A transição – IV.
Não obstante os arrazoados
aqui postados se enquadrarem naquilo que se poderia denominar de “História do
presente”, bem como a sua substância elementar estar situada na memória, o “Tempo
presente” é o seu eixo monumental, indicando que as camadas que foram
levantadas pelo indivíduo que lembra, o foram de modo aa atender ao estímulo
produzido pelo pertencimento à sociedade que fornece o instrumental
indispensável para que tais lembranças possam ser ativadas, permitindo ao ser que
lembra, dispô-los de tal forma que seja possível reconstituir aquele passado no
qual estavam mergulhadas situações, circunstâncias, sensações e movimentos que
marcaram o seu transitar no cotidiano vivido em um tempo já há muito mergulhado
na profundeza daquela história que se quer rememorar, ao menos, alguma faceta que
dela emerge do esquecimento e/ou do silenciamento. “A memória introduz o passado no presente sem modificá-lo,
mas necessariamente atualizando-o; é preciso
considerar atentamente que o passado é
por via de regra plural, um pulsar da descontinuidade. [...].” (SEIXAS, 2001, p. 50). Mobilizar camadas do passado já cobertas por outras
muitas que foram acumuladas ao longo do tempo e trazê-las para a superfície,
implica em um exercício de estimulação daquelas lembranças que farão o
construto de um rememorar expresso no falar e/ou no escrever. Conforme
preconiza Bosi em sua “Memória e sociedade: lembranças de Velhos”: “Por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que
recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só
para ele, significativos dentro de um
tesouro comum” (BOSI, 1994, p. 411).
É neste sentido que se pretende desenvolver mais este
arrazoado que tem José Mário, uma vez mais como protagonista, quando se dispõe
a percorrer o caminho que o poderá conduzir à Faculdade de Formação de
Professores de Alagoinhas, para ali, desenvolver o processo que, concluído,
fará dele um professor de História. Nele, se inscreve a sua busca por melhorar
as suas condições de competitividade, na medida em que procurará meios e
pessoas que o possam ajudar a percorrer mais esta etapa. Imbuído deste
propósito, ele começa a imaginar por quais áreas precisaria enfrentar as fragilidades formativas,
no intento de abarcar ao menos os aspectos delas seria preciso atacar de
imediato.
Portanto, vencidas as primeiras etapas daquela caminhada,
era preciso seguir, indo mais além, entendendo-se
com aqueles professores que pudessem contribuir com ele, agora em um capo mais
prático, visto que a sua defasagem era muito grande em todas as áreas do saber,
mormente, naquelas em que envolviam as “Ciências duras”: matemática, química,
física, biologia, visto serem os seus desempenhos bem fracos nelas e que,
precisaria pontuar minimamente, para compensar naquelas outras em que ele tivera
um aproveitamento melhor e, cujo peso – que ele sequer entendia o que seria aquilo
– era maior, no momento da avaliação correspondente à área escolhida.
Não obstante José Mário conhecer alguns professores de boa
qualidade e de boa índole que trabalhavam com as ciências exatas, ele não
possuía relações de amizade com qualquer deles; ou, aquele poucos que se disporiam
a emprestar-lhe tempo e suporte naquele campo, estavam impedidos de o fazer, dado
aos seus afazeres profissionais e pessoais – além da distância entre os seus
lugares de morada, bem como a falta de meios que propiciasse o deslocamento -, o
que obstaculizavam o atendimento daquele aluno em sua necessidade objetiva de
reduzir o fosso entre o que ele aprendera no transcurso regular do seu processo
escolar e, aquilo que precisaria aprender e apreender, visando a feitura das
provas vestibulares.
Quanto ao campo das ciências humanas, ele se propôs a
realizar estudos/leituras solo, aproveitando uma razoável publicação de livros
em Braille que abarcava minimamente a produção do conhecimento pertinente
àquela área. História, geografia e afins, era possível de obter em Braille,
mediante solicitação à Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Para realizar
aquele tipo de estudo, José Mário se obrigava a uma disciplina e a uma rotina,
de modo a se manter constante no objetivo que se propôs a alcançar.
Entretanto, ele não se sentiu seguro em levar a cabo um
estudo solo da língua portuguesa, da sua gramática e da sua literatura. Para aquela
tarefa, ele pode contar com o préstimo valiosíssimo da sua professora no
Estadual em algumas das suas fases de escolarização. Era a professora Edna
Garcia Batista (1945-2017), que não só se prontificou a partilhar com José Mário
os seus vastos e sólidos conhecimentos da matéria, como o recebera em sua casa
para lhe proporcionar aquelas lições que foram tão úteis, não só para o
vestibular, como também para a vida pessoal e acadêmica futura. Munido de uma
gramática que possuía transcrita em Braille, nos dias aprazados e nas longas
tardes quentes de dezembro de 1985 e de janeiro do ano seguinte, ele comparecia
para as aulas da mestre que, evidentemente não estava limitada a uma única
gramática como ele, mas apresentava os conteúdos com a leveza de quem dominava o
idioma e a literatura que largamente o fazia compreender. Nem é preciso dizer
que aquelas aulas foram de grande valia para aquele estudante frágil em seu acúmulo
propedêutico, na medida em que possibilitou o seu bom desempenho nas provas
relacionadas ao conteúdo cobrado nas questões de língua e literatura, quanto
nas construção do texto redacional correspondente àquele certame.
Assim, entre bons goles de café e excelente pão fresco
oriundo das mãos do senhor Lourival, seu marido, as aulas fluíam agradáveis, malgrado
o calor quase sufocante que se procurava minimizar com ventiladores tão quentes
quanto o ambiente. Seria interessante notar que não assoma à lembrança deste
garatujador, a ocorrência daquelas chuvas quase devastadoras, comuns na
Alagoinhas daquela época do ano. O que indica não ter havido qualquer
intercorrência que exigisse a suspensão daquelas agradáveis tardes de excelente
companhia e de grande aprendizagem.
Alagoinhas – 26 de outubro de 2025 – primavera brasileira.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com