domingo, 19 de outubro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte III.

A transição – III.

 

Evocando a professora Ecléa Bosi (1936-2017),é possível asseverar que a memória trazida aqui para estes escritos está fincada naquilo que ela entende como sendo “[...], a lembrança pura”, pois ela aparece “[...] quando se atualiza na  imagem-lembrança” e, portanto, “[...], traz à tona da consciência um momento único, singular,. _não repetido, _irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não  mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento por via da memória. [...]. “[...]. A imagem-lembrança tem data certa:  refere-se a uma situação definida, individualizada, [...]”. (BOSI, 1994, p. 49). Este posicionamento de Bosi está fundamentado em Halbwachs (1877-1945), que em sua “Memória Coletiva” considera que “Para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível.”. Algumas linhas abaixo ele reforça a proposição, indicando que “[...]. Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a seqüência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso. [...].” (HALBWACHS, 2006, P. 31). No entanto, ao trazer o passado para o presente, mediante a evocação daquelas lembranças que ainda se podem evocar, ainda que fragmentadas e, em parte reconstruídas por quem lembra, é possível elaborar um rememorar consistente de eventos e circunstâncias vividos naquele passado evocado, a partir de elementos do presente em que o texto é escrito.

É nesta perspectiva que se pretende continuar a discorrer sobre o processo de transição entre o então segundo grau e a busca de José Mário por ingressar no ensino superior, que se vem abordando há já um par de textos postados neste espaço virtual de leitura e reflexão. Neles, se procurou apresentar algumas das estreitas margens do seu viver que o limitava em suas tomadas de decisão a tal respeito. Também ali, se procurou demonstrar que, embora ele tivesse consciência dos limites que social e economicamente a vida lhe impunha, recebera de alguns dos seus poucos amigos a oferta de apoio, no sentido de lhe propiciar alguns meios para fazer face a elas, em caso de partir para o enfrentamento das condições postas, com vistas a fazer o percurso até o curso de licenciatura em História, que, uma vez integralizado, acabaria por o tornar professor.

Chegara outubro e com ele o espraiar dos ares primaveris. O farfalhar das folhas ao ventos, o chilrear dos muitos pássaros nas árvores já frutificando, os aromas da aurora enchendo os pulmões de frescor indizível, dava ao viajor os sinais de que o raiar do dia se fazia já em pleno desabrochar, convidando os operários, as que laboravam nos rios e os estudantes do matutino para que se levantassem e rumassem para os seus espaços de labutas diárias. Como não poderia deixar de ser, José Mário, acordado por volta das cinco da manhã de um daqueles dias de outubro de 1985, se dirigia para o “Estadual”, fazendo o trajeto da sua casa até o estabelecimento de ensino, caminhando pela rua 2 de julho, por vezes, recebia carona na carroceria de uma chevrolet C10, pertencente a um pai que levava as filhas para o mesmo local, seguindo pela Severino Vieira, atravessando a rua Luiz Vianna Filho e a rua Juracy Magalhães, para mais à frente virar a esquerda na rua 21 de abril, alcançando por fim o então debutante “Estadual”. Tendo ali chegado, ao descer do veículo, agradecia a gentileza do seu proprietário e ingressava no Centro Integrado Luiz Navarro de Brito, para participar das aulas e, após o seu término, dali sair para se dirigir até o prédio onde funcionava a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, espaço que algumas vezes visitara no intuito de fazer uso da biblioteca mas, que daquela vez, ali chegara para fazer a sua inscrição no vestibular, candidatando-se ao curso de Licenciatura Plena em História.

Tendo ali chegado e, se dirigido ao local onde se processavam os trabalhos de inscrição para o dito certame, José Mário teve que ser encaminhado para uma conversa com o professor José Sales– já seu conhecido por conta da sua efêmera passagem pela Primeira Igreja Batista de Alagoinhas –, professor da instituição, que presidia a comissão encarregada daquela tarefa, sem que, no entanto,  ele atinasse a razão ou a necessidade daquela entrevista, uma vez que, ao se apresentar como candidato, já levara a documentação exigida para tanto e, o recurso monetário com o qual ele pagaria a taxa referente ao seu pleito. Mal poderia imaginar que, aquela seria uma sinalização de que, em caso de aprovação, ele enfrentaria inúmeras turbulências durante o processo formativo para o qual pretendia percorrer.

José Mário saiu da tal entrevista com a sensação de que aquele lugar não seria para ele, nem para pessoas outras que causassem algum mal-estar na condução de processo de aprendizagem, provocando uma espécie de “quebra de paradigma”, no que respeita ao modo de funcionamento da engrenagem há tempos consolidada. Talvez, o “mal-estar”, não tenha sido provocado necessariamente pela sua condição econômica, tampouco pela sua origem social. Mas sim, a sua condição de cegueira, acabara pôr os assustar, por assim dizer, uma vez que, imaginavam – embora nunca tenham dito –, não estariam prontos para o receber enquanto aluno. Afinal, a escola, independentemente do nível de ensino em que esteja inserida, é um espaço de exclusão de tantos quantos não vejam, não ouçam/falem, não tenham o pleno desfrute dos movimentos ou, não tenham um ritmo cognitivo compatível com o que se considera “normal” ao ser humano. Como já é cediço – ou deveria sê-lo –, tanto na sua compleição orgânica, quanto no seu modo de funcionamento, a escola não foi feita para estes tipos acima apontados – basta prestar a devida atenção aos elementos constitutivos inerentes à escola: professora escrevendo no quadro para alunos copiarem em cadernos; ou falando para alunos ouvirem; leituras passivas e/ou ativas; respostas pedidas e recebidas em um tempo breve; aferições de aprendizagem alinhadas a determinados padrões de raciocínio e compreensão do ensinado, tudo isto em um ritmo estipulado. Ao contrário: ela foi feita para quem goza do funcionamento “normal” e pleno de todos os sentidos, para aqueles que não possuem restrições de mobilidade e, para quem pensa, raciocina e racionaliza, dentro de uma “caixa” inscrita no campo da “normalidade”. Logo, aquele candidato a aluno já chega causando preocupações àqueles que eram os responsáveis por solicitar ao órgão elaborador das provas e do material a ser utilizado no processo de execução do certame seletivo, visto não terem a menor ideia de como proceder. Aliás, fora está a motivação alegada para a tal conversa em separado com a comissão, o que lhe causara espécie, uma vez que, em sua cabeça não passava a ideia de que aqueles professores, alocados no ensino superior, trouxesse aquele vácuo de conhecimento do modo como deveria conduzir atividade docência, independentemente do aluno naquele que ingressasse naquele nível de formação.

Enfim, ultrapassado este primeiro obstáculo – ainda que à época não tenha sido percebido como tal –, a candidatura foi devidamente registrada e, José Mário, a partir daquela data, haveria que empreender esforços para alcançar uma preparação, ainda que mínima e precária, que não viesse a frustrar, não só a sua própria expectativa mas, também, a daquelas pessoas que depositaram crédito em sua capacidade de luta e de esforço para encarar mais aquele desafio. Era, portanto, o tempo de procurar encontrar pessoas que lhe pudessem auxiliar na redução de danos, quais sejam: ao falta dos rudimentos mais elementares que deveriam ter sido estabelecidos no transcurso do Segundo Grau e, que, para ele, estava bem aquém daquilo que ele precisava para obter o desempenho, ao menos suficiente para se fazer aprovar naquela empreitada em que ele já chegava com uma grande defasagem em relação a uma boa parte dos candidatos.

 

Alagoinhas, 19 de outubro  de 2025 – primavera brasileira.

José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

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