– 1980: Ponto Final, depois de dois pontos parágrafos e algumas
páginas em branco.
Retome-se aqui o caminhar daquele aluno em sua terceira investida no intento de prosseguir no seu esforço de vencer aquela série, por duas vezes deixada por concluir. Aqui, como nos textos anteriormente lidos neste espaço, a memória será evocada em socorro deste escrevente, uma vez que, é por meio das suas rememorações, que algumas ressignificações do passado a partir do presente fincados nas experiências posteriormente integradas às coisas lembradas, algumas das muitas situações vividas por aquele que a evoca, pode ser alvo das reflexões e de reinterpretações de quem as viveu e/ou, de quem possa ter tomado conhecimento com os elementos aqui recordados. Considerando apenas o subtítulo dado a este tratado, o leitor atento que vem caminhando a perscrutar os rastros deixados por José Mário nas sendas do seu processo educativo formal, deve estar a se perguntar, a onde está o ano de 1979, que não aparece neste escrito, uma vez que, a julgar pelo proposto na expressão que abre este arrazoado, aquele intervalo de trezentos e sessenta e cinco dias e noites que o compõem – longos e, por assim dizer, quase intermináveis, saliente-se - , foi omitido pelo seu autor.
Em parte o arguto leitor argumenta assertivamente, ao
apontar o salto observado na construção do caminhar de José Mário, perturbado
por um cipoal de pressupostos econômicos, culturais coletivos inerentes ao inter-relacionamento
com a sociedade excludente em que estava “inserido”, ao qual ele precisaria
fazer face, em meio a um emaranhado de raízes, caules, troncos e galhos – ainda
verdes ou já secos há tempos – que se lhe procurava obstaculizar a passagem, o
que o obrigava a empreender esforços braçais para abrir picadas, muitas delas
ainda não palmilhadas por pés que precedessem aos seus. Foices, machados,
picaretas ou facões, por inúmeras vezes, foram os seus instrumentos auxiliares
na tarefa de aberturas de picadas em matas sociais espessas e, muitas vezes,
quase inexpugnáveis. Ainda que entre temores e hesitações, sem tréguas para
lamentar os fracassos, nem mesmo para contabilizar os ganhos, o que se havia
era de enfrentar os desafios materiais e imateriais que constantemente lhe eram
impostos, tanto ao corpo, quanto ao espírito.
No entanto, cabe destacar aqui, que a aludida omissão, não
se deve a algum lapso de memória daquele que ora elabora este arrazoar.
Trata-se, isto sim, de avançar “em busca” de desenrolar alguns dos fios formadores
de um feixe de lembranças tecidas no transcurso dos tempos já pretéritos, que
permitam compreender um processo iniciado três anos antes do “tempo” enunciado.
Isto equivaleria dizer que, se pretende deixar aqui algumas páginas em branco
como marco de um intervalo entre dois parágrafos, escritos nos arrazoados
anteriores, páginas aliás, que, contraditoriamente, só estão em branco no texto
que ora o leitor tem diante de si, uma vez que, algumas das “peripécias” de
José Mário – no dizer de um dos mais assíduos leitores destes garatujares –,
referentes ao ano aqui deliberadamente oculto, já foram abordadas no espaço virtual
em que está hospedada esta publicação.
É assim que, nas páginas que se seguem, o leitor já
encontrará José Mário retomando a sétima série pela terceira vez, dois anos
após a ter abandonado em sua segunda tentativa de concluir, ou, como ele mesmo
diria, se empenhar em largar o pesado
fardo de pedras no lugar a ele destinado, depois de ter deixado para trás,
imerso em interrogações, um rio de matérias, temas e disciplinas que só lhe
amofinava o cérebro, sem que ele pudesse saber “o que ali fazia”, nem para quê
“tanto esforço dispendia”. Em suma, faltava um alvo a perseguir, para além
daquele mais imediato, o concluir aquela série que já se lhe afigurava em
franca decomposição e, passar para a seguinte. Mas, faltava saber o “para o
quê” alcançar, chegar no final daquele
tão árduo mourejar, em terreno tão
áspero, quanto árido.
Desta forma, tendo passado todo o
ano anterior em que procurara virar definitivamente a página do processo de
escolarização formal, inscrevendo-se entre os cegos que se dirigiam ao Senai de
Salvador, em busca de aproveitamento de sua mão de obra na já decadente
indústria soteropolitana, depois de ter
patinado em tal empreitada, ei-lo de volta a Alagoinhas, com a “viola no saco”,
com a “crista baixa” e, com “o semblante murcho”, dirigindo-se ao velho
“estadual”, com o fito de, outra vez, se matricular naquela série abandonada
inconclusa.
Portanto, conforme ele podia constatar, já àquela época, aquela
nova troca de folhinhas e calendários de 1979 para 1980, só traria de novidade,
um fevereiro com vinte e nove dias. Mas, nas cogitações de José Mário, ainda
não estava o retomar daquele fardo de paus, pedras e areia enxarcada que ele
por duas vezes largara pelo caminho, uma vez que, conforme se deu nas
tentativas anteriores, ainda se não apresentava para ele, uma motivação clara;
um objetivo concreto e palpável, que lhe ajudasse a responder as indagações de
há muito postas em suas elaborações: “para que”, “por quê” ainda insistir em levar
adiante um processo educativo formal, visto tal insistência ter se mostrado
inócua e, saliente-se, terem se esboroado tudo aquilo que ele houvera esperado
de tão infrutuosos esforços até ali envidados? Afinal, ele ainda tinha há não
muitos dias daquele novo janeiro, mais um rotundo revés em seu intento de se
fazer operário na indústria. A sua pretensão de vender a sua força de trabalho
desqualificada malogrou, diante de um grande número de fatores, sendo um dentre
eles, a crise geral no sistema fordista de
produção, que impulsionara a indústria brasileira até então. Por meio das
características de organização e funcionamento da produção industrial inerentes
ao referido sistema, os cegos eram aproveitados em alguns setores fabris,
mormente, naqueles onde a coordenação motora e a desenvoltura do candidato a
trabalhador eram prevalentes.
De tal sorte, no último dia do ano há pouco findo, ele se
deu conta, de forma crua e rude – mas não sem surpresa, por conta da
experiência anteriormente vivida, há apenas alguns meses -, que quase nada valeria
o fruto do seu esforço laboral, pois, a remuneração que receberia em troca,
sequer o permitiria morar em um pensionato, dos mais baratos de Salvador. Diante
daquela constatação, volta desolado para
a sua cidade e sem trazer quaisquer perspectiva de futuro. Em nada podia pensar
de plausível; em nada conseguia atinar que lhe parecesse exequível. Havia
acabado de voltar as costas para mais uma inserção no trabalho industrial que
pouco ou nada lhe acrescentaria a aquilo que se pudesse chamar de “experiência
laboral”, nem mesmo, insista-se, à manutenção mínima de uma pessoa solteira,
resultante da remuneração em forma de salário. O que faria: insistiria naquele
tipo de inserção precária? Saliente-se que, àquela altura, ele desconhecia
completamente os problemas estruturais que assolava o processo de
industrialização no Brasil em geral e, na Bahia, em particular, levando-o a
viver uma espécie de reviravolta conceitual, forçando o setor fabril a se
reorganizar, no que tange às suas bases estruturais, bem como dos elementos formadores da sua infraestrutura de organização e de funcionamento. Para ele, bem como para a maioria daqueles que participavam
daquela expectativa de vender a sua mão
de obra de tal venda, obter um salário, as propostas de trabalho que lhe
eram oferecidas pelo “Senai”, passava pela boa ou pela má vontade daquele
intermediador, em relação a este ou aquele intermediado. Logo, compreendia que
não houvera caído nas boas graças do homem do Senai, que decidia onde e quando
cada cego sob o seu “comando”, ocuparia uma das cada vez mais raras e sempre
mais precárias vagas disponibilizadas no já declinante parque industrial
baiano.
Ainda assim, enquanto ruminava tudo aquilo em seu cérebro, caminhava resoluto
em direção do “Estadual” – mas ainda sem saber ao certo, por que e/ou para quê
-, com a intenção de reiniciar pela terceira vez a sétima série do primeiro
grau. Para tanto, precisaria voltar ao balcão da secretaria daquele
estabelecimento escolar e, pedir ao seu titular, que lhe matriculasse outra vez,
para ver se, naquela oportunidade, enfim, ele cumpriria todo o calendário letivo, logrando
concluir a jornada por duas vezes abandonada. Tendo ingressado no prédio e se
dirigido ao local pretendido, fora recebido por seu Faustino, secretário que já
o conhecia de outras visitas, que prontamente atendera à sua demanda e, depois de
ter procurado a sua pasta, já encaminhada para o “arquivo morto” da escola, o
matriculara, indicando que em março as aulas teriam início, informando que ele
estaria entre os alunos que cursariam aquela série, no turno vespertino.
Retomadas as aulas em março, conforme o tempo passava e José
Mário se reajustava aos enfados de uma série outras vezes já cursadas, sem
falar na dissonância entre a série e a idade de quem a cursava, pouco a pouco procurara construir a estrada para nela trafegar, se não com mais facilidade, ao menos,
com mais conforto até o fechamento daquele processo pesado e moroso de
escolarização. Ele procurara se aproximar dos novos colegas, com o intuito de
permutar as experiências colegiais; da mesma maneira, buscou um interação mais
propositiva com os professores, com o objetivo de receber deles apoio e apontar
para eles a forma mais eficiente de desenvolver as atividades letivas com maior
proveito para ele e com maior possibilidade de uma avaliação confortável e
justa para aqueles.
Assim, José Mário passou a conversar com cada um dos seus novos
mestres, tendo resultados melhores com aquela procura de interação
aluno/professores. Com aquela que para ele era uma nova estratégia, José Mário acabou por entabular
uma relação de trabalho com a professora da sua temível matemática, que,, por
tão frutuosa, acabou ultrapassando o local e o tempo, sendo aquela professora
respeitada por ele e, tendo ganhado dela igual respeito, que perdura até os instantes
em que são escritas estas linhas. Ao se aproximar daquela professora, logo ele
foi dizendo que não só não sabia, como não gostava de matemática; entendendo,
contudo, que para avançar na seriação, seria preciso que ele fizesse um esforço
para ultrapassar aquela barreira que lhe já impedira o avanço por outras duas
vezes.
Compreensiva e dedicada, aquela professora se dispusera a
ajudar aquele desempertigado e resistente aluno, a ao menos, aprender o suficiente para prover o seu
necessário e desejado avanço. E assim se fez. Dissera ele que possuía uma
versão em Braille do livro “Matemática”, desenvolvido pelo professor Benedito
Castrucci (1909-1995). Disse para ela que sabia não ser aquele o compêndio adotado
para toda a turma, pelo que, solicitava que lhe desse alguma sugestão de uma
outra obra, que por meio dela, aquele aluno pudesse encontrar em Braille. Ela,
porém, o tranquilizara ao informar que, embora não fosse de fato aquela a obra
que adotara para o seu trabalho em sala de aula, ela a conhecia e possuía, assegurando que lhe poderia sim,
ajudar, com explicações extraclasse, feitas a partir da obra que o aluno tinha
acesso.
Nem é preciso dizer que a disposição daquela professora foi
uma “alavanca de Arquimedes” para aquele aluno, uma vez que o impulsionou para
a frente, no sentido de perceber que, com aquela disposição professoral, ele
precisaria procurar andar no mesmo passo, a fim de também fazer aquilo que lhe
era devido: esforçar-se para compreender aquelas abstrações envolvendo letras,
sinais, algarismos; álgebras, equações, inequações..., de forma que conseguisse
se fazer avançar naquilo que intentava: concluir o primeiro grau. E assim se
fez.
Algumas vezes tendo chegado em casa após uma tarde inteira
de aulas, logo e, imediatamente, José Mário precisaria se deslocar até a residência daquela
professora que se localizava no lado oposto ao seu lugar de residir,
aproximadamente a três quilômetros, que precisavam ser vencidos por meio de
transporte coletivo, de posse do volume em Braille, correspondente ao tema exposto,
para ali dirimir as inúmeras dúvidas que se lhe ficavam das engenhosidades
matemáticas por ela explicadas. Saliente-se, de passagem, que o problema não
estava na “explicadora” mas, sim, no “explicando”.
No entanto, ao realizar as primeiras avaliações, ia, pouco a
pouco, conseguindo obter notas intermediárias – pouco acima da média que
permitiria alcançar o êxito escolar - que, ao fim e ao cabo, lhe permitiria,
enfim, concluir aquela sétima série, pela terceira vez cursada. Tanto é assim
que, ao final de novembro, todos estavam ali na sala, para ouvir e conferir as
suas notas e médias, para saber se passariam direto ou, se, malgrado, ainda teriam
que enfrentar mais algumas semanas de recuperação. E, como todos os demais,
apesar de haver melhorado a sua compreensão e as suas notas, também José Mário
ali estava, ansioso por saber se, enfim, estava passado em matemática, visto
que, nas demais, possuía plena certeza de aprovação.
Sendo assim, ao entrar na sala onde se encontraria com os
demais estudantes para saber o que lhes esperava para os próximos dias, a
coordenadora disse que, os nomes que ali seriam lidos, eram os de tantos
quantos iriam para a recuperação. Os não lidos, por conseguinte, estariam já de
férias e passados para a oitava. Atento, José Mário acompanhava a leitura dos
nomes e, a coordenadora passa pela letra J, após ter lido alguns nomes com a
letra I, avançando para aqueles cujos nomes eram grafados com L. Como sempre,
ele fora muito reservado e sem expansividades. Depois de se assegurar que de fato
houvera passado enfim para a oitava, levantou-se e se foi, com aquela sensação
de que conseguira, ainda que com grande esforço tanto físico, quanto intelectual, ultrapassar aquela barreira
que por um bom tempo se lhe afigurara intransponível, invencível, inexpugnável.
Alagoinhas – 22 de março de 2025
Professor Jorge
Damasceno–
historiadorbaiano@gmail.com
Parabéns, professor! Interessante demais!
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