domingo, 30 de novembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte IX.

Janeiro 1986 – Às vésperas das provas – II.

 

Ainda uma vez, se apresenta mais um escrito fundamentado nas reminiscências do seu autor, para submeter ao crivo daqueles que se dignem a emprestar um pouco do seu tempo para percorrer as suas linhas. Conforme já se vem apontando há nove semanas, estes garatujares são frutos dos sedimentos arrancados das escarpas da memória de quem se lembra, para que ao trazer à tona os fragmentos deles derivados, se possa desenvolver os objetivos a que se propõe ao elaborar tais rememorares: construir um conjunto de escritos que deem testemunho de um tempo vivido. Conforme sustenta P. Ricöeur (1913-2005), “[...], o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história” (RICÖEUR, 2007, p. 41). De tal testemunho se vem valendo este escrevedor para trazer à lume, algumas das facetas que envolveram o caminhar de José Mário em seu esforço para construir o seu jornalhar, quer enquanto estudante que se via necessitado de aprofundar o seu processo formativo escolar, quer enquanto cidadão que passara a entender ser indispensável ter uma formação concreta do ponto de vista profissional, se quisesse se fazer inserir no viver cotidiano do mundo à sua volta.

Em tal perspectiva, talvez se possa iniciar considerando que, o domingo que dera início à semana que antecedera àquela  em que José Mário se dirigiria ao seu velho conhecido “Estadual” para a realização do tão ansiosamente aguardado vestibular, marcara uma espécie de contagem regressiva em termos de finalização dos esforços envidados até ali, com o fito de buscar  desenvolver uma preparação para o enfrentamento de um certame para o qual, por conta das suas circunstâncias – algumas delas já apontadas em arrazoados anteriormente postados neste blog –, ele não estava em condições de o fazer. Conforme já se vem salientando, a sua defasagem propedêutica, nas diversas áreas do conhecimento que seriam demandadas no referido certame, era, em grande medida, notoriamente indisfarçável e,. cuja possibilidade de contornar, exigira dele, empenho, disciplina férrea e a busca de apoios daqueles com quem pudesse contar, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista intelectual e professoral, conforme se leu em escritos pretéritos.

Naquele terceiro domingo de janeiro, “comme d’habitude”, depois de se barbear, do banho e de tomar o seu café, José Mário deixa a sua residência, para dali se dirigir ao espaço onde passara a se reunir a “Assembléia de Deus”, cujo percurso talvez se compusesse de uns dois quilômetros, feito a pé. Após cerca de 50 minutos de caminhada no sol das oito e meia daquele levantar de verão, ali chegara para tomar parte da “Escola Dominical”, no entanto, sem estar ali, exceto o seu corpo, nem mesmo atentando para o que se dizia acerca da “lição”.

Ele, por certo, divagava em pensamentos irrequietos e, a cada momento mais distantes, quiçá, desejando imaginar o que se cobraria dele dali há mais um domingo, a respeito da Língua portuguesa e de sua gramática, dos autores, das obras e das “escolas”/estilos que compunham o vasto campo da Literatura brasileira; o que se lhe seria pedido para dissertar, descrever, criar, ou mesmo interpretar; como seria a prova de língua estrangeira? E as questões de História, Geografia, Ecologia... Ah!: e as de matemática, de física, química ou biologia, das quais ele pouco ou nada sabia? Fervilhavam no seu espírito, inúmeras perguntas para as quais ele sequer atinava haver respostas; e cabriolavam no seu cérebro situações e/ou circunstâncias para as quais ele imaginava rebentar diante de si, sem que houvesse como atinar para as resolver ou mesmo, remediar.

Como pode observar  o arguto leitor, José Mário se encontrava no interior daquele espaço de culto, ainda em processo de construção – ainda não havia piso: apenas o concreto; ainda não havia vitrais: apenas um grande espaço vazio nas suas janelas; até os bancos eram improvisados em madeira bruta, sem que houvesse como encostar – mas, os seus “sentidos” estavam dali distantes e, vagueavam bem longe dos ressoares das vozes que ecoavam naquele lugar, quer fossem as que cantavam, quer fossem as que proferiam confusas e uníssonas orações, ou, como já se indicou, nem mesmo aquelas que “ensinavam aquelas “lições””, como  que às apalpadelas. Pouco ou nada ele absorvera daquela atividade – mecanicamente desenvolvida, saliente-se, de passagem – tendo apenas concorrido para não se sentir “faltoso” ao culto, sem uma justificativa plausível. Dali saíra, conforme ali chegara; disperso, distante, reflexivo, sem qualquer “logro naquela empreitada matinal. Mas, o retorno para casa, sob o causticante sol do meio-dia, foi presidido pelo azorrague da fome. No entanto, o retorno à obrigação eclesiástica para o culto da noite, não foi diferente. Cumpriu-se o rito, até se imiscuiu na liturgia. Porém: dali estava distante, como na manhã descrita.

A manhã e todo o dia da segunda, do mesmo modo como transcorreu por toda aquela semana iniciada no domingo dezenove, foi de intensificação dos estudos, bem do mesmo modo que foi marcada pelo avultar da  ansiedade, pela realização das últimas leituras avulsas e solitárias, bem como, com as últimas lições de gramática e literatura. Nelas não era possível ir longe nas divagações – embora houvesse alguns lapsos de fuga dos pensamentos –, visto que a necessidade de melhorar o seu conhecimento das matérias, o obrigavam a voltar para o lugar onde a atenção lhe era cobrada pela excelente experiência da sua professora, que, por isto mesmo, conseguia perceber o quão distante e disperso se fizera o seu aluno.

Destarte, em tardes cada vez mais quentes, à medida que aquele janeiro avançava, José Mário se dirigia até aquela casa acolhedora da sua mestre, na qual passara todos aqueles quase três meses que se interpuseram entre a decisão de prestar o vestibular e a sua realização efetiva. Sob o intenso sol das treze horas, sem qualquer meio de transporte, lá se ia ele, percorrer aqueles quase dois quilômetros – a referida casa se localizava no mesmo bairro da igreja aludida acima, situando-se em uma rua paralela –, a fim de receber não só instruções e orientações relacionadas à matéria em causa, como também desfrutar de apoio e acolhida, elementos que foram primordiais para que José Mário levasse a empreitada até o seu final.

É preciso reiterar ainda uma vez que, não tendo economizado esforços e atenção para aquele vestibulando mergulhado no desejo de seguir adiante em seu périplo rumo ao patamar superior dos estudos, aquela professora de saudosa memória para este escrevedor, teve um papel preponderante no sentido de promover alguma confiança de que ele poderia vir a ter êxito naquela jornada, fazendo com que José Mário, embora estando com uma sensação de que naufragaria naquele navegar “impreciso”, se enchesse de ânimo e se dirigisse ao local de provas, para ali, procurar exercitar o que aprendera em todo aquele tempo de calor intenso e de muitas dúvidas sobre o seu devir.

 

Alagoinhas – 30 de novembro de 2025 – primavera brasileira.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 23 de novembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte VIII.

Janeiro 1986 – Às vésperas das provas – I.

 

Em mais uma investida no que respeita ao esforço por trazer à lume alguns fragmentos extraídos de um tempo já pretérito, a partir de elementos escavados nas camadas de sedimentos da memória, este garatujador chega a tantos quantos se dignem a ler estes rememorares, com mais um dos momentos que antecederam aos dias de realização da avaliação que faria José Mário, com vistas à sua pretensão de ingressar no curso de Licenciatura em História, da então Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas. Aqui, se pretende discorrer, ainda que brevemente, sobre um aspecto da “História vivida” pelo seu protagonista, a partir das escolhas feitas no presente, visto que, como já se vem salientando há algumas postagens, a memória está sujeita às ressignificações do presente, feitas por quem lembra. Assim, uma tal “história” vivida por quem lembra, se apresenta à memória, associada às reflexões realizadas por quem lembra, estimuladas pelo esforço de lembrar situações e/ou circunstâncias nas quais esteve envolvido. Conforme assevera Maurice Halbwachs (1877-1945), “[...], a história vivida se distingue da história escrita: ela tem tudo o que é necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o qual se possa basear um pensamento  para conservar e reencontrar a imagem de seu passado” (HALBWACHS, 2006, p. 90).

Deste modo, com estes elementos em mente, se quer aqui enfatizar a proposição que aponta para hipótese de que José Mário, embora não tivesse claro no momento em que vivera tais circunstâncias, estava intentando abrir um novo embate em busca de reposicionar para si, o ingresso em um espaço social para o qual não dispunha dos instrumentos adequados para tomar parte dele. Ele, inexoravelmente, vivia em uma constante incógnita sobre o que faria; sobre o que seria; sobre se teria; sobre se alcançaria; sobre se, por acaso alcançasse, conseguiria enfrentar os obstáculos que se lhe procuraria reter no lugar de onde sequer deveria intentar sair; ou antes: se teria algum êxito em se imiscuir em um espaço social que a ele não pertencia. Saliente-se que, ele, nem sequer atentava para aquelas dificuldades, pois, não as conhecia; não sabia, por exemplo, que a sua origem social e econômica, bem como a falta de prestígio e/ou conhecimento entre os “donos” da política e sociedade locais, era um fator preponderante para obstar qualquer mobilidade social; acreditava ele que, bastava obter uma colocação no mundo do trabalho, por meio de uma “Formação profissional”, para que a sua posição social se modificasse, como que naturalmente. Mas, o tempo acabou por demonstrar exatamente o contrário. No entanto, isto é tema para outras digressões. Por ora, permaneça-se “ás vésperas” do certame a que se submeteria dali há algumas semanas.

Logo depois daquela primeira quarta feira do ano de 1986 e, passadas as divagações que sempre se fazem presentes em tais ocasiões, o espírito de José Mário, ainda absorto em suas digressões relacionadas ao seu devir, procurava retomar os preparativos propedêuticos iniciados mais ou menos aos meados do novembro anterior, com vistas à realização daquelas provas que talvez lhes abrisse – ou mesmo fechasse – as portas para o ingresso no ensino superior. De tal ingresso ou não, para ele, dependia o que viria a ser o seu caminhar, no sentido de definir o que ele seria e/ou o que ele faria dali para adiante. Imerso nas incertezas quanto ao ser, ao ter e ao fazer, ele insistia em procurar amenizar as indiscutíveis lacunas do seu processo formativo, cuja evidência era avultada, à medida em que se esforçava por compreender determinados temas que, àquela altura da vida, já deveria dominar com alguma propriedade. A sua defasagem naqueles conteúdos específicos de cada matéria estudada, deixava nele a impressão que o seu navegar naufragaria, ao primeiro temporal que se lhe abatesse durante a travessia daquele oceano de temas e textos que precisaria vencer para conseguir chegar à outra margem e pisar em terra firme, para então poder prosseguir a caminhar.

Noves fora aquelas preocupações de ordem intelectual, materializada em sua percepção das dificuldades que precisaria enfrentar, José Mário, naquele mesmo primeiro dia do ano, acabara por enfrentar um revés sentimental, ao ser preterido por uma jovem, sob o pretexto de não saber como lidaria com uma pessoa assim, sensorialmente diferente dela. Embora hesitasse em fazer tal afirmação, não conseguiu ocultar por mais tempo, na medida em que, imediatamente após dizer o “não” ao insólito pedido de namoro que acabara de ouvir, ela indagou ao solicitante, quem lhe escolhia as roupas; quem lhe auxiliava na higiene... Depois das explicações dadas mecanicamente, o humilhado rapaz se retira da presença daquela sua pretendida, se perguntando se tais questões apontavam para um “desalinho” de sua indumentária, ou, pior, algum “traço” de sujeira que, quem sabe, lhe tivesse causado repulsa. Evidentemente que aquele não fora o primeiro malogro de José Mário no campo das investidas em busca de um relacionamento socioafetivo; mas, sem dúvida, um dos revezes mais evidentes e, significativamente mais claros de rejeição, por questões aliadas à posição econômica e, sobretudo,  à condição sensorial do pretendente incauto.

Virada aquela página amarga e desalentadora para um início de ano, já no dia seguinte, José Mário retomava as suas lições de Língua e Literatura com a sua devotada professora. Naquelas tardes quentes das primeiras semanas de janeiro, ele se dirigira até o bairro do Jardim Pedro Braga, na rua Alfredo Garcia, onde ficava aquela residência acolhedora, para ali, receber as instruções sobre morfologia, sintaxe e outras questões relacionadas à gramática; aulas agradáveis e relevantes relacionadas à produção literária, tanto envolvendo obras e autores brasileiros – seus estilos, suas escolas – quanto portugueses, mormente, aqueles cujas obras já eram canônicas e de repercussão. Não faltara, outrossim, aulas e orientações basilares para a produção de texto, momento em que a excelente preceptora  chamava a atenção do seu aluno, para as possibilidades de construção redacional que poderiam aparecer durante o certame. Uma redação descritiva; uma redação discursiva, na qual poderia expressar livremente o seu pensar, o seu conhecer acerca do requerido pelos avaliadores; uma análise de um texto inserido na prova, que deveria ser lido com toda a atenção.

Portanto, além de todo o cuidado em orientar aquele vestibulando tão atento quanto interessado em reduzir o seu quadro lacunar, naquela e ainda mais, nas outras áreas do conhecimento, aquela professora demonstrava ter não só apreço pelo seu pupilo de tão grandes fragilidades em alguns assuntos da língua e, ao mesmo tempo, com alguma acuidade em outros, como também parecia viver aquele momento como se fosse ela mesma a vestibulanda, ou ainda, como se orientasse as suas próprias filhas para o ingresso no ensino superior. Aquela era a atitude da professora Edna Garcia Batista (1945-2017).

 

Alagoinhas – 23 de novembro de 2025 – primavera brasileira

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

 

P.S.: esta é a postagem de número 200, neste blog. 

domingo, 16 de novembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte VII.

   Janeiro de 1986 – Ano “novo” que nada trazia de novo.

 

Em mais um esforço para trazer à lume alguns dos sedimentos de memória escavados no fundo de armazenamento de placas sobrepostas de memórias, este escrevedor chega com mais um arrazoado em que busca recuperar alguns momentos do caminhar de José Mário nas sendas do seu processo formativo, envolvendo alguns dos elementos com os quais ele fora pouco a pouco moldado, para que pudesse dar os próximos passos na consecução do seu intento de se tornar, enfim, um cidadão pleno e integralmente partícipe da vida econômica e da convivência social, que se afirmava ser indispensável para a saúde humana. Neste ponto, se faz necessário colocar em dúvida uma tal afirmativa, uma vez que, já passados quase quarenta anos em que se deram as coisas aqui rememoradas, embora tenha havido um avanço de José Mário no que tange à sua formação enquanto cidadão economicamente produtivo, a tal “convivência social” ou, como entende este escrevedor, a aceitação “social”, condicionada à inserção no processo produtivo, acabou por permanecer sempre e em todo o tempo, no campo da expectativa, expectativa, aliás, não plenamente correspondida, em consonância com a realidade vivida. Conforme já se vem salientando ao longo destes garatujares, é característica da memória de quem lembra, a propriedade de escolher o que lembra e, sobretudo, de silenciar, esquecer ou falar sobre o que lembra. Há vezes em que tais rememorares brotam aos borbotões, rebentando na memória de quem se lembra, como ribeiros caudalosos, que jorram em profusões diversas e díspares, forçando uma escolha daquilo que será dito, silenciado ou apagado por quem lembra.

O mês de dezembro se encaminhava para o ocaso dos seus longos e quase intermináveis trinta e um dias; dias que se tornavam mais quentes com a chegada do verão nos trópicos; a primavera se apressava em seu passo rumo aos ares temperados que dali há alguns meses ela alegraria com o seu despontar. Os pássaros, as cigarras e os galináceos, sequer se davam conta de tais alterações, afinal, aqueles seres estavam ajustados aos ires e vires das estações, sem sofrerem as tensões inerentes aos humanos, cujas preocupações eram moldadas pelo tempo do calendário; pelo tempo do relógio; pelo tempo do trabalho; pelo tempo dos sinos das catedrais e das sirenes das escolas. Tal, evidentemente, não se dava com as aves ou com os insetos, que nasciam, cresciam, se reproduziam, envelheciam e morriam, sem que aqueles contares de tempo lhes importassem ou moldassem o funcionamento dos seus equilíbrios biologicamente elaborados pelo Eterno que os criou. Com jácas e cajus em abundância, o verão chegava e, com ele, as festas de fim de ano que, saliente-se, que só o eram para tantos quantos tivessem os meios econômicos para bancar os seus elevados custos. Aqueles que socialmente estavam alijados de tais efemérides, quiçá, ficavam com as sobras e, em geral, sobras apenas emocionais, se “alegrando” com os refestelares alheios e distantes da realidade de grande parte dos terráqueos, entre os quais, José Mário que, por azar, em tal ocasião, completava o seu acréscimo de dias vividos.

Assim, foi mergulhado em tais reflexões que ele recebera a virada de mais uma página do calendário “gregoriano”, que indicara o ano de 1986, com a cabeça prenhe de interrogações sem respostas e, pior, sem quaisquer esboços de respostas. A tensão estava posta, por conta da aproximação da data de realização das provas do vestibular a que se submeteria, mais para o final daquele primeiro mês do ano que começara para José Mário, como o fora com os anteriores – e, diga-se de passagem, como vieram a ser os que se sucederam –, marcados pelas incertezas e incógnitas que sempre o cercaram em todo o tempo do seu viver. Não possuía nada por certeza; os dias eram vividos sem quaisquer garantias do que se teria, do que se seria, do que se daria... Um dia por vez, não por seu querer racional; um dia por vez, por força da impossibilidade de prever ou preparar o dia seguinte ou, ainda, sem sequer saber se haveria um dia seguinte.

Desta maneira, com todas aquelas dúvidas e questões fervilhando naquele cérebro pleno de ansiedades, José Mário se dirigiu ao espaço onde se reunia a igreja “Assembléia de Deus”, para ali participar do entediante e pouco alentador ritual de “passagem de ano” – que os líderes insistiam em chamar de “culto” –, cuja importância e eficácia – esta última, sobejamente entendida como inexistente - para ele já se reduzira bastante, desde que o começara a frequentar, sempre compulsoriamente, desde que lá ingressara e, mesmo antes, quando participara entre os Batistas. Em ambos os espaços, mas, principalmente no último deles, José Mário estivera com o fito de ocupar um tempo que para ele era lento em sua passagem, uma vez que era inútil tentar dormir nos horários costumeiros, em ocasião como aquela, em que os “alegres” e ruidosos vizinhos procuravam macaquear os ricos e abastados membros de uma elite social e econômica que celebravam com grande pompa o ano que para eles fora permeado de lucros e dividendos, frutos da exploração de tantos quantos ora estavam em grande euforia por terem sido os que trabalharam para que aqueles outros pudessem esbanjar em suas festas comemorativas de “virada de ano”.

Sempre avesso a todo tipo de formalidade, tanto religiosa quanto social , que por vezes, por pura conveniência, era catapultado ao nível da “gratidão”, José Mário fora muitas vezes criticado pela sua descrença em relação ao valor  efetivo das diversas práticas litúrgicas. Naquela mesma ocasião, fora confrontado por uma sua amiga, pelo fato de não ter participado de um “culto” em celebração à conclusão do segundo grau, como ela e outros o fizeram, inclusive, os filhos – principalmente as filhas –, dos figurões  da liderança eclesiástica. Calmamente e com a convicção que o seu ceticismo lhe conferia, retrucou que, para ele, aquela era apenas mais uma etapa do caminho percorrido e, que, de mais a mais, muitas outras haveria que percorrer; era sim, grato ao Eterno por mais aquele avançar; mas, não cria ser necessário uma manifestação celebrativa, apenas e tão somente para atender às expectativas de quem quer que fosse, sem contar que não possuía indumentária adequada ao tal “momento de gratidão”, nem teria como obter, visto não dispor de erário onde pudesse buscar fazer frente àquela necessidade extra de provimento.

Portanto, conforme ele mesmo esperava, saíra daquele ritual religioso, pretensamente em “agradecimento” pela passagem de mais um ano, tão entediado e com uma sensação de inutilidade, quanto saíra da sua casa para juntar-se àquela horda de gente que dizia exprimir gratidão mas, que, ao que lhe parecera, mais se esforçavam em dizer de si para consigo que estavam satisfeitos com o que fizeram e/ou com o que obtiveram, do que propriamente, reconhecerem o quanto estavam tristes e infelizes com a vida que levavam e com a pobreza que amargaram, na verdade e sem mascaramentos, naquele ano que terminava e, para ele, já terminava tarde e sem quase deixar saudade.

 

Alagoinhas – 16 de novembro de 2025 – primavera brasileira

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 9 de novembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte VI.

Ainda em Dezembro

 

Com o intento de discorrer ainda uma vez mais sobre algumas das facetas do caminhar de José Mário em seu processo formativo, aqui se pretende trazer à lume mais uma dentre elas, na medida em que ele se encaminha para o enfrentamento de mais uma de suas etapas. Sem deixar de reforçar o que há algumas páginas se vem afirmando, isto é, que estes garatujares são originados de rememorares escavados das camadas de tempo que estão sobrepostas em blocos mais ou menos espessos, mais ou menos profundos, demarcados por um passar de tempo que acaba por forjar um passado ainda não passado de todo, cujos vestígios ainda aparecem no presente, com mais ou menos nitidez para aquele que lembra e/ou se dispõe a lembrar. Assim, um tal passado emerge diante de quem lembra, embora com ressignificações impostas pelo presente, considerando-se os elementos que foram incorporados no curso da vida; considerando-se as camadas de outras experiências que acabaram por interpolar àqueles lembrares, formando um conjunto de elementos cada vez mais interrelacionados ao passado que se quer lembrar. É assim que, ao procurar exercitar o rememorar, aquele que lembra acaba selecionando aquilo que lembra; depois, escolhendo de acordo com as necessidades e/ou com as possibilidades, aquilo que vai dar a conhecer daquilo que lembrou, ou o que vai silenciar, de acordo com os interditos que se lhes sejam socialmente impostos. De sorte que, aquilo que é proposto por Michel de Certeau, ao explicar a “Operação historiográfica”, indicando que a sociedade e o seu conjunto de entidades cercam o historiador com os seus conjuntos de limites e de possibilidades na condução da sua pesquisa, também, com a devida vênia, pode-se aplicar ao processo de lembrar, esquecer, silenciar da memória.

É assim que, em um dos capítulos que integra a obra coletiva de 2012 – “Os Novos Domínios da História” –, organizada por Ciro Flamarion Santana Cardoso (1943-2013) e por Ronaldo Vainfas (1956-), Márcia Menendes Motta, ao falar sobre o binômio “história” e “Memória”, fundamentando-se em argumentação construída por autores franceses como Maurice Halbwachs (1877-1945) e Pierre Nora (1931-2025), sustenta o postulado segundo o qual

 

“[...] a memória e a história não são sinônimos, pois, diferentemente da primeira, a história aposta na descontinuidade, visto que ela é, ao mesmo tempo, registro, distanciamento, problematização, crítica e reflexão; ela é manejada, reconstruída a partir de outros interesses e em direção diversa, e, para se opor à memória, a história tem ainda o objetivo de denunciar e investigar os elementos que foram sublimados ou mesmo ignorados pela memória” (MOTTA, 2012, p. 25).

Já no parágrafo seguinte, Motta apresenta ao seu leitor o paradigma sobre o qual lastreia a sua compreensão daquilo que vem a se constituir na “memória, assegurando que

 

Quando falamos de memória, devemos levar em conta que ela constrói uma linha reta com o passado, alimentando-se de lembranças vagas, contraditórias e sem nenhuma crítica às fontes que, em tese, embasariam essa mesma memória. Ela é ainda, segundo Nora, ”um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. (Nora, 1993, p. 9). [...]” (MOTTA, 2012, p. 25).

 

Ao citar Nora 1993, Motta reforça a proposição de que a “memória” se alimenta de fragmentos e, por meio deles, ela procura se ancorar naquele passado que evoca no presente. Motta conclui as proposições trazidas para este escrevinhar, assegurando que

 

“Se entendermos que a memória só se explica pelo presente, isso significa também afirmar que é deste presente que ela recebe incentivos para se consagrar enquanto um conjunto de lembranças de determinado grupo. São, assim, os apelos do presente que explicam por que a memória retira do passado apenas alguns dos elementos que possam lhe dar uma forma ordenada e coerente. [...].” (MOTTA, 2012, p. 25).

Assim, considerando os postulados apresentados nas passagens aqui transcritas, este escrevedor  traz para o seu leitor, mais alguns fragmentos dos rememorares a respeito do processo em que José Mário vivenciara quando procurava se apropriar dos conteúdos necessários ao alcance do seu intento de ingressar no ensino superior. Ainda era dezembro de 1985. Conforme é cediço, aquele era o tempo que demarcava a passagem de estação; era o mês de manhãs frescas e embaladas pelo trinar dos pássaros que, com sua diversidade de espécies e cantares, agradavam os ouvidos de quem atentasse para o seu chilrear; também, aquelas manhãs de fim de primavera e início de verão, traziam deliciosos aromas aos olfatos mais sensíveis, que se dissipavam com o avançar das horas matinais; manhãs enfim, que traziam os primeiros raios de um novo dia tão desejado quanto esperado. O meio do dia e o início da tarde, eram marcados por um aumento gradual da temperatura ambiente, tendo o seu ponto mais alto, o período das treze horas, declinando à medida em que avançava a tarde e principiava o pôr do sol. Com ele, uma vez mais o trinar dos pássaros, o cacarejar dos galináceos que procuravam se abrigar do anoitecer que se aproximava, bem como, os primeiros buzinares das cigarras, indicando por aquela sinfonia, a aproximação e o começo da noite, por vezes, mornam nas suas primeiras horas e, um pouco mais amenas, à medida em que se aproximava a madrugada seguinte. Assim eram os dezembros que permeavam a memória de José Mário que, precisamente naquele dezembro completaria o seu primeiro quartel de século, com as mesmas incertezas que o cercavam nos natalícios anteriores, sobretudo, aqueles vividos a partir do momento em que tomara consciência da vida.

Marcado por um cogitar constante em torno do seu vir a ser, José Mário era constantemente atormentado pela constatação de que nada se lhe apresentava no longínquo horizonte das possibilidades, uma vez que, àquela altura do seu caminhar, nada havia que lhe desse qualquer segurança de futuro. As questões sem respostas se acotovelavam no seu espírito, perturbando-o e dificultando a sua concentração nos estudos que precisava desenvolver com vistas ao vestibular que enfrentaria dali há alguns dias. Para ele, tudo era uma incógnita; nada se lhe parecia verossímil; nada se lhe apresentava como crível, fosse qual fosse a medida de prazo que interpusesse. Por mais que se esforçasse para obter alguma resposta plausível, ainda que provisória, temporária ou sujeita à condicionantes as mais diversas, era obstado pela percepção que possuía da sua realidade concreta e palpável. Eram os vinte e cinco anos que se aproximavam e, que dentro em pouco se completariam, que fazia com que os seus pensamentos se turvassem dentro de si; que diversos embates se travassem em seu espírito tão irrequieto quanto cético, na medida em que não atinava para nenhum porvir concretamente alcançável a partir do seu lugar social.

Portanto, para ele, o completar mais um ano, era entrar uma vez mais, no terreno das hipóteses não demonstradas; era ingressar no campo do talvez, quem sabe, pode ser que... Logo, não havia o que comemorar nem celebrar; era mais um ano que acabara de passar sem qualquer coisa de sua, sem qualquer vestígio de possibilidade de alguma coisa: um ano a mais completado de interrogações não respondidas; e, o que se iniciava, era um ano a mais para sofrer a mesma falta de respostas concretas, de realizações duradouras e passivas de render frutos reais e incorporáveis ao seu viver diário. Era apenas mais um virar de calendários; era mais um insano espoucar de fogos de artifício que a ele não dizia respeito; era mais um estourar de champagnes que estava longe do seu alcance, tanto no que respeita à capacidade financeira de aquisição, quanto na compreensão de um sentido que ele não encontrava em tais manifestações de júbilo, visto que, para ele, o tal júbilo não quisera passar no seu existir concreto e real.

 

Alagoinhas – 09 de novembro de 2025 – primavera brasileira.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 2 de novembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte V.

   O SUSTO

 

Em mais um desfolhar de lembranças de um garatujador que insiste em escavar as espessas camadas quase fossilizadas de memórias que cobrem um tempo já pretérito, aqui se pretende trazer mais uma das vicissitudes enfrentadas por José Mário, no seu intento de prosseguir o seu processo formativo, por meio do qual ele viesse a pleitear um lugar como cidadão socialmente ativo e, economicamente produtivo. Quando, retoricamente, Jean-Pierre Rioux pergunta se é possível “Fazer uma História do Presente”, depois de apontar as objeções enfrentadas por este tipo de “fazer histórico”, em seguida ele apresenta a resposta à indagação com a qual abre o seu postulado, afirmando que “Essa história, de fato, por ser feita com testemunhas vivas e fontes proteiformes, porque é levada a desconstruir o fato histórico sob a pressão dos meios de comunicação, porque globaliza e unifica sob o fogo das representações tanto quanto das ações, pode ajudar a distinguir talvez de forma mais útil do que nunca o verdadeiro do falso.”. E, logo adiante, Rioux arremata a resposta à formulação por ele proposta, asseverando que

 

“[...],se ela tem como missão, como toda história digna deste nome, mostrar a evidência científica das verdades materiais diante do esquecimento, da amnésia ou do delírio ideológico, (pensemos, por exemplo, nos que negam as câmaras de gás), ela sem dúvida está mais apta a explicar do que a verdade estatística da enumeração, da qual somos tão apreciadores; ela não evita ver em ação a verdade psicológica da intenção, a humilde verdade do plausível, a força da questão da memória sobre o curso do tempo” (RIOUX, 1999, pp. 48-49). 

 

É pensando neste construto teórico e metodológico acima apenas esboçado, que se vem elaborando estes arrazoados fincados nos rememorares que quem traceja as linhas que ora os leitores têm diante de si. Depois de ter superado as intercorrências que se apresentaram diante de si para dar início aos seus planos de preparação com o objetivo de estar apto para enfrentar o vestibular que o poderia levar ao principiar de um novo estradar da vida, José Mário se encontrara diante de um problema que poderia embargar o seu caminhar naquela direção e, sem que ele pudesse intentar qualquer ação para o resolver, poderia frustrar todo o esforço até ali despendido. Como um rastilho de pólvora, correra entre o professorado a notícia de que um movimento grevista poderia ser deflagrado, a qualquer momento, tendo em vista o fracasso de negociações salariais entre a categoria e o governo do Estado. Como fogo que ardia sob monturo, aquela probabilidade de interrupção do ano letivo, já quase próximo da sua conclusão, acabou por chegar aos ouvidos do alunado, provocando nele uma grande ansiedade, principalmente, naquele grupo de alunos que estava por concluir o terceiro ano do segundo grau, obstando-lhe, em caso de concretização da notícia que circulava, a obtenção dos certificados que faria daqueles alunos inseridos no referido grupo, prontos para os caminhares que escolhessem e/ou que pudessem prosseguir caminhando.

Era fim de novembro de 1985, quando ansiosos, José Mário e um bom número de outros secundaristas, se dirigiram ao “Estadual”, depois de terem realizado as últimas avaliações, para ali receberem os seus resultados e, saberem se houvera passado “direto” ou se ainda ficariam em regime de recuperação de alguma outra matéria. Ao saber que estava concluída a sua jornada escolar no âmbito do “Segundo grau”, José Mário voltara para casa, fazendo o trajeto a pé, a despeito do calor daquela manhã, para que, segundo imaginava, enquanto caminhasse, ele poderia ruminar aquele resultado, aquele aprovar que recebera, depois de um longo e cansativo ano escolar, que lhe impusera mais um grande feixe  de esforços, tanto físicos quanto mentais, para alcançar aquele tão esperado quanto desejado resultado. O tal ruminar se fazia necessário, para que ele pudesse se dar conta de que de fato, tudo estava terminado, tudo o que precisava cumprir naquela etapa do seu processo de escolarização estava, enfim, formal e plenamente cumprido, para que ele mesmo pudesse acreditar que sim, que estava mesmo concluído aquele longo e difícil processo.

Assim pensando, ele saíra dos portões escolares, cuja frente voltava-se para a rua Maria Feijó, seguira a esquerda em direção à Rua 21 de abril, tendo percorrido toda a sua extensão, até alcançar a rua Severino Vieira, virando a direita para alcançar a travessia da avenida Juracy Magalhães e, prosseguir na rua Severino Vieira, até alcançar a Rua Luís Viana, entrando a esquerda, para alcançar a Coronel Philadelpho Neves, na qual entraria à direita, percorrendo-a por todo o resto de sua extensão, para em seguida, atravessar a via férrea, por onde ainda circulavam uns poucos trens, situada na altura da rua 2 de Julho, entrando, em seguida, na segunda travessa 2 de Julho, que o levaria, enfim, ao seu espaço de residência, perfazendo assim, uma distância de mais ou menos três quilômetros. Naquele trajeto ora ainda calmo e de pouco movimento de automóveis e mesmo de pessoas, José Mário acabou por mergulhar em reflexões que o remetera aos primeiros anos de sua vida escolar, muitas vezes sendo uma parte daquele trajeto, no sentido que ele fazia, o mesmo que o seu irmão o levara pela mão ou no quadro de sua velha bicicleta, para que pudesse chegar ao Brasilino Viegas, onde então estudara por todo o “primário”; também lembrara das inúmeras vezes que, sozinho, fizera aquele mesmo trajeto, em manhãs agradavelmente aromatizadas por diversidades de cheiros que ele aspirava com alegria indizível, quando se dirigia àquele mesmo estadual de onde ora voltava mergulhado nos seus pensamentos retrospectivos. Ali, sob o sol das dez de uma manhã primaveril, José Mário não só pensara no que fora, mas, como é parte do seu interior, procurara imaginar o que poderia vir a ser dali adiante, sem atinar, no entanto, o que seria aquele “vir a ser”.

Portanto, ao dar largas aos seus imaginares, quase voou para um lugar onde ele nunca antes imaginara pudesse chegar, não obstante os obstáculos que, de antemão,  ele já sabia que teria de ultrapassar; pensara que, uma vez aprovado no vestibular que em breve realizaria e, uma vez desenvolvido o curso para o qual estava inscrito para concorrer, ele poderia vir a ser um professor..., sim, um professor, de alguma escola regular, trabalhando com alunos que, diferentemente dele, não teriam dificuldades com o acesso à leitura, à escrita, ao conjunto de saberes que precisariam acumular, do mesmo modo como ele acumulara; alunos que talvez o admirassem, o detestassem, o desprezassem, ou lhe fossem indiferentes. Aquilo em si, pouco lhe importara naquele momento de conjecturares fora de quaisquer razoabilidades. O que ali importava mesmo, fora o seu imaginar para além do caminho que ele já houvera palmilhado até o instante que se dirigia à sua casa, radiante por enfim, ter fechado aquele ciclo tão longo e cheio de percalços.

Entretanto, já tendo chegado dezembro de 1985 e, passado alguns dias após ele ter recebido os resultados finais relativos ao terceiro ano do “segundo grau”, vê-se confirmada a disposição dos professores em deflagrar o movimento paredista que, conforme se salientou, era corrente de boca em boca, primeiro entre os docentes, depois, entre os alunos, já nos dias finais do mês anterior à sua efetivação. José Mário acabou por assustar-se, pois, embora não mais o atingisse, no que respeitava à conclusão do ano letivo, visto não ter ficado em recuperação de qualquer matéria, não ficou claro para ele, se o prejuízo não se estenderia àqueles que viessem a precisar da certificação de concluintes. O impasse entre governo e grevistas logo foi solucionado. No entanto, a colação de grau – evento que ele se recusou a participar, por achar desnecessário e, ser meramente protocolar -, acabou por se dar nos primeiros dias de janeiro do ano subsequente, portanto, antes da realização das provas do vestibular, para as quais ele já se vinha preparando há pelo menos dois ou três meses.

 

Alagoinhas – 02 de novembro de 2025 – primavera brasileira.

 

Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com