre elas, talvez, a mais difícil para ele, na medida em que o gênero daquela obra em especial, fugir completamente do escopo já restrito de sua compreensão dos propósitos do autor, na medida em que, para cada “caixinha” em que se encaixa um gênero de obra  - romance/novela, crônica, conto, ... – existe um propósito para a sua escrita e para a sua publicação/circulação. E, como não poderia deixar de ser, há um tempo “histórico” em que aquela obra se inscreve e, a partir dele, se faz necessário compreender a sua razão de ser. Àquela altura da sua formação escolar, ele ainda não distinguia o tempo em que foram escritas as obras que lera, do tempo e da realidade em que estava vivendo. Nesta perspectiva, ele não fazia diferença entre a realidade do século XIX – tempo da escrita a ser evocada aqui – e o momento real no qual ele estava inserido, terceiro quartel do século XX.

Em completo acordo com José d’Assunção Barros que, evocando Marc Bloch (1871-1944), quando preconiza que ”a História é o estudo [ou a ciência]  dos homens no tempo”, prossegue Barros asseverando que “[...]. Situar todas as coisas no tempo — enxergá-las sob  a perspectiva de que cada uma delas interage e ajuda a constituir  um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que  também se inscrevem no tempo — é típico da História. Os historiadores estão presos ao tempo, literalmente. [...].” e Barros prossegue apontando o que para ele é fundamental, a perspectiva de que  “[...] tudo se inscreve  no tempo, de que tudo se transforma — e de que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas transformações,  deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e  que, de resto, também se inscreve no tempo” (BARROS, 2013, Pp. 17-18.

E, acrescenta este escrevedor que, pelo fato de ser a “História” escrita, pensada e estudada com base no transcorrer do “tempo”, para ser apreendida, faz-se necessário recorrer aos rastros por ela deixados em sua passagem. Tais rastros são também encontráveis nas “Fontes históricas”, que, em última instância, são os vestígios que podem ser apreendidos pelo historiador, tanto por meio de uma diversidade de registros, como  os pictóricos, os  escritos, os fotográficos ou, os imagéticos em geral,  dentre outros, quanto os diversos registros sonoros produzidos mais recentemente e “monumentalizados” em discos – em diversos formatos), fitas cassete ou VHS, “CDs”, “DVDs”, “MP3”, e ainda aqueles outros que ficaram na memória e que só poderão ser apreendidos mediante entrevistas gravadas pelo historiador/pesquisador oral. Esta, por sua vez, uma vez evocada, pode escolher o que lembrar ou esquecer, qual lembrança tornar pública ou qual silenciar. Assim sendo, à medida em que estes garatujares vinham sendo elaborados, algumas camadas de memória eram escavadas e levantadas e por conseguinte, alguns outros lembrares ressurgiam, mediante as evocações daquilo que pudesse trazer um certo passado à luz das reflexões históricas a ele pertinentes.

Conforme se tem salientado ao longo destas reflexões, algumas obras foram percorridas por Zé Mário, sem que ele pudesse apreender com precisão qual era a real pretensão dos autores em as produzir e qual o objetivo em fazê-las circular e, sobretudo, a razão daquelas obras terem ultrapassado não só o tempo de vida dos autores e dos leitores a que se dirigiam, bem como, a razão porque chegaram até ele e aos seus coetâneos, ao ponto de ainda terem a sua leitura cobrada nas escolas em suas diversas fases, incluídas entre as leituras obrigatórias para os candidatos aos certames de ingresso nas universidades, independentemente dos cursos pretendidos e, mais: ainda tendo a leitura delas estimuladas  pelos meios de comunicação, sobretudo, através das adaptações para as telenovelas, em diversas emissoras de televisão e, até mesmo , adaptações para difusão radiofônica.

Mesmo que a sua compreensão aos dezessete ou dezoito anos não alcançasse inferir as reflexões acima propostas, José Mário continuava a fazer as suas leituras, malgrado todas aquelas limitações já postas em arrazoares anteriores. De sorte que, continuando a percorrer algumas das obras de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), embora o fizesse motivado pela riqueza e profundidade do vocabulário nelas encontrado, por não conseguir estabelecer diferença entre romance, crônica ou conto – conforme já se explicou – ele arriscara a leitura de “O Alienista”, publicado em 1882, fazendo-o em sua íntegra, a despeito do descompasso entre a leitura e a compreensão do que lia. Por não saber distinguir o estilo da composição literária, uma vez mais, logo imaginara se tratar de uma obra cujo enredo passaria pelos clichês já consolidados no seu modo de pensar a literatura: um ou dois pares românticos; algumas intrigas e disputas; depois, tudo se resolvendo para acabar em pares felizes e leitores satisfeitos com o final por ele esperado e/ou desejado.

É certo que, à medida em que avançava no percurso das páginas do escrito machadiano, compreendia que eles não se encaminhariam na direção que aquele leitor esperava; o enredo se entrelaçando entre diagnósticos de “loucura” pouco a pouco se alastrando pela cidade, fazia com que aquele leitor começasse a perder o entendimento da proposta do autor – se é que em algum momento o tivera –, na medida em que Machado encaminhava o seu Doutor Bacamarte a compreender que, no fim e ao cabo, quem era o “luco” e necessitado de confinamento era ele próprio. O desavisado leitor não sabia que se tratava de uma ironia machadiana, ao modismo que grassara no século em que aquele conto fora escrito, uma espécie de “medicalização do modo de vida da sociedade”, que pressupunha uma “dominação” de formas de pensar baseadas em um “saber médico superior”, que marcara as ações das autoridades públicas de então. O tal “saber médico superior”, procurava chamar para si o conhecimento absoluto das razões que levavam aos adoeceres então frequentes de uma parte considerável da população, fazendo-se imperiosa a obediência às suas prescrições, tanto medicamentosas, quanto comportamentais.

É assim que, por não conhecer as circunstâncias que marcaram a produção da obra que lera e que, por isto mesmo não entendera, José Mário também não foi capaz de compreender nem a obra em si, nem a fina ironia nela presente. Só bem mais tarde, ao tomar contato com tratados que lhe apresentaram o contexto em que aquele tratado estava inserido, entre eles, o que relata o movimento chamado de “cemiterada” –História que pode ser conferida na obra de João José Reis (A Morte é Uma Festa – e, as motivações que o desencadeara, é que ele começou então a tomar contato com expressões como “miasma”, que fora um dos motes fundamentais da tentativa de “reinado” dos saberes médicos na sociedade brasileira   dos “oitocentos”, que Machado tão magistralmente ironizara por meio do seu “Simão Bacamarte.

 

Alagoinhas – 07 de setembro de 2025 – inverno brasileiro –  Ducentésimo terceiro ano da “independência política” do Brasil –


Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

  

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