domingo, 26 de outubro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte IV.

 

A transição – IV.

 

Não obstante os arrazoados aqui postados se enquadrarem naquilo que se poderia denominar de “História do presente”, bem como a sua substância elementar estar situada na memória, o “Tempo presente” é o seu eixo monumental, indicando que as camadas que foram levantadas pelo indivíduo que lembra, o foram de modo aa atender ao estímulo produzido pelo pertencimento à sociedade que fornece o instrumental indispensável para que tais lembranças possam ser ativadas, permitindo ao ser que lembra, dispô-los de tal forma que seja possível reconstituir aquele passado no qual estavam mergulhadas situações, circunstâncias, sensações e movimentos que marcaram o seu transitar no cotidiano vivido em um tempo já há muito mergulhado na profundeza daquela história que se quer rememorar, ao menos, alguma faceta que dela emerge do esquecimento e/ou do silenciamento. “A memória introduz o passado no presente sem modificá-lo, mas  necessariamente atualizando-o; é preciso considerar atentamente que o  passado é por via de regra plural, um pulsar da descontinuidade. [...].” (SEIXAS, 2001, p. 50). Mobilizar  camadas do passado já cobertas por outras muitas que foram acumuladas ao longo do tempo e trazê-las para a superfície, implica em um exercício de estimulação daquelas lembranças que farão o construto de um rememorar expresso no falar e/ou no escrever. Conforme preconiza Bosi em sua “Memória e sociedade: lembranças de Velhos”: “Por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso  pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro  de um tesouro comum” (BOSI, 1994, p. 411).

É neste sentido que se pretende desenvolver mais este arrazoado que tem José Mário, uma vez mais como protagonista, quando se dispõe a percorrer o caminho que o poderá conduzir à Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, para ali, desenvolver o processo que, concluído, fará dele um professor de História. Nele, se inscreve a sua busca por melhorar as suas condições de competitividade, na medida em que procurará meios e pessoas que o possam ajudar a percorrer mais esta etapa. Imbuído deste propósito, ele começa a imaginar por quais áreas  precisaria enfrentar as fragilidades formativas, no intento de abarcar ao menos os aspectos delas seria preciso atacar de imediato.

Portanto, vencidas as primeiras etapas daquela caminhada, era preciso seguir, indo  mais além, entendendo-se com aqueles professores que pudessem contribuir com ele, agora em um capo mais prático, visto que a sua defasagem era muito grande em todas as áreas do saber, mormente, naquelas em que envolviam as “Ciências duras”: matemática, química, física, biologia, visto serem os seus desempenhos bem fracos nelas e que, precisaria pontuar minimamente, para compensar naquelas outras em que ele tivera um aproveitamento melhor e, cujo peso – que ele sequer entendia o que seria aquilo – era maior, no momento da avaliação correspondente à área escolhida.

Não obstante José Mário conhecer alguns professores de boa qualidade e de boa índole que trabalhavam com as ciências exatas, ele não possuía relações de amizade com qualquer deles; ou, aquele poucos que se disporiam a emprestar-lhe tempo e suporte naquele campo, estavam impedidos de o fazer, dado aos seus afazeres profissionais e pessoais – além da distância entre os seus lugares de morada, bem como a falta de meios que propiciasse o deslocamento -, o que obstaculizavam o atendimento daquele aluno em sua necessidade objetiva de reduzir o fosso entre o que ele aprendera no transcurso regular do seu processo escolar e, aquilo que precisaria aprender e apreender, visando a feitura das provas vestibulares.

Quanto ao campo das ciências humanas, ele se propôs a realizar estudos/leituras solo, aproveitando uma razoável publicação de livros em Braille que abarcava minimamente a produção do conhecimento pertinente àquela área. História, geografia e afins, era possível de obter em Braille, mediante solicitação à Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Para realizar aquele tipo de estudo, José Mário se obrigava a uma disciplina e a uma rotina, de modo a se manter constante no objetivo que se propôs a alcançar.

Entretanto, ele não se sentiu seguro em levar a cabo um estudo solo da língua portuguesa, da sua gramática e da sua literatura. Para aquela tarefa, ele pode contar com o préstimo valiosíssimo da sua professora no Estadual em algumas das suas fases de escolarização. Era a professora Edna Garcia Batista (1945-2017), que não só se prontificou a partilhar com José Mário os seus vastos e sólidos conhecimentos da matéria, como o recebera em sua casa para lhe proporcionar aquelas lições que foram tão úteis, não só para o vestibular, como também para a vida pessoal e acadêmica futura. Munido de uma gramática que possuía transcrita em Braille, nos dias aprazados e nas longas tardes quentes de dezembro de 1985 e de janeiro do ano seguinte, ele comparecia para as aulas da mestre que, evidentemente não estava limitada a uma única gramática como ele, mas apresentava os conteúdos com a leveza de quem dominava o idioma e a literatura que largamente o fazia compreender. Nem é preciso dizer que aquelas aulas foram de grande valia para aquele estudante frágil em seu acúmulo propedêutico, na medida em que possibilitou o seu bom desempenho nas provas relacionadas ao conteúdo cobrado nas questões de língua e literatura, quanto nas construção do texto redacional correspondente àquele certame.

Assim, entre bons goles de café e excelente pão fresco oriundo das mãos do senhor Lourival, seu marido, as aulas fluíam agradáveis, malgrado o calor quase sufocante que se procurava minimizar com ventiladores tão quentes quanto o ambiente. Seria interessante notar que não assoma à lembrança deste garatujador, a ocorrência daquelas chuvas quase devastadoras, comuns na Alagoinhas daquela época do ano. O que indica não ter havido qualquer intercorrência que exigisse a suspensão daquelas agradáveis tardes de excelente companhia e de grande aprendizagem.

 

Alagoinhas – 26 de outubro de 2025 – primavera brasileira.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 19 de outubro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte III.

A transição – III.

 

Evocando a professora Ecléa Bosi (1936-2017),é possível asseverar que a memória trazida aqui para estes escritos está fincada naquilo que ela entende como sendo “[...], a lembrança pura”, pois ela aparece “[...] quando se atualiza na  imagem-lembrança” e, portanto, “[...], traz à tona da consciência um momento único, singular,. _não repetido, _irreversível, da vida. Daí, também, o caráter não  mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento por via da memória. [...]. “[...]. A imagem-lembrança tem data certa:  refere-se a uma situação definida, individualizada, [...]”. (BOSI, 1994, p. 49). Este posicionamento de Bosi está fundamentado em Halbwachs (1877-1945), que em sua “Memória Coletiva” considera que “Para confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível.”. Algumas linhas abaixo ele reforça a proposição, indicando que “[...]. Uma ou muitas pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a seqüência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso. [...].” (HALBWACHS, 2006, P. 31). No entanto, ao trazer o passado para o presente, mediante a evocação daquelas lembranças que ainda se podem evocar, ainda que fragmentadas e, em parte reconstruídas por quem lembra, é possível elaborar um rememorar consistente de eventos e circunstâncias vividos naquele passado evocado, a partir de elementos do presente em que o texto é escrito.

É nesta perspectiva que se pretende continuar a discorrer sobre o processo de transição entre o então segundo grau e a busca de José Mário por ingressar no ensino superior, que se vem abordando há já um par de textos postados neste espaço virtual de leitura e reflexão. Neles, se procurou apresentar algumas das estreitas margens do seu viver que o limitava em suas tomadas de decisão a tal respeito. Também ali, se procurou demonstrar que, embora ele tivesse consciência dos limites que social e economicamente a vida lhe impunha, recebera de alguns dos seus poucos amigos a oferta de apoio, no sentido de lhe propiciar alguns meios para fazer face a elas, em caso de partir para o enfrentamento das condições postas, com vistas a fazer o percurso até o curso de licenciatura em História, que, uma vez integralizado, acabaria por o tornar professor.

Chegara outubro e com ele o espraiar dos ares primaveris. O farfalhar das folhas ao ventos, o chilrear dos muitos pássaros nas árvores já frutificando, os aromas da aurora enchendo os pulmões de frescor indizível, dava ao viajor os sinais de que o raiar do dia se fazia já em pleno desabrochar, convidando os operários, as que laboravam nos rios e os estudantes do matutino para que se levantassem e rumassem para os seus espaços de labutas diárias. Como não poderia deixar de ser, José Mário, acordado por volta das cinco da manhã de um daqueles dias de outubro de 1985, se dirigia para o “Estadual”, fazendo o trajeto da sua casa até o estabelecimento de ensino, caminhando pela rua 2 de julho, por vezes, recebia carona na carroceria de uma chevrolet C10, pertencente a um pai que levava as filhas para o mesmo local, seguindo pela Severino Vieira, atravessando a rua Luiz Vianna Filho e a rua Juracy Magalhães, para mais à frente virar a esquerda na rua 21 de abril, alcançando por fim o então debutante “Estadual”. Tendo ali chegado, ao descer do veículo, agradecia a gentileza do seu proprietário e ingressava no Centro Integrado Luiz Navarro de Brito, para participar das aulas e, após o seu término, dali sair para se dirigir até o prédio onde funcionava a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, espaço que algumas vezes visitara no intuito de fazer uso da biblioteca mas, que daquela vez, ali chegara para fazer a sua inscrição no vestibular, candidatando-se ao curso de Licenciatura Plena em História.

Tendo ali chegado e, se dirigido ao local onde se processavam os trabalhos de inscrição para o dito certame, José Mário teve que ser encaminhado para uma conversa com o professor José Sales– já seu conhecido por conta da sua efêmera passagem pela Primeira Igreja Batista de Alagoinhas –, professor da instituição, que presidia a comissão encarregada daquela tarefa, sem que, no entanto,  ele atinasse a razão ou a necessidade daquela entrevista, uma vez que, ao se apresentar como candidato, já levara a documentação exigida para tanto e, o recurso monetário com o qual ele pagaria a taxa referente ao seu pleito. Mal poderia imaginar que, aquela seria uma sinalização de que, em caso de aprovação, ele enfrentaria inúmeras turbulências durante o processo formativo para o qual pretendia percorrer.

José Mário saiu da tal entrevista com a sensação de que aquele lugar não seria para ele, nem para pessoas outras que causassem algum mal-estar na condução de processo de aprendizagem, provocando uma espécie de “quebra de paradigma”, no que respeita ao modo de funcionamento da engrenagem há tempos consolidada. Talvez, o “mal-estar”, não tenha sido provocado necessariamente pela sua condição econômica, tampouco pela sua origem social. Mas sim, a sua condição de cegueira, acabara pôr os assustar, por assim dizer, uma vez que, imaginavam – embora nunca tenham dito –, não estariam prontos para o receber enquanto aluno. Afinal, a escola, independentemente do nível de ensino em que esteja inserida, é um espaço de exclusão de tantos quantos não vejam, não ouçam/falem, não tenham o pleno desfrute dos movimentos ou, não tenham um ritmo cognitivo compatível com o que se considera “normal” ao ser humano. Como já é cediço – ou deveria sê-lo –, tanto na sua compleição orgânica, quanto no seu modo de funcionamento, a escola não foi feita para estes tipos acima apontados – basta prestar a devida atenção aos elementos constitutivos inerentes à escola: professora escrevendo no quadro para alunos copiarem em cadernos; ou falando para alunos ouvirem; leituras passivas e/ou ativas; respostas pedidas e recebidas em um tempo breve; aferições de aprendizagem alinhadas a determinados padrões de raciocínio e compreensão do ensinado, tudo isto em um ritmo estipulado. Ao contrário: ela foi feita para quem goza do funcionamento “normal” e pleno de todos os sentidos, para aqueles que não possuem restrições de mobilidade e, para quem pensa, raciocina e racionaliza, dentro de uma “caixa” inscrita no campo da “normalidade”. Logo, aquele candidato a aluno já chega causando preocupações àqueles que eram os responsáveis por solicitar ao órgão elaborador das provas e do material a ser utilizado no processo de execução do certame seletivo, visto não terem a menor ideia de como proceder. Aliás, fora está a motivação alegada para a tal conversa em separado com a comissão, o que lhe causara espécie, uma vez que, em sua cabeça não passava a ideia de que aqueles professores, alocados no ensino superior, trouxesse aquele vácuo de conhecimento do modo como deveria conduzir atividade docência, independentemente do aluno naquele que ingressasse naquele nível de formação.

Enfim, ultrapassado este primeiro obstáculo – ainda que à época não tenha sido percebido como tal –, a candidatura foi devidamente registrada e, José Mário, a partir daquela data, haveria que empreender esforços para alcançar uma preparação, ainda que mínima e precária, que não viesse a frustrar, não só a sua própria expectativa mas, também, a daquelas pessoas que depositaram crédito em sua capacidade de luta e de esforço para encarar mais aquele desafio. Era, portanto, o tempo de procurar encontrar pessoas que lhe pudessem auxiliar na redução de danos, quais sejam: ao falta dos rudimentos mais elementares que deveriam ter sido estabelecidos no transcurso do Segundo Grau e, que, para ele, estava bem aquém daquilo que ele precisava para obter o desempenho, ao menos suficiente para se fazer aprovar naquela empreitada em que ele já chegava com uma grande defasagem em relação a uma boa parte dos candidatos.

 

Alagoinhas, 19 de outubro  de 2025 – primavera brasileira.

José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 12 de outubro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte II.

A transição – II.

 

Retomando a escrita iniciada há alguns dias, quando se discorreu sobre o primeiro momento em que se iniciava uma transição marcada pelos lapsos de ideias que se afiguravam no cérebro do protagonista destes garatujares, em que se cogitava um novo caminhar que partiria da conclusão do ensino médio para se fazer ingressar no ensino superior, aqui se procurará dar continuidade ao arrazoado que deu início à série que o paciente leitor ora tem diante de si, na qual o seu autor se disporá a discorrer sobre o tempo em que José Mário passava a conjecturar sobre qual seria a maneira por meio da qual se prepararia  para o processo seletivo, a partir do qual se imiscuiria no processo de formação superior, que o faria preparado para se tornar professor – ao menos, era este o propósito de um curso de licenciatura -, fornecendo a ele – bem como aos demais discentes –,  as ferramentas para a inserção no labor escolar. Era um “tempo” de decisões que repercutiriam por toda a sua vida, ensejando aquilo que para José Mário seria uma “virada de chave” – como se diz – para o caminhar sinuoso que vinha se delineando, o que o obrigaria procurar fazer daquele decidir, um momento definitivo de afirmação, tanto enquanto cidadão do mundo, como enquanto alguém que buscava se preparar para construir e desenvolver uma vida profissional.

Em conformidade com o postulado de Jacques Le Goff, (1924-2014), ao desenvolver verbete para a enciclopédia Einaudi, publicado no Brasil em  forma de livro pela editora da Unicamp, no qual assevera que “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1996, p. 423), é que este escrevente procurará levantar algumas camadas já bastante espessas acumuladas há um bom já passar de tempos, intentando trazer alguns fragmentos de lembranças com os quais possa revisitar aquele passado que aqui se pretende evocar.

No arrazoado anterior, José Mário foi deixado ao sabor dos seus pensamentos, quando cogitava sobre o que fazer após concluir aquele excessivamente longo ciclo formativo, quando as ideias e as hipóteses bailavam em seu cérebro, assim como a maneira como tal ou qual possibilidade se encaminharia. O terceiro ano do segundo grau se desenrolava sem grandes tropeços ou percalços e o seu desfecho acabara por se dar em conformidade com o que seria recomendável, noves fora um pequeno susto causado por uma greve professoral deflagrada quase no fim do ano letivo, cuja consequência para o alunado foi a postergação da colação de grau por alguns dias e, consequente adiamento da entrega dos certificados comprobatórios da conclusão de curso. Fora este pequeno incidente de ordem institucional, nada mais houve que viesse a obstar aquele fim de processo.

Mas, fora deste transcorrer de caminhada escolar formal, havia que se encetar gestões no sentido de dar largas aos novos pensamentos que lhe brotaram com o intuito de viabilizar a preparação para as outras etapas do seu processo formativo. Neste sentido, convinha encontrar as pessoas e os meios para que ele pudesse fazer frente ao novo caminhar.

Portanto, era preciso considerar que, àquela altura do seu caminhar processual,  a José Mário faltava tudo: as bases elementares para o enfrentamento de um vestibular, em condições mínimas de aprovação – rudimentos matemáticos, de física, de química, de biologia, conhecimentos em diversas outras áreas que, ao concluir o segundo grau, ele já deveria possuir, entre outras deficiências formativas –; de sorte que a sua investida não fosse vã e frustrante, uma vez que, como se já salientou, a sua idade já se fazia avançar, no sentido de iniciar e concluir mais uma etapa de preparação para o mercado de trabalho – os dispositivos legais em vigor naquele instante de sua vida, indicavam que a realização de concurso público só seria possível até os trinta anos completos –, o que insidia em mais pressão sobre aquele rapaz que em breve, entraria no início do seu segundo quartel de existência. Também, a ele faltavam os recursos financeiros que lhe permitissem ingressar em algum curso pré-vestibular; que lhe permitisse uma eventual contratação de professor para uma ou duas matérias específicas; recursos tiflológicos que lhe permitissem  aceder às matérias por meio do sistema Braille, no sentido de lhe propiciar uma maior e melhor apreensão dos conteúdos propedêuticos necessários à obtenção de êxito naquela empreitada – sem falar que não possuía nem mesmo a grana para a inscrição no dito cujo. Mas, ele também não dispunha de um espaço adequado para a realização de leituras/estudos dos livros e matérias propostas, o que dificultava um pouquinho mais a sua preparação. Era, pois, um tempo de escassez de quase tudo; até mesmo dos meios para a sua manutenção cotidiana, o que obrigava a reduzir ao factível as possíveis ambições; o que limitava até mesmo os sonhares, na medida em que, apesar de sonhar não haver custo, ele estava sujeito à possibilidade de se fazer frente ao custo de sua realização. Talvez, seja preciso lembrar ao arguto leitor que, tudo isto atuava como elemento limitador e, mesmo, inibidor para qualquer intento de ser isto, fazer aquilo..., enfim, se fazer “homem”, conforme entendia a sua genitora: ter com que se manter.

Conforme o leitor pode perceber, aquele pretenso vestibulando estava fadado ao fracasso ou à desistência, devido à falta das condições normais de pressão e temperatura, no tempo em que estava inserido o seu caminhar terráqueo. Mas, ao que parece, a palavra “desistência” não era de emprego comum para aquele sujeito teimoso, nem o verbo “desistir” era facilmente conjugado por ele, embora esta parte da gramática ele dominasse bem. Acredita-se que precisaria mesmo conjugar o verbo “insistir”, pois, outra conjugação, saliente-se, não seria do seu feitio, visto ser aquele conjugar uma necessidade presente e constante no seu trilhar da vida formativa. Assim pensando, estava ele assim fazendo. enquanto o ano de 1985 corria célere, ele entabulava conversas com os seus poucos amigos, que logo se dispuseram a caminhar com ele aquela jornada. Um deles, garantira-lhe o recurso necessário para a feitura da inscrição e outra, dedicara-lhe tempo e paciência para que ele pudesse dirimir dúvidas e aprender o que desconhecia sobre a língua portuguesa e a literatura, campo em que, embora fosse excelente e profuso leitor –de acordo com o que já se arrazoou em escritos pretéritos –, carecia de conhecimentos teóricos que lhe fizessem compreender os elementos formadores e norteadores do fazer literário: escolas, formatos, modos de composição, entre outras características que, certamente, seriam cobradas em forma de questões e, que ele, não saberia responder adequada e corretamente. De sorte que, enquanto se empenhava em concluir o segundo grau, paralelamente, ele se esforçava por obter uma preparação, ainda que mínima, para se submeter à seleção que, sendo aprovado, o levaria  ingressar em um curso de grau superior.

Para concluir estes garatujares, cabe salientar que algum vento também lhe soprara a favor, na medida em que a oferta dos cursos a serem disputados naquele próximo exame, trouxera uma boníssima novidade. No arrazoado anterior, foi comentado que o curso que lhe era possível postular em sua cidade, o que não demandaria custos extraorçamentários para o seu acompanhamento, era o de Licenciatura Curta em Estudos Sociais, o que lhe provocara alguma resistência em se candidatar, visto ser aquele, um curso inventado/imposto pela Ditadura Militar que se impusera ao País, mediante golpe perpetrado em abril de 1964 e, que para ele, soava como incongruente, na medida em que o seu objetivo era impedir que a História, a Filosofia e a Sociologia – pretensamente embutidas  naquela matéria draconiana –, viesse a criar um espírito crítico nos estudantes – ou amortecer a criticidade naquele que eventualmente já a possuísse. No entanto, começara a correr entre os concluintes do segundo grau e, claro, chegara até ele, o boato que, na verdade, aquele curso de Estudos sociais, em forma de licenciatura curta – com uma duração de dois anos e meio, provocando a necessidade de uma complementação, o que só se daria em Feira de Santana –, seria substituído pelo curso de História, com duração plena. Imediatamente, José Mário correu para se certificar da novidade e, tendo sido informado da procedência da informação, mais ainda se interessou por se preparar para enfrentar aquele certame, por meio do qual, buscaria fazer parte daquela que seria a primeira turma de História que se formaria com o preenchimento das quarenta vagas que foram disponibilizadas para aqueles que se habilitassem a concorrer a uma delas.

 

Alagoinhas – 12 de outubro de 2025 – primavera brasileira

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

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domingo, 5 de outubro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO – 1986-1991 – Parte I.

A transição – I.

 

Conforme já depreende o leitor destes garatujares, aqui se inicia mais uma série de postagens, cujos fundamentos estão assentados nos rememorares de quem as escreve e publica neste espaço. Nela se pretende retomar algumas observações já feitas ao longo do tempo em que se escreve neste blog, procurando aprofundar algumas incursões na memória aqui já feitas, talvez de maneira aligeirada, intentando encontrar explicações ou respostas, ainda que inconclusivas, para algumas questões, igualmente já levantadas, que possam vir a surgir no transcurso da construção da referida série. Estando envolvido com leituras de pressupostos teóricos que tem como objetivo a compreensão do tempo histórico e da sua importância para a compreensão da História, este escrevedor acaba por refletir no seu “tempo histórico”, vivido pessoal e coletivamente, buscando reforçar o trabalho que tem desenvolvido nos últimos quinze anos de sua vida acadêmica, tomando a “memória” como ponto de inflexão para a construção de fontes históricas com as quais possa desenvolver as pesquisas que tenham o propósito de elaborar estudos sobre a “cidade” nos diversos âmbitos do cotidiano que constitui o seu farfalhar social.

A propósito da perspectiva do tempo no “fazer histórico, já nas páginas introdutórias de sua obra “O Tempo dos Historiadores” (2013), José d’Assunção Barros, assevera que “[...]. Situar todas as coisas no tempo — enxergá-las sob a perspectiva de que cada uma delas interage e ajuda a constituir um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que também se inscrevem no tempo — é típico da História. Os historiadores estão presos ao tempo, literalmente. [...]. O que é visceral mesmo, em cada historiador, é a ideia de que tudo se inscreve no tempo, de que tudo se transforma — e de que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas transformações, deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e que, de resto, também se inscreve no tempo” (BARROS, 2013, p. 17-18). 

Ainda conforme preconiza Barros, “[...] Quando se diz que ”a História é o estudo dos homens no tempo”, rompe-se com a ideia de que a História deve examinar apenas e necessariamente o passado. O que ela estuda, na verdade, são as ações e transformações humanas (ou permanências) que se desenvolvem ou se estabelecem em um determinado período de tempo, mais longo ou mais curto” (BARROS, 2013, p. 18).

E mais adiante, Barros fornece a ferramenta conceitual a partir da qual o perquiridor da história vai construir as suas reflexões acerca da sociedade humana na qual concentra as suas atenções, propugnando que “[...]. O tempo dos historiadores refere-se essencialmente à existência dos homens. O que de fato interessa a um historiador é a passagem do homem sobre a Terra, o que inclui tudo aquilo que, tocado pelo homem, transformou-se, e também aquilo que, vindo de fora, transformou a vida humana” (BARROS, 2013, p. 20). 

Portanto, é nesta perspectiva que se pretende discorrer sobre o caminhar de José Mário nas sendas do seu processo formativo acadêmico, abordando algumas dentre tantas passagens do seu trilhar aquelas paragens desconhecidas e, porque não dizer, de possibilidade de o fazer, pouco prováveis a ele, que em grande medida, não estava devidamente provido das ferramentas adequadas, nem dos recursos necessários, muito menos dos pressupostos teóricos fundamentais para empreender aquela jornada. Como já sabe o leitor deste espaço, José Mário fizera um primeiro grau bastante irregular, com diversas interrupções e outras tantas soluções de continuidade; um segundo grau – hoje denominado “Ensino Médio”, cuja diferença não se resume à sua nomenclatura –, embora feito com alguma regularidade no que tange ao correr das séries, não obtivera um bom acúmulo de saberes que o habilitasse a maiores intentos e mais altas pretensões propedêuticas, visto tê-lo concluído em uma versão técnica, o que lhe não permitia lidar com ensinos aprofundados de matérias que lhe indicariam, ao menos, já haver tomado contato de um elenco de conteúdos com os quais precisaria lidar, no momento de se lançar em seleções vestibulares, caso viesse a pretender se imiscuir no caminho da formação universitária.

Ao se iniciar o ano letivo de 1985, José Mário, sequer cogitava a mais intangível possibilidade de se lançar empreitadas que viessem a resultar no ingresso em um curso superior. Primeiro, estava posta a interrogação sobre as suas condições objetivas em se fazer aprovar em um vestibular, dado ao grau de dificuldade e ao nível de exigência posta por aquele tipo de certame, representado pela obrigatoriedade de ler  - ou ter lido – um conjunto de autores e obras literárias, por exemplo. Embora, como já se disse aqui, ele tenha percorrido um bom número de títulos, grande parte daqueles que apareciam nas listas propostas pelas principais universidades do País que lhe chegara ao conhecimento, jamais lhe passara pelas pontas dos dedos. Outrossim, como já é cediço, a grande defasagem entre aquilo que lhe fora proporcionado no campo das ciências exatas – não deixando de salientar, aquilo que ele não conseguira absorver/aprender – e aquilo que era cobrado naquele tipo de demanda para ingressar no ensino superior, impactaria ineludivelmente, no seu desempenho diante dos problemas relativos àquela área do conhecimento, não obstante, algumas das provas serem compostas de questões objetivas. Embora ele nem mesmo tivesse cogitado inserir-se naquele tipo de embate, o fato de não dispor daquelas condições objetivas não deixava de ser por ele consideradas. E, caso viesse a pensar em se envolver em tal, sob aquelas condições adversas, ele não possuía ilusões. Aquelas que, quiçá um dia houvesse possuído, morreram no embate com a realidade vivida até ali, nas proximidades de completar o primeiro quarto de Século, indicando que o tempo já passava e a percepção daquela passagem, já se apresentava com a aparência de maior velocidade.

Segundo, se porventura viesse a passar em algum daqueles certames, viria uma outra dificuldade a se enfrentar, que, ele sabia, não havia como resolver, ao menos, nas condições as quais ele e a sua provedora estavam sujeitos. A moradia e a alimentação fora das quatro paredes do seu residir, era, por assim dizer, um obstáculo intransponível, visto não possuir nenhum lugar onde pudesse morar, fosse em Salvador ou em Feira de Santana, bem como não possuir parentes, aderentes ou mesmo amigos que o pudesse socorrer em tais circunstâncias; nem haver recursos financeiros que permitissem uma locação – de casa, de apartamento ou de vaga de pensão. Isto implicava em acrescentar mais um obstáculo a uma eventual caminhada no processo de formação acadêmica, na medida em que, sem morar e sem se alimentar, não havia como cursar. Saliente-se de passagem que, nem estava posto o item deslocamento no conjunto de necessidades de um estudante que não possuía residência em Salvador ou em Feira de Santana – para falar em cidades próximas daquela onde se localizava a sua moradia –, uma vez que, consuetudinariamente, ele contava com a gratuidade nos transportes públicos. Mesmo aquela gratuidade, estava sujeita à interpretação de condutores, despachantes e, principalmente,, da maneira como os proprietários das empresas concessionárias de transportes a compreendiam, visto não haver “leis escritas” que a regulassem, implicando em travamentos de tais deslocamentos, sobretudo, no âmbito intermunicipal.

É assim que, ainda que não tomando esses elementos de modo organizado como aqui se resumiu, para José Mário, aquele seria apenas o ano da conclusão do Segundo Grau e, de alguma forma, já seria um ganho, se assim se desse. A única possibilidade de um pretender aceder ao ensino superior que por vezes se lhe assomava ao espírito, em alguns lampejos logo apagados pelo seu recorrer à sua realidade objetiva, era a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, espaço que já visitava há um par de anos, no sentido de se valer do acervo de sua biblioteca, para elaboração de trabalhos escolares. Mas, o curso que ali era oferecido, que mais lhe instigava era o de licenciatura curta em Estudos Sociais, que lhe soava como um inacreditável tom de incongruência, visto que, aquele era um dos cursos inventados e impostos pela ditadura civil-militar, implantada pelo golpe perpetrado contra a democracia em 1964, com o objetivo de reduzir a reflexão e anular o pensamento crítico propiciados pelos cursos de História, Sociologia e Filosofia, incoerentemente embutidos nos tais “Estudos Sociais”. Além disto, para que fosse possível aquilo que se denominava “plenificação” do curso iniciado na FFPA, como era conhecida aquela instituição, seria necessária uma complementação em Feira de Santana, que colocaria em pauta, aquelas dificuldades já acima elencadas.

E, desta maneira, como não poderia deixar de ser, caso José Mário se quisesse aventurar numa nova caminhada por meio da qual viesse a se inserir no corpo discente formado por aqueles que ingressassem na FFPA, ainda que no curso estapafúrdio de “Estudos Sociais”, haveria que se preparar para fazer face às exigências inerentes àquele tipo de seleção. No entanto, conforme já se acentuou há algumas linhas, o seu objetivo primevo era, inarredavelmente, encerrar aquele ciclo escolar, o que se daria com um considerável atraso, em relação ao que se esperava de um aluno em condições normais de tempo e de temperatura: concluir o segundo grau entre os dezessete  e os dezoito anos. Naquele ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1985, aquele concluinte completaria 25 anos, redundando em uma defasagem de aproximadamente oito anos, o que equivaleria, mais ou menos, ao tempo de ingressar, cursar e concluir um curso de graduação, entrar em um programa de Pós-graduação para cursar e concluir o Mestrado e, ingressar em um programa de Pós-Graduação, nele cursando a metade do tempo necessário para defender a tese de doutorado.

 

Alagoinhas – 05 de outubro de 2025 – primavera brasileira

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

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