sábado, 30 de agosto de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XIII

 

– Obras e autores parte XI.

 

Já prestes a concluir esta série de arrazoados em que se vem tratando das dificuldades encontradas por José Mário em se capacitar para empreender a leitura mais além das linhas de um texto dado, cabe salientar que, como se já vem pontuando nos garatujares anteriores, grande parte das obras que se dispusera a ler, mesmo no ambiente escolar – em casos em que conseguira acordos ou anuência de algumas docentes –, os títulos e os autores eram de sua livre escolha. Para tanto, ele procurava convencer os professores da necessidade de o fazer, argumentando que tal ou qual obra por ele escolhida, já se encontrava transcrita em Braille, o que tornaria a sua tarefa mais exequível, por não ter que enfrentar os transtornos advindos de fatores que iam desde a aquisição, a possível transcrição e, por fim, a leitura e compreensão de um título que ainda não estivesse em Braille. Eventualmente encontrando alguma resistência em algumas de suas mestres, ele procurava respeitosamente argumentar, dizendo que, em virtude das suas condições econômicas e sociais, não teria como adquirir a obra por elas escolhidas, outrossim, informava que não contava com colegas que morassem próximo do seu lugar de morada e, para completar, não teria como remunerar alguém que lhe pudesse ler o título em questão, para que depois ele pudesse ser por elas avaliado. Quase sempre, ele conseguia convencer as mestres a flexibilizarem no tocante à escolha da sua obra de trabalho, embora algumas delas se mostrassem recalcitrantes e não cedessem em suas posições e auras de autoridade, acabando por designar uma obra diferente daquela que fora proposta para o restante da turma, o que, saliente-se, didaticamente não era a melhor escolha a ser feita. Crê-se que, ao se posicionarem estabelecendo uma obra para toda a turma e uma outra para aquele aluno que não a poderia comprar ou, se o pudesse, não a poderia ler com autonomia, acabava por segregar as avaliações, já que não o poderia fazer sob os mesmos critérios adotados para todo o grupo..

 Assim, ao procurar ponderar com as suas professoras a impossibilidade de aceder com autonomia algumas das obras por elas propostas para a leitura obrigatória e avaliativa, aquele estudante buscava demonstrar para elas que, malgrado aqueles impedimentos, tanto de ordem econômica e social, quanto aquelas outras de caráter técnico, havia nele o interesse e a vontade de ler e por tal leitura ser avaliado, como o seria os seus demais colegas. Além da compreensão de que a leitura da mesma obra que o seria pelos demais alunos possibilitaria a realização de avaliações mais justas, José Mário entendia que para ele, um leitor voraz e interessado na leitura como sendo uma atividade escolar, daria a ele a oportunidade de melhor compreender os textos, mediante as explicações e as ponderações das suas mestres, uma vez que considerava que elas deveriam ser proficientes na execução daquele tipo de conteúdo e, como tais, estariam plenamente capacitadas para o bom andamento do seu processo formativo, que, ao fim e ao cabo, o levaria a alcançar o amadurecimento como cidadão e como estudante. Isto implicaria em uma melhor compreensão da vida em sociedade; na interação necessária para a sua inserção no mundo do trabalho e, nas lutas pelo seu integral processo de aceitação por parte da construção social como um todo, a despeito de limitações  sensoriais inerentes à sua condição de cegueira.

Portanto, todo aquele conjunto de obras que ele leu, fê-lo, em geral, por sua própria escolha, sempre com o intuito de desenvolver o seu processo formativo. Sem qualquer critério lastreado em qualquer distinção de pertencimento de tal ou qual obra, em tal ou qual escola literária, ele se aplicava em obter o material em Braille e, uma vez chegando às suas mãos, ele percorria diligentemente as suas páginas, nem sempre alcançando compreendê-las nas suas intertextualidades, como já se vem salientando há já alguns arrazoados. No entanto, algumas delas ele não logrou completar a leitura, tendo já sido apontadas algumas dentre elas, aqui nestes garatujares, como foi o caso de “O Romance de um Moço Pobre”, alguns títulos de Monteiro Lobato, entre outros já comentados em escritos anteriores.

Aqui, no entanto, vale mencionar uma das obras primas da lavra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), de quem se vem tratando nas últimas postagens. Aquele rapaz com inúmeros defeitos de formação escolar, não concebia que alguém já morto e sepultado, viesse a escrever um tratado abordando situações, circunstâncias e aspectos retroativo de sua vida já finda, apontando para o que já vivera e, quiçá, elaborando juízo sobre o que fizera, sobre o que propusera, sobre o que pensara devesse ter feito e, assim por diante. Para Zé Mário, não fazia o menor sentido ler um texto escrito a partir da sepultura do seu autor. Ora, pensava  o rapaz atônito, ali já era demais para aquele desnorteado leitor que, se mal compreendia as linhas pelas quais transitavam os seus dedos, página a página, imagina compreender um escrito produzido a partir de um lugar em que, quem lá se encontra, não pode nem mesmo se revolver no ataúde em que está encerrado... Onde já se viu, um defunto se arvorar a escrever um texto zombando até mesmo daqueles que choravam a sua morte! Ali, era exigir “demais da conta”, como diriam mineiros e goianos, para um leitor que se encontrava fechado em si mesmo e, sem algum outro leitor mais bem versado nas lides da produção literária brasileira e oitocentista para dialogar consigo... Como compreender se tratar de fina ironia de Machado de Assis, se para aquele leitor raso e sem uma compreensão daquilo que se encontrava nas entrelinhas da aludida obra, a literatura nada mais era do que construções romanescas envolvendo indivíduos vivos, com enredos que envolvia tramas amorosas ou, quando muito, tramas envolvendo disputas políticas econômicas em torno de alguma fortuna ou alguma coisa do tipo?

Assim pensando e, diante da completa incompreensão daquilo que intentara ler, nada mais restou àquele estudante de primeiro grau, afrontado de chofre na sua plena ignorância das ferramentas literárias e da genialidade de Machado de Assis, senão fecharas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, sem que houvesse ultrapassado as primeiras cinco ou seis páginas - como já prevenira o seu autor ao apresentar a obra ao público -, para só voltar a abri-la cerca de vinte anos depois e, por fim, ler por completo e, melhor compreender aquela composição magistral do cognominado “Bruxo do Cosme Velho”. Daquela vez, a obra fora mais bem compreendida e, até se lançou mão de alguns de seus trechos para desenvolver a peça introdutória de dissertação de mestrado, defendida em 1998.

 

Alagoinhas – 30 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 24 de agosto de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XII

– Obras e autores parte X.

 

Em mais um intento de discorrer sobre o processo formativo de José Mário e as suas dificuldades em lidar com o mundo em que vivia e o compreender a partir do mundo que lhe era apresentado pela literatura que ele devorava, embora não a conseguisse digerir adequada e satisfatoriamente para poder absorver alguma dentre as muitas lições possíveis de se aprender, aqui se traz à consideração do paciente leitor destes garatujares, mais algumas abordagens sobre a proposição que se vem fazendo ao longo de algumas semanas aqui, neste mesmo espaço. A hipótese que se tem procurado demonstrar aqui, é a de que a dificuldade que fazia com que aquele leitor voraz não conseguisse compreender adequadamente as propostas encontradas nos livros que lhe era facultada a leitura, se lhe apresentava como resultado da falta de instrumental teórico e de apreensão contextual adequada, para que ele pudesse ler para além das linhas que percorria e, como consequência,  sair da superficialidade que se lhe apresentava o texto que acabara de ler. Tal falta, embora ele já contasse mais de dezesseis anos, quando fizera a maioria das leituras das obras aqui analisadas, o impedia de abstrair os elementos constitutivos dos textos em causa, bem como, impedia a compreensão das características pessoais e estilísticas dos autores que, em última análise, indicava grande parte da razão de ser de sua obra.

Portanto, o que se vem postulando nestes arrazoares é que, a formação de um sujeito para que possa encarar o mundo que lhe rodeia, precisa não só de um ferramental teórico e metodológico adequado, como também, precisa que a sua apreensão e que a sua aplicação se dê nas etapas escolares e etárias equivalentes ao desenvolvimento intelectual do ser em formação. Para José Mário, além de não haver a sincronia apontada acima, nem contar com a existência de bases culturais anteriormente assentadas e, advindas de um pertencimento familiar que as houvesse construído, também ele não teve acesso ao tal instrumental teórico, nem se observou a relação idade/série, uma vez que, quando já deveria estar matriculado no então segundo grau, ele ainda se debatia com as dificuldades relacionadas com a sétima série do então primeiro grau, o que efetivamente interferiu no processo de seu amadurecimento, tanto intelectual, quanto no acúmulo de referências que permitissem aprender a construir um modo de pensar que lhe propiciasse a sua apreensão de mundo, visando a interação com os diversos elementos presentes na sua constituição.

Assim, não tendo alcançado desenvolver tais habilidades no tempo oportuno, José Mário acabou por não saber como lidar com o mundo que se lhe apresentava para que nele se inserisse e nele navegasse, enfrentando as marés que teria de atravessar diária e constantemente, se quisesse chegar a algum lugar, onde ele de fato queria.

Embora já existissem em bom número e, José Mário conhecesse e tivesse em casa algumas delas  - como as propostas por Massaud Moisés (1928-2018) -, não era fácil o acesso a antologias – e José Mário ainda não dispunha de maturidade para as entender como sendo necessária a leitura delas –, que tratassem de obras, conjuntos de obras ou de grupos de autores, que permitissem obter informações sobre as circunstâncias em que foram produzidas tais ou quais obras; os contextos em que estavam inseridas e que possibilitaram o desenvolvimento das histórias lidas; as características de tais ou quais autores, que possibilitassem entender as motivações não só da criação dos enredos, bem como da elaboração das personagens e dos seus modos de ser e de se comportar. Era sob estas perspectivas que José Mário se lançava nas leituras que se propôs fazer, ao longo do seu caminhar de estudante irregular, no sentido de suas idas e vindas pela seriação escolar. Assim, é com espírito lacunar de informações das circunstâncias, dos contextos e das características estilísticas e, sem quaisquer informações sobre quem fora e o que fizera no tempo em que vivera, que aquele leitor se imiscuiu na produção literária de Machado de Assis (1839-1908), mormente, aquela que mais  dificuldades lhe impôs para compreender os descaminhos trilhados pelo seu autor na construção do seu complicado desenrolar: “Dom Casmurro”. Publicada em 1899 e , ao que tudo faz crer, diferentemente de grande parte das obras literárias desenvolvidas no transcurso do Século XIX, ela já aparece como livro, completo e trabalhado como tal, em lugar de aparecer em fascículos publicados paulatinamente nos jornais, como o fora até então, inclusive, outras obras machadianas.

lido por José Mário aproximadamente em 1978, “Dom Casmurro” foi uma obra que se apresentou para ele, como tendo sido a mais difícil para a sua compreensão fincada solidamente em uma leitura romanesca, visto que, conforme veio a saber muito mais tarde, tratava-se da fase “realista” de Machado de Assis. Tal classificação, volte-se a salientar, para ele não fazia qualquer sentido, pois, no seu entendimento, tudo era romance e, como tal, precisava se desenrolar como romance: pares; disputas, discordâncias e, por fim, acertos que resultassem naquilo que ele considerava o desfecho adequado para aquele tipo de escrito, “o final feliz”. Mas, malgrado o seu esforço para entender o andamento do texto e, não obstante o seu empenho para decifrar os intrincados caminhares construídos pelo autor, nada conseguira absorver, compreender ou mesmo apreender da proposta de Machado para os seus personagens e, para a trama por ele urdida. Zé Mário sequer atentara para a dubiedade do desfecho da obra, certamente, cravando ter havido o dito adultério por parte de Capitu, entendendo menos ainda, o que levara o autor – e claro, ele não o percebera – a dar a obra por terminada, sem entregar ao leitor um fim conclusivo. É verdade que Zé Mário só tomara conhecimento da polêmica – sem o menor sentido para ele –, bem depois, quando já entrara em contato com outras percepções da obra, evidentemente, ao se encontrar no processo de graduação. Ainda assim, a leitura fora feita com bastante atenção, cuidado e vagar; entremeada de retornos às páginas anteriores, com o fito de procurar entender o que fora lido ou, retornar a algum trecho que se lhe escapara a atenção; pausas e retomadas  foram feitas na vã tentativa de entender o que se lhe escapara. Entretanto, todo aquele esforço intelectual empreendido visando enfim, compreender o labiríntico desenvolvimento daquela que, conforme se leu bem mais tarde, fora a obra mais trabalhada das propostas por Machado de Assis, José Mário nada logrou alcançar em sua empreitada para apreender o que propunha o autor na exposição do seu discurso.

Assim, se ao ler “Dom Casmurro”, José Mário mal compreendia as formulações encontradas quando percorridas “as linhas” nas quais pululavam belas construções frasais, saltitavam expressões que indicavam o rico vocabulário com  o qual Machado elaborava o conjunto complexo de sua narrativa, ele nada conseguia apreender a infinidade de subliminaridades que poderiam se fazer notar, naquilo que mais tarde ele veio a saber existir, mormente nos textos literários: as “entrelinhas”. Nelas estaria a chave para a compreensão do dito, pois ali estaria o “não dito”, que não precisava sê-lo, desde que o leitor o pudesse abstrair para a melhor e mais profunda compreensão do que se pretendia dizer, quando uma obra estivesse nas mãos daqueles que a iria percorrer. Uma vez escrita a obra, o autor deixaria que o seu leitor pudesse captar os interditos, pois, como já é cediço, grande parte daquilo que se pretende comunicar, nem sempre pode estar explicitado, devido as interdições, as circunstâncias que podem ter envolvido esta ou aquela produção literária. É o que Michel de Certeau indica como sendo o “lugar de produção”, que envolve, que influencia, que ajusta ou que limita quem elabora uma leitura de mundo, neste caso específico, por meio da literatura.

 

Alagoinhas – 24 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

sábado, 16 de agosto de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XI

 

– Obras e autores parte IX.

 

Ainda caminhando pelas sendas dos rememorares, apontando para um passado que ainda se faz presente, tem se procurado entregar ao paciente leitor, mais um arrazoado no qual se pretende pensar a construção do processo de formação de um indivíduo situado entre as décadas de 1970 e 1980, na qual era bastante rarefeita a existência de um instrumental técnico – ou o acesso a ele – que permitisse o elaborar de ferramentas que possibilitasse um aprofundamento do pensamento – ou mesmo o conhecimento dele – que ensejasse o desenvolvimento de um modelo por meio do qual, se pudesse construir uma leitura de mundo que tornasse possível uma maior e melhor compreensão da realidade em que vivia, visto que, para conseguir avançar na busca do amadurecimento pessoal e, para se fazer inserir no caminhar coletivo, se fazia imperativo que apreendesse não só os elementos inerentes à vida de per si, bem como que compreendesse os modos de utilização do instrumental cognitivo que no que respeita ao caso em exame, em grande parte das vezes, estava limitado ao pequeno arsenal propedêutico acumulado no processo de seriação escolar.

Já se apontou em elaborações textuais anteriores, que o personagem que tem sido aqui analisado, apesar de já haver passado a sua primeira quinzena de verões, quando se imiscuíra no mundo das construções literárias, enfrentou algumas sérias dificuldades em separar o mundo ficcional que lhe caíra nas mãos – mesmo se considerando que grande parte dele fora retratado em publicações já centenárias ou próximas de alcançar esta marca –, do mundo real e palpável em que vivia. Na realidade, ele não conhecia a existência de tal diferença, uma vez que ainda não possuía a capacidade de abstrair entre o lido e o vivido, no sentido de entender a existência de uma distância substantiva entre os dois mundos pelos quais tentava transitar – o real o ficcional –, tanto pela sua inserção tardia no processo de formação escolar, quanto pela falta de interação com um ambiente cotidiano que lhe permitisse estabelecer a dicotomia entre a realidade vivida e aquela apresentada nas representações de um mundo cujos elementos constitutivos já se faziam profundamente modificados, não só pelo tempo, como também pelo desenvolvimento social, cultural, histórico, econômico e, sem perder de vista que, no momento em que ele realizava as suas leituras, já eram outros  os sistemas filosóficos que vigoravam no tempo histórico em que se encontrava, em relação àqueles  sob os quais estava lastreado o mundo do Século XIX, que presidia majoritariamente a produção literária que estivera ao alcance daquele leitor ainda intelectualmente imaturo.

Portanto, como se tem podido  perceber, a despeito da atenção dedicada às leituras que fazia e, malgrado os esforços envidados na busca de sua compreensão, José Mário não conseguia separar adequadamente aqueles dois mundos, embora ele soubesse que aquele que lhe era trazido magistralmente pelos diversos escritores com os quais tomara contato, se lhe afigurasse inatingível, não por pensar que tal mundo não existisse de fato; mas, porque acreditava que ele, leitor que estava sob algumas condições sociais, econômicas e culturais adversas, jamais o alcançaria, acreditando quase piedosamente, que outros, no seu mesmo tempo de existir, poderiam chegar a atingir aqueles objetivos de vida, sentimento, prestígio social, ou quaisquer outros, apontados pelos autores e, evidentemente, tornados possível em suas tramas. É preciso salientar que as suas leituras, em grande parte, estavam concentradas na escola romântica, embora, ele não fizesse quaisquer distinções entre elas, pois, para ele, tudo era romance, desde que o final se desse com um casal que durante todo o enredo se queria, se cogitava que tivesse uma relação idílica e, tal se desse ao fim da obra que se dispunha a ler, como se deu, por exemplo, em “Inocência” – embora, ao pegar a obra e ler as suas primeiras páginas, não compreendera imediatamente que aquele era o nome da personagem; acreditara se tratar  de um “estado”, “uma condição” de “pureza” de malícias -, escrita pelo Visconde de Taunay (1843-1899). Portanto, tudo aquilo que fugisse desse diapasão, lhe soava como inaceitável. Tal régua de medir por ele utilizada, fazia com que ele repelisse grande parte das obras de Jorge Amado (1912-2001), Guimarães Rosa (1908-1967), João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Clarisse Lispector (1920-1977) – estes três últimos, se quer ele conhecia alguma de suas obras e, sobre a última, nem mesmo ouvira falar

É assim que, neste e nos próximos três arrazoados, se buscará falar das tentativas de ler e minimamente compreender uma parte da prosa de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), que José Mário fizera ao tempo do seu processo formativo. Tais intentos foram experienciados no escopo do seu trajeto de leitor quase compulsivo, possibilitado pela facilidade com que conseguia acesso aos livros em Braille, conforme já sabe o leitor destas linhas, que eram distribuídos gratuitamente, mediante pedido feito à Fundação para o Livro do Cego no Brasil, situada na cidade de São Paulo. Devido à variedade e extensão dos escritos de Machado de Assis, disponibilizados por aquela instituição que se dedicava ao trabalho de transcrição de livros em Braille para a leitura dos cegos brasileiros, duas delas serão tratadas aqui e, mais três em outros arrazoados. Iaiá Garcia, primeira das obras machadianas que passou sob os dedos de José Mário, teve a sua primeira edição publicada em 1878. Nela, o leitor, como sempre, nada conseguiu apreender de sua trama, senão o embate entre os dois pretendentes à mão da jovem órfã, que era cortejada por um antigo apaixonada pela sua madrasta e por um velho solteirão que, aos olhos da madrasta parecia mais aconselhável. No entanto, para além da menção à “Guerra do Paraguai”, onde o amigo de Luís Garcia servira no fronte, nada mais Zé Mário colhera de sua leitura, para além daquilo que ele entendera como o desenlace esperado. Exasperava-se pela demora com que o autor empreendia ao seu enredo, algumas vezes abandonando a leitura quando acreditava que não teria o final que almejava, voltando ao texto com a impaciência de um leitor que não se conformava em não chegar ao fim da leitura e encontrar o seu desejo atendido. Não compreendia a forma de conduzir a trama que era peculiar àquele autor que, ainda sem uma grande compreensão, entendia ter algumas características que diferenciaria dos demais que lera até ali e, que igualmente, pouco ou nada entendera do contexto que cercava tanto a concepção da obra, quanto aquele que a construía; menos ainda, compreendia o objetivo que impelia Machado de Assis, em tal ou qual direção, na construção daquilo que o leitor ainda entendia como sendo um “romance”.

A segunda das obras machadianas que lhe despertara o interesse, “A Mão e a Luva”, publicada em (1874), acabou por se lhe apresentar como uma trama que dava a ele aquela sensação de que “para cada mão, haveria uma luva perfeita para encaixar. Aquela compreensão equivocada que ele construíra da trama tecida por Machado, acabou por produzir uma expectativa de caminhar cotidiano que não correspondeu à sua realidade vivida. É evidente, como se percebe com o passar do tempo e o acumular de experiências desapontadoras, que o tratado de Machado não apontava para uma compreensão da vida em termos de coisas ou pessoas encaixáveis e/ou ajustáveis ao querer ou ao desejar de quem quer que fosse. Seja como for, aquele entendimento construído pelo leitor, acabara por criar nele alguns desconfortos, sobretudo no campo afetivo, podando a sua percepção da vida, como sendo um constante entrecruzar-se de pessoas e fatos, ineludivelmente executados, absolutamente fora de uma fixidez de fins estabelecidos à priori.

Para finalizar este arrazoado que já se faz longo e, antes de continuar a discorrer acerca da inserção de Zé Mário na verve machadiana, caberia aqui salientar que, ao menos este escrevedor, jamais conseguiu saber e, muito menos entender, quais os critérios adotados pela Fundação para o livro do cego no Brasil – se os havia –, no momento de decidir quais livros, autores ou temas por eles tratados eram escolhidos para serem transcritos e, posteriormente disponibilizar para o acesso dos leitores cegos brasileiros. Salvo um melhor trabalho de pesquisa e de busca de informações mais precisas, grande parte daquilo que era transcrito em Braille pelo parque gráfico da referida instituição, estava concentrada em obras tidas como clássicas e, que foram tornadas públicas a partir dos meados do Século XIX e, do início do seguinte, talvez nas suas primeiras quatro ou cinco décadas. Os mais atentos leitores destes garatujares, certamente, já perceberam que boa parte das obras e autores aqui comentados, se situa nos tempos do Brasil imperial e escravocrata.

Talvez, aqui se possa apontar que, uma chave para se procurar compreender a postura “conservadora” da FLCB, esteja no período em que foi mais intensa a distribuição do material transcrito para o Sistema Braille de leitura e escrita para os cegos. Aquele era o tempo da Ditadura civil-Militar instaurada pelo golpe de 1964, na qual, os generais presidentes governavam o País com “mão-de-ferro e, evidentemente, as instituições – mesmo aquelas que, em tese, não ofereciam grande resistência ou qualquer perigo ao Regime – se encontravam sob vigilância ou, como se diz, “pisavam em ovos”, com receio de despertar o furor dos “donos do poder” e aqueles, se voltarem contra elas, “com fúria e altivez”. Obras como algumas das produzidas no tempo da escola realista, ou mesmo, aquelas entendidas como “subversivas”, ao menos o quanto se sabe, jamais foram transcritas para o Sistema Braille. Teria a Fundação para o Livro do Cego no Brasil se imposto uma auto censura – por medo ou simples alinhamento –, no que respeita a obras e a autores que seria conveniente  evitar que chegasse às mãos e/ou conhecimento dos leitores cegos, contaminando-os com as ideias “indesejáveis” ali contidas – tais como comunismo, crítica ao sistema econômico e social; questionamentos à autoridade dos militares no poder; ou apenas uma compreensão da exploração do trabalho pelos proprietários dos meios de produção, da opressão exercida sobre os pobres, dentre outras aberrações apontadas por autores dispostos a “subverter a ordem” com os seus escritos?  Temeria as autoridades, uma “insurreição” dos cegos brasileiros?  E, sendo tal “revolta” possível, como ela se daria, a partir de algumas leituras “desviantes”, se alguns dos leitores, sequer conseguiam avançar para além das linhas percorridas?

Cabe ainda salientar que constava no catálogo de distribuição da aludida Fundação, livros de autores de literatura policialesca, como por exemplo, “O caso dos dez Negrinhos” e “O Homem do Terno Marrom”, da escritora britânica Agatha Christie (1890-1976), o que poderia levar a crer que houvesse uma questão a ser colocada, que buscasse entender haver alguma razão obscura, ou ao menos, mal explicada, sobre as escolhas de quais ou tais obras a serem transcritas para o Braille e distribuídas para tantos cegos quantos quisessem recebê-las  em suas residências.

A tal propósito, conviria a se conjecturar a respeito de tão estúpida possibilidade de uma rebelião a partir do acesso a construções ficcionais que mal eram compreendidas na sua superfície, havendo eclodido o movimento insurrecional promovido pelos cegos aliciados pela leitura das obras “perigosas” e, logo depois de esmagado pela bravura dos soldados, munidos de canhões e tanques ágeis e modernos, qual viria a ser o nome dado àquele pretenso “levante” incitado pelo comunismo que grassava nos malditos livros, quase sempre considerados “doutrinadores”? Talvez, passasse para a História como “o levante das bengalas longas”; ou ainda, os insurretos poderiam vir a ser conhecidos como “os ceguinhos rebeldes”; mas, também poderia aquele imaginado movimento ser conhecido como “insurreição dos sem vista” ou ainda, “A Revolução dos Cegos”!... Vai saber!...

 

Alagoinhas – inverno brasileiro – 16 de agosto de 2025

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 10 de agosto de 2025

AS LINHAS E AS ENTRELINHAS - X

 

– Obras e autores parte VIII.

 

Conforme se vem salientando nestes garatujares, os elementos trazidos ao crivo da arguta observação de tantos quantos se interessem em lê-los, estão ineludivelmente arraigados no rememorar daquele que os escreve, considerando, evidentemente, o que se vem dizendo acerca do lembrar, do esquecer, do silenciar, do apagar. Estes movimentos da memória têm por princípio a preservação do vivido ou, pelo menos, o esforço para não o perder de todo, fazendo daquela experiência uma espécie de trampolim para o salto nas lembranças e, por consequência, procurar construir um caudal de elaborações de um dado passado lembrado. Conforme preconiza Jeanne Marie Gagnebin,

“[...]. Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem  às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao  presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no  presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas  também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo  um fim em si, visa à transformação do presente” (GAGNEBIN, 2009, P. 55).

 

 

Há já algumas postagens, vem-se desenvolvendo arrazoados que demonstrem a hipótese que os move, que é a de que José Mário em seu processo formativo, sofreu com a falta de alguns instrumentos que lhe facilitassem a apreensão dos elementos que constituem o modo de pensar inerente ao mundo em que estava inserido, que lhe ajudassem a absorver  não somente os textos que lhe  passassem sob os dedos, mas, sobretudo, o ajudassem a perceber com clareza, as articulações empregadas nas construções literárias que formatam os diversos contextos sobre os quais se desenrolavam os enredos propostos pelos autores das obras lidas. Tal falta acabou por produzir alguns déficits no seu processo formativo que dificultaram e muito, a construção de ferramentas interpretativas dos ditos e dos não ditos inerentes aos textos literários, retardando a sua compreensão de mundo, a sua construção de um pensamento crítico, procrastinando assim o seu crescimento, amadurecimento e frutificação intelectual, tão necessários à interação social, à intervenção no que diz respeito às relações com o conviver com a sociedade e com as exigências inerentes ao processo de inserção como força de trabalho ativa na produção material e imaterial, indispensáveis ao viver e à sobrevivência junto aos demais elementos constitutivos da formação econômica e social a que pertence.

É neste sentido que aqui se traz mais um conjunto de obras que foram lidas  por José Mário quando estava procurando desenvolver o seu processo formativo para a vida adulta e laboral, mas, a despeito da atenção e do interesse com que se lançou à tarefa de percorrer as suas páginas em Braille, não as entendeu, ou, o que viria a ser a mesma coisa, não conseguiu abstrair daquela obra entrada naquilo que viria a se denominar “escola realista”, aquilo que era objetivo do autor, comunicar por meio dos seus escreveres, muito menos, compreendeu que se tratava de um retratar histórico através da literatura, de um ciclo econômico do Brasil, há já algum tempo sendo superado por outros ciclos que lhe sobrepuseram: o ciclo da cana de açúcar.

Desta forma, para trazer ao público leitor um pouco daquela fase da História econômica brasileira através da produção literária, José Lins do Rego (1901-1957), desenvolveu uma espécie de série composta por cinco títulos, que consistiu em desenvolver tramas distribuídas em publicações trazidas à lume em cerca de aproximadamente  cinco anos entre a primeira e a quinta obra – tendo surgido uma sexta, publicada sete anos depois da quinta dentre elas -, através da qual ele elaborou uma saga elementar para a compreensão daquele Brasil que se queria novo, sobretudo, após a eclosão dos episódios que desaguaram naquilo que ficou historicamente conhecida como “A Revolução de 30”, que pôs fim ao período chamado de “República Velha” ou, “República do Café com Leite”, período em que as oligarquias rurais pouco a pouco, perdiam a hegemonia exercida sobre aquela sociedade em que a maioria da população nascera, crescera, se desenvolvera e morrera nos interstícios das propriedades rurais pertencentes aos chefes locais, sendo forçada a dar lugar a uma “burguesia” urbana em franco crescimento, que reclamava um lugar político equivalente ao domínio econômico que se lhe afigurava como inerente à riqueza que acumulara até ali. .

Portanto, Menino de Engenho 1932, Doidinho 1933, Bangüê 1934, O Moleque Ricardo 1935 e Usina 1936, além de Fogo Morto que foi publicada em 1943, eram as obras que compunham o que se convencionou denominar de “ciclo da cana-de-açúcar”, onde Lins do Rego procurara mostrar aos seus leitores o paulatino e vigoroso enfraquecimento do domínio exercido pelos coronéis dos engenhos sobre a grande maioria da população, quase sempre a eles subordinada e, por eles, constantemente ameaçada, se acaso lhes contrariasse a vontade ou, não lhes atendesse os caprichos. Oriundos dos setores que dominaram a cena política e a vida econômica e que deram as cartas para o funcionamento da sociedade brasileira, praticamente, por todo o tempo de construção do Estado e de sua formação sociocultural, no instante mesmo em que se dera o processo de ocupação portuguesa. Desde a implantação da República no último decênio do século XIX, aqueles coronéis experimentavam um franco e inelutável declínio de sua importância econômica e, veem erodida a relevância de sua participação política no que tange à determinação dos destinos daquela Nação, nascida como resultado do fim do império dos Orleans e Bragança.

Assim, quarenta e dois anos depois da publicação de Menino de Engenho, Zé Mário, arrastado pela onda levantada por outros colegas que, tal qual ele, também entraram em contato com aquelas obras no mesmo momento da formação escolar, acabara por ler as três primeiras delas, sem contudo, encontrar em suas páginas, nada mais do que texto muito bem escrito – como não poderia deixar de o ter sido – e que a ele se lhe afigurava como uma prosa bem concatenada e coerente, sem, no entanto, fazer grande sentido para aquele leitor superficial.

Conforme já se apontou acima, não obstante o interesse, a atenção e o empenho de José Mário em se assenhorar do conteúdo das obras que se dispusera a percorrer com os seus dedos, pouco ficou daquele esforço em tomar contato com o enredo desenvolvido pelo autor, a não ser, alguns fragmentos que se lhe introjetaram na memória, como duas quadras recitadas pelas gentes em seus azafamas diários que Lins do Rego transpusera a sua trama, apesar de Zé Mário talvez não ser capaz de dizer em qual das três que lera se encontrariam as quadras infamantes, urdidas e que eram disparadas por três ou mais grupos de subalternos que se conflagravam entre si, embora, aquele leitor não atinasse a razão de tais confrontos, se nenhum dos grupos era formado pelos proprietários ou pelos seus herdeiros. A primeira das quadras que passava de boca em boca, no formato de insultos cuspidos na cara dos contendores, dizia: “Branco Deus fez; mulato Deus pintô; caboco bufa de porco, nêgo o diabo cagô. A segunda delas dizia: “Branco dorme na sala; mulato no corredô; caboco na cozinha; nêgo no cagadô”. Elas eram recitadas uns contra os outros e, dependendo dos níveis de acirramento dos ânimos, poderia acabar em pródiga pancadaria.

Mas, qual era a razão daquela animosidade, o voraz leitor não conseguira encontrar. Na verdade, se quer ele atentara para aquilo que poderia estar no subtexto daquela manifestação insidiosa, como sendo uma relação conflituosa que formatasse uma reação à mestiçagem – para não dizer uma rejeição a ela - presente na configuração da população rural, que constituía o maior contingente que formava as gentes que habitava nos engenhos. Ao contrário: ele entendia como alguma coisa passível de risos; como se fossem brincadeiras inofensivas para aqueles que eram listados entre uns que tinham alguns privilégios – que ocupavam os melhores lugares da casa – e, outros que eram deslocados para as áreas mais insalubres do lugar. Não compreendia se tratar de modos de que aquela gente se valia para lidar com a condição a que estava sujeita ou, quiçá, de se ajustar à  posição em que se encontrava, que, lhes parecia, talvez se possa dizer, ser melhor do que a do outro que se lhe encontrava colocado logo abaixo. E, saliente-se, conforme se pôde perceber nas quadras acima transcritas de memória – ressalte-se -, o elemento negro sempre é estabelecido nos degraus mais baixos e degradantes do existir humano, nas situações mais vexatórias em relação aos demais rejeitados sociais e, que não sem uma boa dose de contradição, se imaginam melhores, acreditando-se situar acima daqueles na hierarquia social vigente, sem atinar que, no fim e ao cabo, todos eles estão sujeitos à mesma tirania exercida pela opressão que os possuidores dos meios de produção, faz recair sobre aqueles que nada mais possuem, senão a sua força de trabalho.

 

Alagoinhas, 10 de agosto de 2025 – inverno brasileiro.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com–––– 

domingo, 3 de agosto de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – IX

 

– Obras e autores parte VII.

 

Este é mais um arrazoado a partir do qual se pretende analisar o percurso de José Mário nas lides do seu processo formativo, considerando as incursões que ele fizera na produção literária que lhe caíra nas mãos, no lapso de tempo que medeia o seu caminhar pela vida, pela escola e pelas ruas da sua cidade onde permutava algumas ideias com uns poucos amigos que possuíra e cultivara,  em todo o transcurso das décadas de 1970 e 1980. Por aquela ocasião, ele estava em processo de construção do seu modo de perceber e pensar a realidade que o rodeava e, por conseguinte, elaborava a sua leitura de mundo, tanto o material quanto o imaterial, com o qual era instado a interagir, como parte do esforço para compreender o cotidiano que dele se acercava, procurando absorver os pontos e os contrapontos que lhe eram diuturnamente apresentados ao espírito. Não obstante o tempo transcorrido desde então, as camadas de memória já superpostas e, principalmente, as experiências vividas que resultaram no acúmulo ainda maior de camadas, fazendo ainda mais difícil a identificação de qual delas estaria sendo escavada, o rememorar deste escrevedor impertinente, talvez seja útil para a compreensão do vivido pelo protagonista que tem tido o fio do seu viver puxado pelo Teseu que navega nos labirintos propiciados pelas entradas cada vez mais profundas em seu emaranhado de reentrâncias no extenso espaço da memória.

Não é sem razoável grau de acerto que Pierre Nora (1931-2025), procura elencar um conjunto de “lugares de memória”, a partir dos quais são desencadeados lembrares diversos àqueles que por eles passam – temporária ou frequentemente (cemitérios, antigas construções emblemáticas, igrejas onde antes congregara, clubes e outros espaços de sociabilidades que antes frequentara), também os livros e outros impressos que alguém acabara por reler – que, quase invariavelmente, levam a um “reencontrar” de lembranças de um tempo há muito já pretérito, que ressurge com impressionante nitidez naqueles que alguma vez retorna ao seu “lugar de memória”, deixando profunda impressão naquele espírito, que julgava já completamente apagadas aquelas sensações trazidas à tona, mediante o contato com os “lugares de memória”, os quais voltara a visitar de maneira voluntária ou, ainda que involuntariamente. É por isto que Nora diz que “[...]A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse  sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do  esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os  usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. [...]”. (NORA, 2010, p. 8).

É assim que, tomando na devida conta as reflexões que se vem fazendo sobre José Mário em sua voracidade de leitor e, apontando para as suas dificuldades em compreender com um pouco mais de profundidade aquilo a que se dispusera a ler, insere-se aqui uma correta ponderação feita por um leitor, quando ele assevera que leitura e compreensão de um texto literário, requer maturidade, seja do ponto de vista cronológico, seja do ponto de vista intelectual, acrescenta este escrevedor, embora, creia ele, o tal acréscimo estivesse implícito na ponderação feita pelo atento e arguto leitor. No caso específico de Zé Mário, talvez, lhe faltasse as duas modalidades de maturidade, uma vez que, ele, em grande parte dos casos, se mantinha nadando em rios cujas águas mal lhe cobriam os pés. É verdade que faltava a ele, um grande número de informações sobre a obra que lia, sobre o autor que a compusera, sobre o tempo em que fora escrita, sobre o contexto social, econômico e cultural que propiciou a sua circulação, divulgação e aceitação – ou não – daquilo que nela se procurava descrever, contestar, reforçar, refutar, enfim, a quem ela era dirigida e porque fora tornada pública. No entanto, Zé Mário não era capaz, sequer, de levantar algum senão, que indicasse uma leitura compreensiva e, pior, uma postura reflexiva sobre o que lera. Seria quase um passar de páginas maquinal, apenas para chegar ao fim e concluir triunfante: acabei de ler tal, ou qual obra. É certo que tal postura ainda prevalece nos dias hodiernos, a despeito do grande volume de informações, disponíveis para consulta na rede mundial de computadores. Mas, também, já houve tempos que tais bancos de dados não existiam – ou pelo menos que fossem alcançáveis em minutos, mediante alguns cliques ou toques em telas –, que permitisse ao leitor aceder a meandros que estivessem ativos no momento da escrita de alguma obra. Ainda assim, grandes reflexões foram desenvolvidas, alentados debates foramdesencadeados e tornados públicos por meio de jornais e/ou revistas especializadas, em alguns casos, levando autores a rever a sua prosa, como parece ter sucedido a Herberto Sales (1917-1999), autor de “Cascalho”, que teria alterado bastante o seu prosear, entre a primeira edição publicada em 1944 e a que ele classificou como definitiva, publicada  em 1955, - implementando algumas alterações no curso da trama, talvez, quiçá, mediante pressão de alguns elementos nela envolvidos, suprimindo algumas passagens que colocassem em risco a sua integridade física, visto alguns poderosos da região terem se reconhecido em personagens do enredo ficcional produzido pelo futuro imortal da Academia Brasileira de Letras, saído dos torrões de Andaraí, na Bahia.

É assim que, aqui se pretende trazer mais três obras que José Mário lera, a partir do seu próprio interesse e escolha, sempre tendo em vista a sua necessidade de se assenhorar dos livros que gratuita e livremente eram colocados ao seu dispor e de quem mais tivesse interesse em os ter e os ler. A primeira delas é “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macêdo (1820-1882), obra publicada em 1844 e, que ele julgara ter entendido perfeitamente, pois o enredo romanesco e previsível estivera dentro das suas expectativas, visto que apresentava um caminhar com poucas tropelias e se encaminhava para o assim chamado “final feliz”, como ele esperava e pelo que torcia. Nada compreendia, evidentemente e como nas obras até aqui comentadas, daquilo que levara o autor a conduzir a trama na direção que o fizera, adotando os passos que escolhera para o encaminhamento do romance. Pouco compreendia dos meandros culturais e psicossociais inerentes ao século XIX em que fora ambientado, ignorando por completo os usos e os costumes que marcavam o seu desenrolar, sequer conseguindo separar as distintas realidades: aquela que presidia a obra e aquela outra que presidia o tempo que a estava lendo. Ainda assim, considerou que em algum momento do seu viver, circunstâncias e/ou situações trazidas para o desenrolar da trama e, que lhe marcara o espírito, ainda há pouco mergulhado na adolescência – uma adolescência tardia, saliente-se, de passagem – pudessem vir a se fazer real em seu favor. Isto é: ele de fato não conseguia separar a realidade romantizada e tornada pública por meio de um livro que atravessara o século que lhe dera origem, de uma representação ficcional daquela que passara sob os seus dedos ágeis. Por vezes, ele acreditava que na verdade, o enredo era uma  descrição de uma realidade de fato vivida – do mesmo modo como entendera no caso de “O Tronco do Ipê, de José de Alencar, já mencionado há alguns dias neste mesmo espaço.

A segunda das obras aqui trazidas para comentar acerca das dificuldades de compreensão das “entrelinhas”, por parte de José Mário, a despeito de suas incursões na produção literária que lhe era disponibilizada em Braille – embora já existisse, nunca se interessara pelo livro gravado - é, “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães (1815-1884), publicada em 1875 – portanto, no auge da campanha abolicionista encabeçada por diversos intelectuais da época, que ganhara força logo depois da Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, 1864-1870 -, que retratara em suas páginas uma crudelíssima realidade vivida por tantos escravos brasileiros – e assim ele entendeu adequadamente a obra – mas, que ele não conhecia, sequer um tantinho dela. A história que ele conhecia fora lhe ensinada no primeiro grau – que ainda cursava quando leu a obra em causa –, que nada falava a respeito da escravidão imposta a africanos trazidos  para o Brasil em navios “Tumbeiros” – tão ricamente descrito pelo lirismo de Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) – ou, sobre aqueles aqui nascidos e que formavam o grupo de indivíduos que com seus corpos e força de trabalho, propiciava o desenvolvimento e o enriquecimento do Brasil, passando longe de falar dos maus tratos, da servidão a força de chicote e privação da liberdade; de forma discreta e quase despercebida, falava de escravidão por nascimento; mas, falava também e com muito entusiasmo, de que eles eram os responsáveis – sem que indicasse a que custo – pela movimentação da produção e da comercialização de inúmeros produtos que faziam a “riqueza” da nação.

Destarte, é a partir da leitura daquela obra que lhe ferira profundamente a sensibilidade, que ele tomara conhecimento da crueza do regime... Opa, calma aí!: da crueza, da torpeza,  ou do autoritarismo de um senhor de engenho – ou seja, Zé Mário não sabia ser comum atitudes como as de Leôncio - que queria a todo o custo possuir sexualmente uma de suas escravas, daquelas dentre as que serviam na “casa grande”, nascida da conjunção de um homem branco com uma mulher negra, razão pela qual lhe foi imputada a condição de escrava. Para ele, não era o regime que se apresentava em sua forma de ser e de existir; mas, entendera da leitura, que se tratava de um sujeito isolado que prevalecendo da condição de “senhor”, “proprietário” daquela escrava, pretendia possuí-la para desfrutar do seu sexo, no frescor dos seus anos. Da mesma maneira que não entendera o sucedido ao “Pai Tomás” como sendo inerente ao regime a que ele estava submetido, José Mário também não conseguira associar as agruras sofridas pela escrava Isaura – assim como fora vivida por outras escravas em inúmeras propriedades isoladas nos longínquos grotões do País -, como sendo um elemento constitutivo do modo escravista de trabalho, vigente nas plagas brasílicas. Para ele, se tratava de mais um romance, uma criação literária, não atinava ser lugar comum aquele tipo de circunstância vivida pelos que eram submetidos ao regime de escravidão, que vigorara por todo o tempo de existência do Brasil colonial e do Brasil imperial, marcadamente nos ciclos econômicos sob os quais o país foi moldado. Aquele leitor não sabia, por exemplo, que a escravidão negra não foi a única praticada no Brasil colonial e imperial. Não sabia que o trabalho compulsório também foi imposto aos povos nativos, em lugares onde a escravidão negra não era comercialmente rentável para quem a traficava; nem valia a pena bancar o seu custo em áreas que a produção não fosse destinada ao comércio em grande escala.

A terceira das três publicações que José Mário teve sob os seus dedos para uma leitura que fora feita com bastante atenção e interesse foi “O Cabeleira”, de Franklin Távora (1842-1888), publicada em 1876. Marcada por tramas envolvendo mortes e sangue, mostrou um cenário repleto de descrições cruas dos crimes perpetrados pelo protagonista, cuja leitura não fez Zé Mário reconhecer uma mudança no perfil dos livros até então lidos por ele, se apresentando ao seu espírito como uma obra que ele simplesmente não encontrara razão para a sua leitura, malgrado o entusiasmo que lhe despertara o título do tratado. Era lhe difícil suspeitar se tratar de obra que talvez pudesse ser classificada como regionalista ou, uma espécie de antecipação de uma literatura sobre o cangaço que surgira no nordeste brasileiro – embora pudesse ser encontrado em outras regiões do país, sob outras denominações. Ele nada absorvera do conteúdo apresentado ao longo daquelas páginas, não ficando sequer o registro na memória de um caminhar minimamente lógico da narrativa. Não ficou nenhum nome de personagens que fosse, apesar de ter ele lido toda a obra. Para aquele leitor voraz e com baixíssimo senso crítico, não fazia o menor sentido não haver em um “romance” um trecho que fosse que conduzisse a um descrever de amores e, claro, com um “final feliz”. Talvez até tenha havido, uma conversão de um assassino cruel, por meio de um amor de alguma jovem mulher encantadora, doce e meiga que quebraria os rancores e as asperezas acumulados; que amansaria um homem endurecido pelos muitos crimes e pelas muitas vinganças aplicadas aos seus inimigos. Se perguntado, ele sequer arriscaria dizer se houve este esperado abrandamento “do coração” daquele homem rude, acre e de sentimento petrificado, pois, ele sequer se lembra de uma única passagem daquilo que lera em “O Cabeleira”.

 

Alagoinhas, inverno brasileiro – 02 de agosto de 2025

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com