O cheiro de cuscuz na vizinhança
Em mais um arrazoado que se traz a quem visite este espaço virtual,
procura-se apresentar mais um feixe de memórias há muito depositado sob camadas
acumuladas pelo passar do tempo, cujo objetivo é extrair dele os silenciamentos
impostos pelas muitas condições inerentes às escolhas do que lembrar e do que
esquecer que, em última instância, nada mais é do que um silenciar. UM tal
silenciar acaba por parecer um esquecer; na verdade, ao lembrar de algum
momento vivido, nem sempre é possível verbalizar aquela lembrança, aquele
momento que emergiu à superfície da memória, depois de ter atravessado algumas
camadas que o encobriam e, que pareciam lhe obstar os movimentos que lhe
permitissem assomar ao momento em que se dá a lembrança. O tempo, ao passar no
seu passo irrefreável, deixa para trás os vestígios daquilo que foi vivido, em
grande parte dele, só registrado na memória que se apresenta no presente de
quem lembra, para que aquilo de que se lembra, seja iluminado em alguns dos seus aspectos, permitindo
acesso aos elementos constitutivos daquele lembrar, que por sua vez, sofre
ressignificações no presente em que se lembra.
Assim, é neste sentido, que aqui se pretende trazer à lume e
ao crivo de tantos quantos leiam estes rememorares, mais um daqueles momentos vividos
por José Mário, entre os anos de 1975 e
1976, passados em confinamento nas dependências de um instituto para cegos.
Localizado no bairro do Barbalho, na cidade de Salvador, aquele estabelecimento
era apresentado ao público em geral e aos familiares dos que dele viessem a
fazer uso em particular, como sendo um espaço onde as pessoas cegas ali
alojadas teriam, além da formação propedêutica inerente à construção do saber necessário
para a interação com o mundo comum dos demais elementos constitutivos da
sociedade, também receberiam a orientação para a vida social, escolar e, claro,
confessional. Através dos meios de comunicação que lhes abriam os espaços para
divulgação e esclarecimentos da sua razão de ser, os seus dirigentes procuravam
incutir no espírito daqueles que dele se aproximavam, a ideia de que era um local
onde os internos estavam recebendo o treinamento para conseguirem inserção
social, primeiro junto à escola e outros centros de obtenção dos saberes;
depois, no mundo laboral, de onde buscariam obter o sustento e a subsistência.
Talvez, se precise afirmar, de passagem, que tal construção argumentativa era
falaciosa, na medida em que aquela propaganda, em grande parte das vezes e dos
casos, não conseguia passar do caráter publicitário, servindo muito mais para o
consolo dos familiares que precisariam deixar os seus cegos aos cuidados do tal
estabelecimento, bem como para convencer ao público em geral, da necessidade de
apoio financeiro para que o dito pudesse fazer frente às circunstâncias inerentes
às suas condições de provimento de alojamento, de alimentação, de vestuário, de
higiene dos internos, bem como das atividades de orientação que apontaram como
sendo o propósito de sua existência, assim como de suas investidas em busca de
recursos públicos e privados, para conseguirem levar a bom termo os serviços
prestados.
Embora o tempo que aqui tenha sido evocado esteja situado no
fim do mês de setembro de 1975, já em plena vigência da primavera há muito esperada,
o que se pretende relatar nestes garatujares, poderia ter se dado em qualquer
dos meses ou estações que marcaram o tempo que José Mário vivenciara o cotidiano
daquele internato. Lá, onde tudo era marcado pelo ritmo imposto pelos sons dos
sinos ou das sirenes, que indicavam os horários rígidos do silêncio do dormitório,
do acordar para o banho matinal, da corrida ensandecida para a primeira
refeição do dia e, os demais movimentos para as aulas internas, bem como para
as demais atividades relacionadas ao funcionamento do internato eram,
meticulosamente, marcada pelos sinais sonoros daqueles dois instrumentos, tão
odiados quanto esperados pela maioria dos que ali viviam confinados. Portanto,
como o arguto leitor pode depreender, nada se fazia ali, fora daqueles horários
previstos e, assim, as refeições, por exemplos, obedeciam a estritos horários
bem balizados, sem quaisquer possibilidades de modificações, sob quaisquer
pretextos ou desejos, quer dos internos, quer dos funcionários que ali atuavam.
Mas, a rigidez dos movimentos e da operacionalização do
sistema de internato imposto por àquele estabelecimento para cegos, não se restringia
ao ritmo dos sons que demarcavam os horários em que tais ou quais atividades
deveriam ser realizadas. Indo além dos ritmos dos movimentos e dos
comportamentos, era igualmente, o que se daria a comer, para aquela gente de origem,
hábitos e culturas alimentares variadas, também mantinha uma rigidez quase draconiana,
na medida em que, em geral, não se tomava em conta nem mesmo as necessidades nutricionais
– se diria hoje em dia –, na definição daquilo que se iria servir, das
quantidades adequadas às idades dos internos; nem mesmo, se cogitava atender a
alguma necessidade nutricional mais específica de alguns dentre eles.
Neste sentido, grassava a fome entre os internos daquele
estabelecimento de abrigo para cegos, não no sentido de faltar o que comer;
mas, no sentido de se comer mal; tanto do ponto de vista qualitativo, quanto –
e principalmente – do ponto de vista quantitativo. Vez por outra, quase sempre
sem razão aparente – especulava-se que eram
os momentos de visitas da chamada “diretoria externa” – algumas iguarias pouco
usuais – galinhas, refrigerantes, leite, queijo, chocolates e doces ausentes do
dia a dia, além de outras delícias que o paladar sentia a falta – surgiam nas
mesas, em qualquer das refeições, para alegria dos comezinhos, que se refestelavam
em mesa farta e sem restrições de quantidade nem de tempo de permanência no
local das refeições. Mas, saliente-se que aqueles eram momentos raros, pouco
comuns, tais quais passagens de cometas pela terra.
Outrossim,, cabe ressaltar de passagem que, malgrado os
dirigentes se dizerem Católicos, Apostólicos Romanos e, obrigarem, por conseguinte,
a que todos os internos assim o fossem, frequentando as missas, comungando,
rezando todas as tardes e, sobretudo, no chamado mês de Maria, durante um dos
mais evocados períodos do “ano litúrgico”, a “semana Santa”, a alimentação
permanecia a mesma, sem o peixe nem os seus acompanhamentos “obrigatórios” para
a ocasião, demarcando naquele espírito ainda um tanto em formação, uma das
primeiras impressões do que mais tarde veio a saber se tratar da “hipocrisia”,
que demandava dos outros, aquilo que os próprios demandantes não cumpriam. José
Mário, embora não católico por convicção, estranhou o fato de que, nas duas
daquelas ocasiões que lá estivera, uma das refeições servidas na semana que
deveria ter sido santa, foi uma feijoada meio atrapalhada, que aliás, ele a
devorara com toda a gula que o momento lhe permitiu. Alguns dos internos se impuseram
jejum, tal o nível de convicção que os movia; outros, resignados e premidos
pela fome de um estômago mal alimentado nas refeições anteriores, acabaram por
sucumbir à exigência da carne que clamava por sustento.
E, enfim, muitas vezes, enquanto circulava no sexto andar e,
ali aguardava o toque do sino chamando para o café, ele sentira, além do cheiro
da Chadler que a brisa do mar ali próximo levava até as suas apuradas narinas,
também um convidativo cheiro de cuscuz que vinha da vizinhança, apertando-lhe a
saudade de casa e, impondo-lhe a tristeza, pela certeza de que não encontraria
aquela iguaria na mesa diante da qual, se assentaria dali há alguns poucos
minutos. Aliás, esta é uma das lembranças mais vivas que volta e meia se lhe assoma
ao espírito, em recordações de um tempo em que o cuscuz do vizinho não só
lembrava a casa da sua mãe, bem como lhe trazia o desejo de o encontrar naquela
mesa onde dali há pouco tomaria o café e, sem aquele cuscuz, cujo cheiro lhe
chegara, sem contudo, estar ali servido, como gostaria de encontrar.
Portanto, era sim fome: a fome de não comer o que desejava,
pois, aquele cuscuz o levaria ao seu comer em casa; embora envolta em
dificuldades para a obtenção dos víveres, aquela sua casa, naquele momento
distante, por vezes se podia não só sentir o cheiro, mas sim, se comia um
cuscuz de “Flor de Milho”, que àquelas horas das manhãs lhe fazia tanta falta.
Alagoinhas – 28 de setembro de 2025 – Primavera brasileira.
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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