A transição – I.
Conforme já depreende o leitor destes garatujares, aqui se
inicia mais uma série de postagens, cujos fundamentos estão assentados nos
rememorares de quem as escreve e publica neste espaço. Nela se pretende retomar
algumas observações já feitas ao longo do tempo em que se escreve neste blog,
procurando aprofundar algumas incursões na memória aqui já feitas, talvez de maneira
aligeirada, intentando encontrar explicações ou respostas, ainda que
inconclusivas, para algumas questões, igualmente já levantadas, que possam vir
a surgir no transcurso da construção da referida série. Estando envolvido com
leituras de pressupostos teóricos que tem como objetivo a compreensão do tempo
histórico e da sua importância para a compreensão da História, este escrevedor
acaba por refletir no seu “tempo histórico”, vivido pessoal e coletivamente,
buscando reforçar o trabalho que tem desenvolvido nos últimos quinze anos de
sua vida acadêmica, tomando a “memória” como ponto de inflexão para a construção
de fontes históricas com as quais possa desenvolver as pesquisas que tenham o
propósito de elaborar estudos sobre a “cidade” nos diversos âmbitos do cotidiano
que constitui o seu farfalhar social.
A propósito da perspectiva do tempo no “fazer histórico, já
nas páginas introdutórias de sua obra “O Tempo dos Historiadores” (2013), José
d’Assunção Barros, assevera que “[...]. Situar todas as coisas no tempo —
enxergá-las sob a perspectiva de que cada uma delas interage e ajuda a
constituir um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que também
se inscrevem no tempo — é típico da História. Os historiadores estão presos ao
tempo, literalmente. [...]. O que é visceral mesmo, em cada historiador, é a
ideia de que tudo se inscreve no tempo, de que tudo se transforma — e de que
devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas transformações,
deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e que, de resto,
também se inscreve no tempo” (BARROS, 2013, p. 17-18).
Ainda conforme preconiza Barros, “[...] Quando se diz que ”a
História é o estudo dos homens no tempo”, rompe-se com a ideia de que a
História deve examinar apenas e necessariamente o passado. O que ela estuda, na
verdade, são as ações e transformações humanas (ou permanências) que se
desenvolvem ou se estabelecem em um determinado período de tempo, mais longo ou
mais curto” (BARROS, 2013, p. 18).
E mais adiante, Barros fornece a ferramenta conceitual a
partir da qual o perquiridor da história vai construir as suas reflexões acerca
da sociedade humana na qual concentra as suas atenções, propugnando que “[...].
O tempo dos historiadores refere-se essencialmente à existência dos homens. O
que de fato interessa a um historiador é a passagem do homem sobre a Terra, o
que inclui tudo aquilo que, tocado pelo homem, transformou-se, e também aquilo
que, vindo de fora, transformou a vida humana” (BARROS, 2013, p. 20).
Portanto, é nesta perspectiva que se pretende discorrer
sobre o caminhar de José Mário nas sendas do seu processo formativo acadêmico, abordando
algumas dentre tantas passagens do seu trilhar aquelas paragens desconhecidas
e, porque não dizer, de possibilidade de o fazer, pouco prováveis a ele, que em
grande medida, não estava devidamente provido das ferramentas adequadas, nem
dos recursos necessários, muito menos dos pressupostos teóricos fundamentais
para empreender aquela jornada. Como já sabe o leitor deste espaço, José Mário
fizera um primeiro grau bastante irregular, com diversas interrupções e outras
tantas soluções de continuidade; um segundo grau – hoje denominado “Ensino
Médio”, cuja diferença não se resume à sua nomenclatura –, embora feito com alguma
regularidade no que tange ao correr das séries, não obtivera um bom acúmulo de
saberes que o habilitasse a maiores intentos e mais altas pretensões propedêuticas,
visto tê-lo concluído em uma versão técnica, o que lhe não permitia lidar com
ensinos aprofundados de matérias que lhe indicariam, ao menos, já haver tomado
contato de um elenco de conteúdos com os quais precisaria lidar, no momento de
se lançar em seleções vestibulares, caso viesse a pretender se imiscuir no
caminho da formação universitária.
Ao se iniciar o ano letivo de 1985, José Mário, sequer
cogitava a mais intangível possibilidade de se lançar empreitadas que viessem a
resultar no ingresso em um curso superior. Primeiro, estava posta a interrogação
sobre as suas condições objetivas em se fazer aprovar em um vestibular, dado ao
grau de dificuldade e ao nível de exigência posta por aquele tipo de certame, representado
pela obrigatoriedade de ler - ou ter
lido – um conjunto de autores e obras literárias, por exemplo. Embora, como já
se disse aqui, ele tenha percorrido um bom número de títulos, grande parte
daqueles que apareciam nas listas propostas pelas principais universidades do
País que lhe chegara ao conhecimento, jamais lhe passara pelas pontas dos
dedos. Outrossim, como já é cediço, a grande defasagem entre aquilo que lhe
fora proporcionado no campo das ciências exatas – não deixando de salientar,
aquilo que ele não conseguira absorver/aprender – e aquilo que era cobrado
naquele tipo de demanda para ingressar no ensino superior, impactaria ineludivelmente,
no seu desempenho diante dos problemas relativos àquela área do conhecimento,
não obstante, algumas das provas serem compostas de questões objetivas. Embora
ele nem mesmo tivesse cogitado inserir-se naquele tipo de embate, o fato de não
dispor daquelas condições objetivas não deixava de ser por ele consideradas. E,
caso viesse a pensar em se envolver em tal, sob aquelas condições adversas, ele
não possuía ilusões. Aquelas que, quiçá um dia houvesse possuído, morreram no
embate com a realidade vivida até ali, nas proximidades de completar o primeiro
quarto de Século, indicando que o tempo já passava e a percepção daquela
passagem, já se apresentava com a aparência de maior velocidade.
Segundo, se porventura viesse a passar em algum daqueles
certames, viria uma outra dificuldade a se enfrentar, que, ele sabia, não havia
como resolver, ao menos, nas condições as quais ele e a sua provedora estavam
sujeitos. A moradia e a alimentação fora das quatro paredes do seu residir,
era, por assim dizer, um obstáculo intransponível, visto não possuir nenhum
lugar onde pudesse morar, fosse em Salvador ou em Feira de Santana, bem como
não possuir parentes, aderentes ou mesmo amigos que o pudesse socorrer em tais
circunstâncias; nem haver recursos financeiros que permitissem uma locação – de
casa, de apartamento ou de vaga de pensão. Isto implicava em acrescentar mais
um obstáculo a uma eventual caminhada no processo de formação acadêmica, na
medida em que, sem morar e sem se alimentar, não havia como cursar. Saliente-se
de passagem que, nem estava posto o item deslocamento no conjunto de
necessidades de um estudante que não possuía residência em Salvador ou em Feira
de Santana – para falar em cidades próximas daquela onde se localizava a sua
moradia –, uma vez que, consuetudinariamente, ele contava com a gratuidade nos
transportes públicos. Mesmo aquela gratuidade, estava sujeita à interpretação
de condutores, despachantes e, principalmente,, da maneira como os
proprietários das empresas concessionárias de transportes a compreendiam, visto
não haver “leis escritas” que a regulassem, implicando em travamentos de tais
deslocamentos, sobretudo, no âmbito intermunicipal.
É assim que, ainda que não tomando esses elementos de modo
organizado como aqui se resumiu, para José Mário, aquele seria apenas o ano da
conclusão do Segundo Grau e, de alguma forma, já seria um ganho, se assim se
desse. A única possibilidade de um pretender aceder ao ensino superior que por
vezes se lhe assomava ao espírito, em alguns lampejos logo apagados pelo seu
recorrer à sua realidade objetiva, era a Faculdade de Formação de Professores
de Alagoinhas, espaço que já visitava há um par de anos, no sentido de se valer
do acervo de sua biblioteca, para elaboração de trabalhos escolares. Mas, o
curso que ali era oferecido, que mais lhe instigava era o de licenciatura curta
em Estudos Sociais, que lhe soava como um inacreditável tom de incongruência,
visto que, aquele era um dos cursos inventados e impostos pela ditadura
civil-militar, implantada pelo golpe perpetrado contra a democracia em 1964,
com o objetivo de reduzir a reflexão e anular o pensamento crítico propiciados
pelos cursos de História, Sociologia e Filosofia, incoerentemente embutidos nos
tais “Estudos Sociais”. Além disto, para que fosse possível aquilo que se
denominava “plenificação” do curso iniciado na FFPA, como era conhecida aquela
instituição, seria necessária uma complementação em Feira de Santana, que
colocaria em pauta, aquelas dificuldades já acima elencadas.
E, desta maneira, como não poderia deixar de ser, caso José
Mário se quisesse aventurar numa nova caminhada por meio da qual viesse a se
inserir no corpo discente formado por aqueles que ingressassem na FFPA, ainda
que no curso estapafúrdio de “Estudos Sociais”, haveria que se preparar para
fazer face às exigências inerentes àquele tipo de seleção. No entanto, conforme
já se acentuou há algumas linhas, o seu objetivo primevo era, inarredavelmente,
encerrar aquele ciclo escolar, o que se daria com um considerável atraso, em
relação ao que se esperava de um aluno em condições normais de tempo e de
temperatura: concluir o segundo grau entre os dezessete e os dezoito anos. Naquele ano da Graça de
Nosso Senhor Jesus Cristo de 1985, aquele concluinte completaria 25 anos,
redundando em uma defasagem de aproximadamente oito anos, o que equivaleria,
mais ou menos, ao tempo de ingressar, cursar e concluir um curso de graduação,
entrar em um programa de Pós-graduação para cursar e concluir o Mestrado e,
ingressar em um programa de Pós-Graduação, nele cursando a metade do tempo
necessário para defender a tese de doutorado.
Alagoinhas – 05 de outubro de 2025 – primavera brasileira
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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