sábado, 22 de março de 2025

A SÉTIMA SÉRIE EM TRÊS TEMPOS III

– 1980: Ponto Final, depois de dois pontos parágrafos e algumas páginas em branco.

Retome-se aqui o caminhar daquele aluno em sua terceira investida no intento de prosseguir no seu esforço de vencer aquela série, por duas vezes deixada por concluir. Aqui, como nos textos anteriormente lidos neste espaço, a memória será evocada em socorro deste escrevente, uma vez que, é por meio das suas rememorações, que algumas ressignificações do passado a partir do presente fincados nas experiências posteriormente integradas às coisas lembradas, algumas das muitas situações vividas por aquele que a evoca, pode ser alvo das reflexões e de reinterpretações de quem as viveu e/ou, de quem possa ter tomado conhecimento com os elementos aqui recordados. Considerando apenas o subtítulo dado a este tratado, o leitor atento que vem caminhando a perscrutar os rastros deixados por José Mário nas sendas do seu processo educativo formal, deve estar a se perguntar, a onde está o ano de 1979, que não aparece neste escrito, uma vez que, a julgar pelo proposto na expressão que abre este arrazoado, aquele intervalo de trezentos e sessenta e cinco dias e noites que o compõem – longos e, por assim dizer, quase intermináveis, saliente-se - , foi omitido pelo seu autor.

Em parte o arguto leitor argumenta assertivamente, ao apontar o salto observado na construção do caminhar de José Mário, perturbado por um cipoal de pressupostos econômicos, culturais coletivos inerentes ao inter-relacionamento com a sociedade excludente em que estava “inserido”, ao qual ele precisaria fazer face, em meio a um emaranhado de raízes, caules, troncos e galhos – ainda verdes ou já secos há tempos – que se lhe procurava obstaculizar a passagem, o que o obrigava a empreender esforços braçais para abrir picadas, muitas delas ainda não palmilhadas por pés que precedessem aos seus. Foices, machados, picaretas ou facões, por inúmeras vezes, foram os seus instrumentos auxiliares na tarefa de aberturas de picadas em matas sociais espessas e, muitas vezes, quase inexpugnáveis. Ainda que entre temores e hesitações, sem tréguas para lamentar os fracassos, nem mesmo para contabilizar os ganhos, o que se havia era de enfrentar os desafios materiais e imateriais que constantemente lhe eram impostos, tanto ao corpo, quanto ao espírito.

No entanto, cabe destacar aqui, que a aludida omissão, não se deve a algum lapso de memória daquele que ora elabora este arrazoar. Trata-se, isto sim, de avançar “em busca” de desenrolar alguns dos fios formadores de um feixe de lembranças tecidas no transcurso dos tempos já pretéritos, que permitam compreender um processo iniciado três anos antes do “tempo” enunciado. Isto equivaleria dizer que, se pretende deixar aqui algumas páginas em branco como marco de um intervalo entre dois parágrafos, escritos nos arrazoados anteriores, páginas aliás, que, contraditoriamente, só estão em branco no texto que ora o leitor tem diante de si, uma vez que, algumas das “peripécias” de José Mário – no dizer de um dos mais assíduos leitores destes garatujares –, referentes ao ano aqui deliberadamente oculto, já foram abordadas no espaço virtual em que está hospedada esta publicação.

É assim que, nas páginas que se seguem, o leitor já encontrará José Mário retomando a sétima série pela terceira vez, dois anos após a ter abandonado em sua segunda tentativa de concluir, ou, como ele mesmo diria, se empenhar em  largar o pesado fardo de pedras no lugar a ele destinado, depois de ter deixado para trás, imerso em interrogações, um rio de matérias, temas e disciplinas que só lhe amofinava o cérebro, sem que ele pudesse saber “o que ali fazia”, nem para quê “tanto esforço dispendia”. Em suma, faltava um alvo a perseguir, para além daquele mais imediato, o concluir aquela série que já se lhe afigurava em franca decomposição e, passar para a seguinte. Mas, faltava saber o “para o quê” alcançar,  chegar no final daquele tão árduo  mourejar, em terreno tão áspero, quanto árido.

Desta forma, tendo passado todo o ano anterior em que procurara virar definitivamente a página do processo de escolarização formal, inscrevendo-se entre os cegos que se dirigiam ao Senai de Salvador, em busca de aproveitamento de sua mão de obra na já decadente indústria soteropolitana,  depois de ter patinado em tal empreitada, ei-lo de volta a Alagoinhas, com a “viola no saco”, com a “crista baixa” e, com “o semblante murcho”, dirigindo-se ao velho “estadual”, com o fito de, outra vez, se matricular naquela série abandonada inconclusa.

Portanto, conforme ele podia constatar, já àquela época, aquela nova troca de folhinhas e calendários de 1979 para 1980, só traria de novidade, um fevereiro com vinte e nove dias. Mas, nas cogitações de José Mário, ainda não estava o retomar daquele fardo de paus, pedras e areia enxarcada que ele por duas vezes largara pelo caminho, uma vez que, conforme se deu nas tentativas anteriores, ainda se não apresentava para ele, uma motivação clara; um objetivo concreto e palpável, que lhe ajudasse a responder as indagações de há muito postas em suas elaborações: “para que”, “por quê” ainda insistir em levar adiante um processo educativo formal, visto tal insistência ter se mostrado inócua e, saliente-se, terem se esboroado tudo aquilo que ele houvera esperado de tão infrutuosos esforços até ali envidados? Afinal, ele ainda tinha há não muitos dias daquele novo janeiro, mais um rotundo revés em seu intento de se fazer operário na indústria. A sua pretensão de vender a sua força de trabalho desqualificada malogrou, diante de um grande número de fatores, sendo um dentre eles,  a crise geral no sistema fordista de produção, que impulsionara a indústria brasileira até então. Por meio das características de organização e funcionamento da produção industrial inerentes ao referido sistema, os cegos eram aproveitados em alguns setores fabris, mormente, naqueles onde a coordenação motora e a desenvoltura do candidato a trabalhador eram prevalentes.

De tal sorte, no último dia do ano há pouco findo, ele se deu conta, de forma crua e rude – mas não sem surpresa, por conta da experiência anteriormente vivida, há apenas alguns meses -, que quase nada valeria o fruto do seu esforço laboral, pois, a remuneração que receberia em troca, sequer o permitiria morar em um pensionato, dos mais baratos de Salvador. Diante daquela constatação,  volta desolado para a sua cidade e sem trazer quaisquer perspectiva de futuro. Em nada podia pensar de plausível; em nada conseguia atinar que lhe parecesse exequível. Havia acabado de voltar as costas para mais uma inserção no trabalho industrial que pouco ou nada lhe acrescentaria a aquilo que se pudesse chamar de “experiência laboral”, nem mesmo, insista-se, à manutenção mínima de uma pessoa solteira, resultante da remuneração em forma de salário. O que faria: insistiria naquele tipo de inserção precária? Saliente-se que, àquela altura, ele desconhecia completamente os problemas estruturais que assolava o processo de industrialização no Brasil em geral e, na Bahia, em particular, levando-o a viver uma espécie de reviravolta conceitual, forçando o setor fabril a se reorganizar, no que tange às suas bases  estruturais, bem como dos elementos formadores da sua infraestrutura de organização e de funcionamento. Para ele, bem como para a maioria daqueles que participavam daquela expectativa de vender a sua mão  de obra de tal venda, obter um salário, as propostas de trabalho que lhe eram oferecidas pelo “Senai”, passava pela boa ou pela má vontade daquele intermediador, em relação a este ou aquele intermediado. Logo, compreendia que não houvera caído nas boas graças do homem do Senai, que decidia onde e quando cada cego sob o seu “comando”, ocuparia uma das cada vez mais raras e sempre mais precárias vagas disponibilizadas no já declinante parque industrial baiano.

Ainda assim, enquanto ruminava  tudo aquilo em seu cérebro, caminhava resoluto em direção do “Estadual” – mas ainda sem saber ao certo, por que e/ou para quê -, com a intenção de reiniciar pela terceira vez a sétima série do primeiro grau. Para tanto, precisaria voltar ao balcão da secretaria daquele estabelecimento escolar e, pedir ao seu titular, que lhe matriculasse outra vez, para ver se, naquela oportunidade, enfim, ele cumpriria todo o calendário letivo, logrando concluir a jornada por duas vezes abandonada. Tendo ingressado no prédio e se dirigido ao local pretendido, fora recebido por seu Faustino, secretário que já o conhecia de outras visitas, que prontamente atendera à sua demanda e, depois de ter procurado a sua pasta, já encaminhada para o “arquivo morto” da escola, o matriculara, indicando que em março as aulas teriam início, informando que ele estaria entre os alunos que cursariam aquela série, no turno vespertino.

Retomadas as aulas em março, conforme o tempo passava e José Mário se reajustava aos enfados de uma série outras vezes já cursadas, sem falar na dissonância entre a série e a idade de quem a cursava, pouco a pouco procurara construir a estrada para nela trafegar, se não com mais facilidade, ao menos, com mais conforto até o fechamento daquele processo pesado e moroso de escolarização. Ele procurara se aproximar dos novos colegas, com o intuito de permutar as experiências colegiais; da mesma maneira, buscou um interação mais propositiva com os professores, com o objetivo de receber deles apoio e apontar para eles a forma mais eficiente de desenvolver as atividades letivas com maior proveito para ele e com maior possibilidade de uma avaliação confortável e justa para aqueles.

Assim, José Mário passou a conversar com cada um dos seus novos mestres, tendo resultados melhores com aquela procura de interação aluno/professores. Com aquela que para ele era uma nova estratégia, José Mário acabou por entabular uma relação de trabalho com a professora da sua temível matemática, que,, por tão frutuosa, acabou ultrapassando o local e o tempo, sendo aquela professora respeitada por ele e, tendo ganhado dela igual respeito, que perdura até os instantes em que são escritas estas linhas. Ao se aproximar daquela professora, logo ele foi dizendo que não só não sabia, como não gostava de matemática; entendendo, contudo, que para avançar na seriação, seria preciso que ele fizesse um esforço para ultrapassar aquela barreira que lhe já impedira o avanço por outras duas vezes.

Compreensiva e dedicada, aquela professora se dispusera a ajudar aquele desempertigado e resistente aluno, a ao menos, aprender o suficiente para prover o seu necessário e desejado avanço. E assim se fez. Dissera ele que possuía uma versão em Braille do livro “Matemática”, desenvolvido pelo professor Benedito Castrucci (1909-1995). Disse para ela que sabia não ser aquele o compêndio adotado para toda a turma, pelo que, solicitava que lhe desse alguma sugestão de uma outra obra, que por meio dela, aquele aluno pudesse encontrar em Braille. Ela, porém, o tranquilizara ao informar que, embora não fosse de fato aquela a obra que adotara para o seu trabalho em sala de aula, ela a conhecia e  possuía, assegurando que lhe poderia sim, ajudar, com explicações extraclasse, feitas a partir da obra que o aluno tinha acesso.

Nem é preciso dizer que a disposição daquela professora foi uma “alavanca de Arquimedes” para aquele aluno, uma vez que o impulsionou para a frente, no sentido de perceber que, com aquela disposição professoral, ele precisaria procurar andar no mesmo passo, a fim de também fazer aquilo que lhe era devido: esforçar-se para compreender aquelas abstrações envolvendo letras, sinais, algarismos; álgebras, equações, inequações..., de forma que conseguisse se fazer avançar naquilo que intentava: concluir o primeiro grau. E assim se fez.

Algumas vezes tendo chegado em casa após uma tarde inteira de aulas, logo e, imediatamente, José Mário precisaria se deslocar até a residência daquela professora que se localizava no lado oposto ao seu lugar de residir, aproximadamente a três quilômetros, que precisavam ser vencidos por meio de transporte coletivo, de posse do volume em Braille, correspondente ao tema exposto, para ali dirimir as inúmeras dúvidas que se lhe ficavam das engenhosidades matemáticas por ela explicadas. Saliente-se, de passagem, que o problema não estava na “explicadora” mas, sim, no “explicando”.

No entanto, ao realizar as primeiras avaliações, ia, pouco a pouco, conseguindo obter notas intermediárias – pouco acima da média que permitiria alcançar o êxito escolar - que, ao fim e ao cabo, lhe permitiria, enfim, concluir aquela sétima série, pela terceira vez cursada. Tanto é assim que, ao final de novembro, todos estavam ali na sala, para ouvir e conferir as suas notas e médias, para saber se passariam direto ou, se, malgrado, ainda teriam que enfrentar mais algumas semanas de recuperação. E, como todos os demais, apesar de haver melhorado a sua compreensão e as suas notas, também José Mário ali estava, ansioso por saber se, enfim, estava passado em matemática, visto que, nas demais, possuía plena certeza de aprovação.

Sendo assim, ao entrar na sala onde se encontraria com os demais estudantes para saber o que lhes esperava para os próximos dias, a coordenadora disse que, os nomes que ali seriam lidos, eram os de tantos quantos iriam para a recuperação. Os não lidos, por conseguinte, estariam já de férias e passados para a oitava. Atento, José Mário acompanhava a leitura dos nomes e, a coordenadora passa pela letra J, após ter lido alguns nomes com a letra I, avançando para aqueles cujos nomes eram grafados com L. Como sempre, ele fora muito reservado e sem     expansividades. Depois de se assegurar que de fato houvera passado enfim para a oitava, levantou-se e se foi, com aquela sensação de que conseguira, ainda que com grande esforço tanto físico, quanto intelectual, ultrapassar aquela barreira que por um bom tempo se lhe afigurara intransponível, invencível, inexpugnável.

 

Alagoinhas – 22 de março de 2025

 

Professor Jorge Damasceno–

historiadorbaiano@gmail.com 

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