– Obras e autores parte XII.
Recorrendo-se ainda uma vez aos escavares de camadas
espessas da memória, considerando um tempo marcado por aquele passado que ainda
é percebido no presente, com mais estes garatujares que o paciente leitor tem
diante de si, chega-se ao termo destes arrazoares que já vem longos e, quiçá,
levantando mais algumas camadas de memórias acumuladas no curso do tempo
vivido, se pretende desenvolver mais algumas formulações envolvendo o processo
formativo do protagonista até aqui envolvido nestes escritos, considerando o
seu ingresso no ensino superior, depois de muitas idas e vindas experimentadas desde
que ele começara a palmilhar a estrada dos pós vinte anos, momento em que
consegue concluir o que então se denominava “primeiro grau” e, seguia para
concluir o também então chamado de “segundo grau”, assomando, por fim, o patamar
do ensino superior, se fazendo aprovar para o curso de História, em sua
primeira turma, iniciada em 1986, na Faculdade de Formação de Professores de
Alagoinhas.
Conforme postula Paul Ricöeur (1913-2005), ao se recorrer à “memória”
em busca de encontrar os vestígios daquilo que ficou no passado e que se quer
trazer ao presente, “[...], uma busca específica de verdade está implicada na
visão da ”coisa” passada, do que anteriormente visto, ouvido,
experimentado, aprendido. Essa busca de verdade especifica a memória como
grandeza cognitiva. Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, em que
culmina o esforço da recordação, que essa busca de verdade se declara enquanto
tal. [...], sentimos e sabemos que alguma coisa se passou, que alguma coisa
teve lugar, a qual nos implicou como agentes, como pacientes, como testemunhas.
[...]. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança para dizer essa
busca, essa reivindicação, esse clarim, que constitui a dimensão
epistêmico-veritativa do orthos logos da memória. [...]” (RICÖEUR, 2007,
p. 70).
Já se falou bastante das dificuldades enfrentadas por José Mário
em compreender as diversas obras que se lhe passaram sob os dedos, na medida em
que tal leitura ele só conseguia fazer no que dizia respeito à superfície delas
ou, como também já se falou, a sua dificuldade era mediada tanto pela falta de
elementos conceituais e contextuais relacionadas aos temas abordados, bem como
era presidida pela sua compreensão estreita do que viria a ser uma construção
literária. Naquele já distante e tórrido verão de 1985/1986, ele procurara se
preparar para os exames vestibulares, estudando língua, redação e literatura
com a sua professora Edna Garcia, amiga e incentivadora que sempre o apoiara,
desde quando o tivera como aluno alguns anos antes, quando cursara a oitava
série. Com ela ele voltara a ler obras da literatura brasileira, sobretudo,
aquelas que estavam relacionadas para o certame que se realizaria no final de
janeiro e, com a sua ajuda, passara a tentar compreender os tratados desenvolvidos
por aqueles escritores, a partir de elementos estruturados na diversidade das
escolas e gêneros literários estabelecidos em cânones a partir dos quais se
deveria entender aquilo que se propunha a obra de cada autor.
Tendo sido aprovado no aludido certame, sido matriculado e
dado início à frequência às aulas a partir de março de 1986, tomara contato com
professores e matérias novas, ritmos e processos avaliativos que lhe deixaram
aturdido e, ao mesmo tempo, impressionado com o fato de seus outros colegas
encararem com a maior naturalidade, aquele ritmo quase frenético de se
acompanhar as aulas. Ele nunca esquecera o elenco de matérias em que se
matriculara, bem como dos professores que as desenvolveram. Na segunda feira,
tivera “História Antiga”, com a professora Alba Mello, entre as dezoito e
trinta e as vinte e uma horas; seguida por “ Introdução à Filosofia”, com o
professor José Sales; na terça-feira, tivera “Introdução à História!, com a
professora Zalvira Vilasboas, seguida da professora Emília – e ele não lembra ou nunca soube o seu sobrenome
– com “Sociologia; na quarta, retornava a professora Alba Melo com a sua “História
Antiga” e era seguida de uma matéria que soara muitíssimo estranho aos ouvidos
de José Mário – Metodologia do estudo e da pesquisa –, embora o nome da
professora ministrante – Iraci Gama Santa Luzia – lhe fosse familiar, apesar de
não a conhecer. Seria por meio daquela disciplina que ele viria a ouvir, pela
primeira vez, a expressão “entrelinhas”, tratando-se de leitura e compreensão de
texto; na quinta e na sexta feira, se complementava o elenco de matérias iniciadas
na segunda, na terça e na quarta feira, entrando como novidade a disciplina de “Língua
Portuguesa”, sob a responsabilidade da professora Lígia Freire, que a complementava
no sábado pela manhã.
É preciso salientar de passagem que, a expressão “entrelinhas”,
ouvida durante todo o transcorrer da matéria magistralmente conduzida pela
professora Iraci – embora, à época, José Mário não houvesse considerado assim –,
acabara por deixar aquele estudante ainda mais confuso, visto que, acreditava
que se tratasse de haver alguma outra “linha” que se requeria um esforço extra
para ser percebida, entre as linhas escritas, gravadas nas páginas que
percorria. O que o deixava ainda mais confuso é que, em Braille, modo como ele
exercitava a leitura e a escrita, não havia como inserir uma outra linha, entre
as linhas que ele apreendia por meio do
tato, ensejando, por vezes uma pergunta recôndita – seria possível, na escrita
em tinta, se inserir uma “linha” entre as que estavam fixadas no papel, que o
leitor seria concitado a perceber com alguma arguta habilidade especial? –,
isto é: para ele, as tais “entrelinhas” eram linhas extras sutilmente inseridas
nos textos e não, como depois veio a saber, um exercício realizado pelo leitor,
a partir de outras leituras e da apreensão dos contextos sociais, políticos,
filosóficos, entre outros, bem como se referia à compreensão das
subliminaridades que acabaram por levar a construção do texto sob o exercício
da leitura e da análise feita pelos que viessem a tomar contato com o que fora
produzido por autores tais, inscritos em escolas e/ou gêneros literários quais.
Assim, no transcurso do tempo que precisara empregar para o
desenvolvimento e a conclusão da sua Licenciatura Plena em História, ele
acabara por travar contato com uma aluna do curso de Licenciatura em Letras,
com habilitação em francês, que era alguns semestres mais adiantada do que ele,
quando acabaram sendo alunos comuns da professora Estela Rodrigues, em uma
matéria que para José Mário fora “eletiva” e, para aquela sua colega era
obrigatória. Tratava-se da disciplina “Metodologia do estudo e da pesquisa II”,
ofertada pelo curso de Letras, que ele integralizara na sua carga horária e,
que ampliara um pouco mais a sua compreensão dos elementos constitutivos do
fazer e do apreender o conhecimento. Ali, a professora Estela Rodrigues, muito
abordou sobre um tema que lhe era caro, falando de uma “Pseudoconcreticidade”,
implicando em uma provocação aos seus alunos, insistindo que sem a dúvida e sem
o questionamento, não se poderia compreender nem mesmo a produção textual mais
simples. Tendo os seus ensinamentos como base epistemológica para o
desenvolvimento de um trabalho que demonstrasse um pouco do que fora apreendido
naquelas aulas, a professora em questão, dividiu a turma em duplas, para que fosse
desenvolvido um trabalho de leitura de uma obra de livre escolha e, por fim, fosse
apresentado u texto monográfico que demonstrasse uma espécie de “nova” compreensão
daquilo que fora lido.
Neste sentido, formando dupla com a discente do curso de letras
com quem passara a formar uma parceria que ultrapassou aqueles tempos estudantis,
José Mário e Milfa Valério – hoje professora aposentada, que atuara no campus
II, DEDCII Alagoinhas que, durante o seu exercício docente, viera a ser
professora daquele seu colega e que fora sua incentivadora no estudo da língua
francesa que ela tão bem domina –, se propuseram a ler e a discorrer sobre a
obra de Aluísio de Azevedo (1857-1913),
“o Mulato”, publicada em 1881, tratado que, segundo as convenções literárias,
marcara o início do romance “naturalista” no Brasil. Ali, eles tomaram contato
com um enredo cujo desenrolar se deu fora da capital da Corte Imperial – o que
para ele, em particular, não deixara de ser observado, considerando as obras
até ali percorridas pelos seus dedos – e, cujo desenlace acabara por despertar
nos leitores/analistas, uma desconfiança que acabaram por tomar como hipótese
de trabalho. Para eles, o “cônego” não só fora o assassino de “Raimundo”, como
também era o seu pai biológico, indicando não só uma quebra do “celibato” que
lhe era imposto pela instituição que representava, bem como, fora fruto de uma
relação com uma senhora que poderia vir a ser mãe da mesma senhorita por quem o rapaz se afeiçoara e de quem teria
alcançado recíproca, o que arriscaria se dar um incesto, que só com a morte do
rapaz se poderia evitar. Tendo chegado a aquele entendimento mediante sutilezas
deixadas pelo autor, consideraram propor como título do arrazoado que
escreveram para submeter a avaliação da professora Estela, “O Falso Moralismo
em O Mulato”.
Tendo sido exitosos
não só na proposição do entendimento que tiveram da obra, bem como no construir
os elementos argumentativos a partir dos quais sustentaram as premissas por
eles levantadas, receberam os elogios da professora/avaliadora, que apontara a precisão dos postulados que eles apresentaram
ao longo do arrazoado, em suas cerca de trinta páginas, bem escritas e bem
fundamentadas.
Para José Mário –
aquele aluno já quase ao final do seu curso de licenciatura em História e, há
pouco entrado nos trinta –, a abordagem de um romance sustentada na identificação
do seu pertencimento a uma escola/gênero literário dados, representou uma profunda
e completa virada no seu modo de compreender o texto literário, uma vez que, as
conclusões que extraíra juntamente com a sua parceira de trabalho, foram
obtidas a partir de reflexões de elementos que não se encontravam diretamente
estabelecidos no texto de per si; mas, principalmente, foram estruturadas em
elementos subliminares ao texto, além de terem sido percebidos nas “entrelinhas”
apresentadas no transcurso da leitura daquelas “linhas” que estavam postas pelo
autor do arrazoado, mas que, se fazia necessário um observar mais atento de
quem as viesse a ler.
Professor Jorge Damasceno
– 14 de setembro de 2025 – inverno brasileiro – Alagoinhas Ba/Br.
- historiadorbaiano@gmail.com
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