domingo, 14 de setembro de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XV

 

– Obras e autores parte XII.

 

Recorrendo-se ainda uma vez aos escavares de camadas espessas da memória, considerando um tempo marcado por aquele passado que ainda é percebido no presente, com mais estes garatujares que o paciente leitor tem diante de si, chega-se ao termo destes arrazoares que já vem longos e, quiçá, levantando mais algumas camadas de memórias acumuladas no curso do tempo vivido, se pretende desenvolver mais algumas formulações envolvendo o processo formativo do protagonista até aqui envolvido nestes escritos, considerando o seu ingresso no ensino superior, depois de muitas idas e vindas experimentadas desde que ele começara a palmilhar a estrada dos pós vinte anos, momento em que consegue concluir o que então se denominava “primeiro grau” e, seguia para concluir o também então chamado de “segundo grau”, assomando, por fim, o patamar do ensino superior, se fazendo aprovar para o curso de História, em sua primeira turma, iniciada em 1986, na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas.

Conforme postula Paul Ricöeur (1913-2005), ao se recorrer à “memória” em busca de encontrar os vestígios daquilo que ficou no passado e que se quer trazer ao presente, “[...], uma busca específica de verdade está implicada na visão da ”coisa” passada, do que anteriormente visto, ouvido, experimentado, aprendido. Essa busca de verdade especifica a memória como grandeza cognitiva. Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, em que culmina o esforço da recordação, que essa busca de verdade se declara enquanto tal. [...], sentimos e sabemos que alguma coisa se passou, que alguma coisa teve lugar, a qual nos implicou como agentes, como pacientes, como testemunhas. [...]. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança para dizer essa busca, essa reivindicação, esse clarim, que constitui a dimensão epistêmico-veritativa do orthos logos da memória. [...]” (RICÖEUR, 2007, p. 70).

Já se falou bastante das dificuldades enfrentadas por José Mário em compreender as diversas obras que se lhe passaram sob os dedos, na medida em que tal leitura ele só conseguia fazer no que dizia respeito à superfície delas ou, como também já se falou, a sua dificuldade era mediada tanto pela falta de elementos conceituais e contextuais relacionadas aos temas abordados, bem como era presidida pela sua compreensão estreita do que viria a ser uma construção literária. Naquele já distante e tórrido verão de 1985/1986, ele procurara se preparar para os exames vestibulares, estudando língua, redação e literatura com a sua professora Edna Garcia, amiga e incentivadora que sempre o apoiara, desde quando o tivera como aluno alguns anos antes, quando cursara a oitava série. Com ela ele voltara a ler obras da literatura brasileira, sobretudo, aquelas que estavam relacionadas para o certame que se realizaria no final de janeiro e, com a sua ajuda, passara a tentar compreender os tratados desenvolvidos por aqueles escritores, a partir de elementos estruturados na diversidade das escolas e gêneros literários estabelecidos em cânones a partir dos quais se deveria entender aquilo que se propunha a obra de cada autor.

Tendo sido aprovado no aludido certame, sido matriculado e dado início à frequência às aulas a partir de março de 1986, tomara contato com professores e matérias novas, ritmos e processos avaliativos que lhe deixaram aturdido e, ao mesmo tempo, impressionado com o fato de seus outros colegas encararem com a maior naturalidade, aquele ritmo quase frenético de se acompanhar as aulas. Ele nunca esquecera o elenco de matérias em que se matriculara, bem como dos professores que as desenvolveram. Na segunda feira, tivera “História Antiga”, com a professora Alba Mello, entre as dezoito e trinta e as vinte e uma horas; seguida por “ Introdução à Filosofia”, com o professor José Sales; na terça-feira, tivera “Introdução à História!, com a professora Zalvira Vilasboas, seguida da professora Emília –  e ele não lembra ou nunca soube o seu sobrenome – com “Sociologia; na quarta, retornava a professora Alba Melo com a sua “História Antiga” e era seguida de uma matéria que soara muitíssimo estranho aos ouvidos de José Mário – Metodologia do estudo e da pesquisa –, embora o nome da professora ministrante – Iraci Gama Santa Luzia – lhe fosse familiar, apesar de não a conhecer. Seria por meio daquela disciplina que ele viria a ouvir, pela primeira vez, a expressão “entrelinhas”, tratando-se de leitura e compreensão de texto; na quinta e na sexta feira, se complementava o elenco de matérias iniciadas na segunda, na terça e na quarta feira, entrando como novidade a disciplina de “Língua Portuguesa”, sob a responsabilidade da professora Lígia Freire, que a complementava no sábado pela manhã.

É preciso salientar de passagem que, a expressão “entrelinhas”, ouvida durante todo o transcorrer da matéria magistralmente conduzida pela professora Iraci – embora, à época, José Mário não houvesse considerado assim –, acabara por deixar aquele estudante ainda mais confuso, visto que, acreditava que se tratasse de haver alguma outra “linha” que se requeria um esforço extra para ser percebida, entre as linhas escritas, gravadas nas páginas que percorria. O que o deixava ainda mais confuso é que, em Braille, modo como ele exercitava a leitura e a escrita, não havia como inserir uma outra linha, entre as linhas  que ele apreendia por meio do tato, ensejando, por vezes uma pergunta recôndita – seria possível, na escrita em tinta, se inserir uma “linha” entre as que estavam fixadas no papel, que o leitor seria concitado a perceber com alguma arguta habilidade especial? –, isto é: para ele, as tais “entrelinhas” eram linhas extras sutilmente inseridas nos textos e não, como depois veio a saber, um exercício realizado pelo leitor, a partir de outras leituras e da apreensão dos contextos sociais, políticos, filosóficos, entre outros, bem como se referia à compreensão das subliminaridades que acabaram por levar a construção do texto sob o exercício da leitura e da análise feita pelos que viessem a tomar contato com o que fora produzido por autores tais, inscritos em escolas e/ou gêneros literários quais.

Assim, no transcurso do tempo que precisara empregar para o desenvolvimento e a conclusão da sua Licenciatura Plena em História, ele acabara por travar contato com uma aluna do curso de Licenciatura em Letras, com habilitação em francês, que era alguns semestres mais adiantada do que ele, quando acabaram sendo alunos comuns da professora Estela Rodrigues, em uma matéria que para José Mário fora “eletiva” e, para aquela sua colega era obrigatória. Tratava-se da disciplina “Metodologia do estudo e da pesquisa II”, ofertada pelo curso de Letras, que ele integralizara na sua carga horária e, que ampliara um pouco mais a sua compreensão dos elementos constitutivos do fazer e do apreender o conhecimento. Ali, a professora Estela Rodrigues, muito abordou sobre um tema que lhe era caro, falando de uma “Pseudoconcreticidade”, implicando em uma provocação aos seus alunos, insistindo que sem a dúvida e sem o questionamento, não se poderia compreender nem mesmo a produção textual mais simples. Tendo os seus ensinamentos como base epistemológica para o desenvolvimento de um trabalho que demonstrasse um pouco do que fora apreendido naquelas aulas, a professora em questão, dividiu a turma em duplas, para que fosse desenvolvido um trabalho de leitura de uma obra de livre escolha e, por fim, fosse apresentado u texto monográfico que demonstrasse uma espécie de “nova” compreensão daquilo que fora lido.

Neste sentido, formando dupla com a discente do curso de letras com quem passara a formar uma parceria que ultrapassou aqueles tempos estudantis, José Mário e Milfa Valério – hoje professora aposentada, que atuara no campus II, DEDCII Alagoinhas que, durante o seu exercício docente, viera a ser professora daquele seu colega e que fora sua incentivadora no estudo da língua francesa que ela tão bem domina –, se propuseram a ler e a discorrer sobre a obra de Aluísio de Azevedo (1857-1913), “o Mulato”, publicada em 1881, tratado que, segundo as convenções literárias, marcara o início do romance “naturalista” no Brasil. Ali, eles tomaram contato com um enredo cujo desenrolar se deu fora da capital da Corte Imperial – o que para ele, em particular, não deixara de ser observado, considerando as obras até ali percorridas pelos seus dedos – e, cujo desenlace acabara por despertar nos leitores/analistas, uma desconfiança que acabaram por tomar como hipótese de trabalho. Para eles, o “cônego” não só fora o assassino de “Raimundo”, como também era o seu pai biológico, indicando não só uma quebra do “celibato” que lhe era imposto pela instituição que representava, bem como, fora fruto de uma relação com uma senhora que poderia vir a ser mãe da mesma senhorita por  quem o rapaz se afeiçoara e de quem teria alcançado recíproca, o que arriscaria se dar um incesto, que só com a morte do rapaz se poderia evitar. Tendo chegado a aquele entendimento mediante sutilezas deixadas pelo autor, consideraram propor como título do arrazoado que escreveram para submeter a avaliação da professora Estela, “O Falso Moralismo em O Mulato”.

Tendo sido exitosos não só na proposição do entendimento que tiveram da obra, bem como no construir os elementos argumentativos a partir dos quais sustentaram as premissas por eles levantadas, receberam os elogios da professora/avaliadora, que apontara a  precisão dos postulados que eles apresentaram ao longo do arrazoado, em suas cerca de trinta páginas, bem escritas e bem fundamentadas.

Para José Mário – aquele aluno já quase ao final do seu curso de licenciatura em História e, há pouco entrado nos trinta –, a abordagem de um romance sustentada na identificação do seu pertencimento a uma escola/gênero literário dados, representou uma profunda e completa virada no seu modo de compreender o texto literário, uma vez que, as conclusões que extraíra juntamente com a sua parceira de trabalho, foram obtidas a partir de reflexões de elementos que não se encontravam diretamente estabelecidos no texto de per si; mas, principalmente, foram estruturadas em elementos subliminares ao texto, além de terem sido percebidos nas “entrelinhas” apresentadas no transcurso da leitura daquelas “linhas” que estavam postas pelo autor do arrazoado, mas que, se fazia necessário um observar mais atento de quem as viesse a ler.

 

Professor Jorge Damasceno – 14 de setembro de 2025 – inverno brasileiro – Alagoinhas Ba/Br.

 

- historiadorbaiano@gmail.com 

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