domingo, 28 de setembro de 2025

28 de setembro de 1975 – mais um domingo de um viver em internato

   O cheiro de cuscuz  na vizinhança

 

Em mais um arrazoado que se traz a quem visite este espaço virtual, procura-se apresentar mais um feixe de memórias há muito depositado sob camadas acumuladas pelo passar do tempo, cujo objetivo é extrair dele os silenciamentos impostos pelas muitas condições inerentes às escolhas do que lembrar e do que esquecer que, em última instância, nada mais é do que um silenciar. UM tal silenciar acaba por parecer um esquecer; na verdade, ao lembrar de algum momento vivido, nem sempre é possível verbalizar aquela lembrança, aquele momento que emergiu à superfície da memória, depois de ter atravessado algumas camadas que o encobriam e, que pareciam lhe obstar os movimentos que lhe permitissem assomar ao momento em que se dá a lembrança. O tempo, ao passar no seu passo irrefreável, deixa para trás os vestígios daquilo que foi vivido, em grande parte dele, só registrado na memória que se apresenta no presente de quem lembra, para que aquilo de que se lembra, seja iluminado  em alguns dos seus aspectos, permitindo acesso aos elementos constitutivos daquele lembrar, que por sua vez, sofre ressignificações no presente em que se lembra.

Assim, é neste sentido, que aqui se pretende trazer à lume e ao crivo de tantos quantos leiam estes rememorares, mais um daqueles momentos vividos por José Mário, entre os anos de 1975  e 1976, passados em confinamento nas dependências de um instituto para cegos. Localizado no bairro do Barbalho, na cidade de Salvador, aquele estabelecimento era apresentado ao público em geral e aos familiares dos que dele viessem a fazer uso em particular, como sendo um espaço onde as pessoas cegas ali alojadas teriam, além da formação propedêutica inerente à construção do saber necessário para a interação com o mundo comum dos demais elementos constitutivos da sociedade, também receberiam a orientação para a vida social, escolar e, claro, confessional. Através dos meios de comunicação que lhes abriam os espaços para divulgação e esclarecimentos da sua razão de ser, os seus dirigentes procuravam incutir no espírito daqueles que dele se aproximavam, a ideia de que era um local onde os internos estavam recebendo o treinamento para conseguirem inserção social, primeiro junto à escola e outros centros de obtenção dos saberes; depois, no mundo laboral, de onde buscariam obter o sustento e a subsistência. Talvez, se precise afirmar, de passagem, que tal construção argumentativa era falaciosa, na medida em que aquela propaganda, em grande parte das vezes e dos casos, não conseguia passar do caráter publicitário, servindo muito mais para o consolo dos familiares que precisariam deixar os seus cegos aos cuidados do tal estabelecimento, bem como para convencer ao público em geral, da necessidade de apoio financeiro para que o dito pudesse fazer frente às circunstâncias inerentes às suas condições de provimento de alojamento, de alimentação, de vestuário, de higiene dos internos, bem como das atividades de orientação que apontaram como sendo o propósito de sua existência, assim como de suas investidas em busca de recursos públicos e privados, para conseguirem levar a bom termo os serviços prestados.

Embora o tempo que aqui tenha sido evocado esteja situado no fim do mês de setembro de 1975, já em plena vigência da primavera há muito esperada, o que se pretende relatar nestes garatujares, poderia ter se dado em qualquer dos meses ou estações que marcaram o tempo que José Mário vivenciara o cotidiano daquele internato. Lá, onde tudo era marcado pelo ritmo imposto pelos sons dos sinos ou das sirenes, que indicavam os horários rígidos do silêncio do dormitório, do acordar para o banho matinal, da corrida ensandecida para a primeira refeição do dia e, os demais movimentos para as aulas internas, bem como para as demais atividades relacionadas ao funcionamento do internato eram, meticulosamente, marcada pelos sinais sonoros daqueles dois instrumentos, tão odiados quanto esperados pela maioria dos que ali viviam confinados. Portanto, como o arguto leitor pode depreender, nada se fazia ali, fora daqueles horários previstos e, assim, as refeições, por exemplos, obedeciam a estritos horários bem balizados, sem quaisquer possibilidades de modificações, sob quaisquer pretextos ou desejos, quer dos internos, quer dos funcionários que ali atuavam.

Mas, a rigidez dos movimentos e da operacionalização do sistema de internato imposto por àquele estabelecimento para cegos, não se restringia ao ritmo dos sons que demarcavam os horários em que tais ou quais atividades deveriam ser realizadas. Indo além dos ritmos dos movimentos e dos comportamentos, era igualmente, o que se daria a comer, para aquela gente de origem, hábitos e culturas alimentares variadas, também mantinha uma rigidez quase draconiana, na medida em que, em geral, não se tomava em conta nem mesmo as necessidades nutricionais – se diria hoje em dia –, na definição daquilo que se iria servir, das quantidades adequadas às idades dos internos; nem mesmo, se cogitava atender a alguma necessidade nutricional mais específica de alguns dentre eles.

Neste sentido, grassava a fome entre os internos daquele estabelecimento de abrigo para cegos, não no sentido de faltar o que comer; mas, no sentido de se comer mal; tanto do ponto de vista qualitativo, quanto – e principalmente – do ponto de vista quantitativo. Vez por outra, quase sempre sem razão aparente – especulava-se  que eram os momentos de visitas da chamada “diretoria externa” – algumas iguarias pouco usuais – galinhas, refrigerantes, leite, queijo, chocolates e doces ausentes do dia a dia, além de outras delícias que o paladar sentia a falta – surgiam nas mesas, em qualquer das refeições, para alegria dos comezinhos, que se refestelavam em mesa farta e sem restrições de quantidade nem de tempo de permanência no local das refeições. Mas, saliente-se que aqueles eram momentos raros, pouco comuns, tais quais passagens de cometas pela terra.

Outrossim,, cabe ressaltar de passagem que, malgrado os dirigentes se dizerem Católicos, Apostólicos Romanos e, obrigarem, por conseguinte, a que todos os internos assim o fossem, frequentando as missas, comungando, rezando todas as tardes e, sobretudo, no chamado mês de Maria, durante um dos mais evocados períodos do “ano litúrgico”, a “semana Santa”, a alimentação permanecia a mesma, sem o peixe nem os seus acompanhamentos “obrigatórios” para a ocasião, demarcando naquele espírito ainda um tanto em formação, uma das primeiras impressões do que mais tarde veio a saber se tratar da “hipocrisia”, que demandava dos outros, aquilo que os próprios demandantes não cumpriam. José Mário, embora não católico por convicção, estranhou o fato de que, nas duas daquelas ocasiões que lá estivera, uma das refeições servidas na semana que deveria ter sido santa, foi uma feijoada meio atrapalhada, que aliás, ele a devorara com toda a gula que o momento lhe permitiu. Alguns dos internos se impuseram jejum, tal o nível de convicção que os movia; outros, resignados e premidos pela fome de um estômago mal alimentado nas refeições anteriores, acabaram por sucumbir à exigência da carne que clamava por sustento.

E, enfim, muitas vezes, enquanto circulava no sexto andar e, ali aguardava o toque do sino chamando para o café, ele sentira, além do cheiro da Chadler que a brisa do mar ali próximo levava até as suas apuradas narinas, também um convidativo cheiro de cuscuz que vinha da vizinhança, apertando-lhe a saudade de casa e, impondo-lhe a tristeza, pela certeza de que não encontraria aquela iguaria na mesa diante da qual, se assentaria dali há alguns poucos minutos. Aliás, esta é uma das lembranças mais vivas que volta e meia se lhe assoma ao espírito, em recordações de um tempo em que o cuscuz do vizinho não só lembrava a casa da sua mãe, bem como lhe trazia o desejo de o encontrar naquela mesa onde dali há pouco tomaria o café e, sem aquele cuscuz, cujo cheiro lhe chegara, sem contudo, estar ali servido, como gostaria de encontrar.

Portanto, era sim fome: a fome de não comer o que desejava, pois, aquele cuscuz o levaria ao seu comer em casa; embora envolta em dificuldades para a obtenção dos víveres, aquela sua casa, naquele momento distante, por vezes se podia não só sentir o cheiro, mas sim, se comia um cuscuz de “Flor de Milho”, que àquelas horas das manhãs lhe fazia tanta falta.

 

Alagoinhas – 28 de setembro de 2025 – Primavera brasileira.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

 

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domingo, 21 de setembro de 2025

21 de setembro de 1975 - Missa e Roupa Limpa

 

Domingo de Missa no repositório de cegos da Bahia

 

Excelentes e pacientes leitores que emprestam um pouco do seu tempo precioso para ler estes garatujares, tens hoje mais um deles em vossas telas. Em mais um mergulho nas profundezas silenciosas da memória, este escrevedor procurará trazer mais uns feixes de lembranças da passagem de José Mário pelo Instituto de Cegos Da Bahia, intentando desenvolver algumas reflexões sobre mais algumas facetas daquele seu processo de formação escolar e de pretenso amadurecimento para o convívio social. Conforme já se disse em arrazoados anteriores, ele ali estava “preso” ou, para usar um termo caro à civilidade, estava  “privado de sua liberdade”, não por uma escolha sua nem por um sentimento masoquista; mas, fora fruto de uma decisão pragmática, fundamentada em expectativas que, mais tarde, ao fim de todo o processo, se demonstraram inalcançadas, decisões, enfim, cujo lastro era a necessidade de se apropriar de instrumentos que o pudesse preparar para o mercado de trabalho e, claro, o pudesse dotar de ferramentas que lhe permitisse alcançar autonomia no campo da mobilidade. Aquele pragmatismo, portanto, fizera com que ele deixasse para trás o aprendizado que já desenvolvia, no que tange à apreensão dos espaços relacionados às suas necessidades de interação na cidade onde nascera – utilização de transporte que o levasse ao centro, por exemplo –; o conhecimento das ruas e direções que precisaria seguir, com o fito de chegar aos lugares em que precisasse estar; também deixara o convívio com a sua mãe e demais familiares, impactando fortemente sobre a realidade encontrada ao chegar no espaço em que seria confinado, dele só saindo para as atividades escolares e, para os períodos de férias, quando, aliás, voltava a se reencontrar com os ares alagoinhenses que, para ele, se assemelhavam aos ventos da liberdade de sair e de voltar para casa, quando quisesse, pudesse e apetecesse o fazer.

Embora as experiências vividas no Instituto de Cegos da Bahia já estejam encobertas por um grande números de camadas acumuladas ao longo do tempo, aquele que remonta a elas, ainda consegue extrair fragmentos que o ajudam a reconstruir, ao menos em partes, alguns dos elementos que acabaram por constituir a sua “memória”, não se perdendo de vista que, aqueles fragmentos que aqui ou ali ressurgem e se reconfiguram, emergem da escolha de quem lembra e, lembrando, traz à tona as reminiscências e quebra os silêncios que se estabeleceram, a despeito  de não terem sido de todo esquecidas. Isto posto, ressalta-se que, o fragmento que aqui se pretende trazer para conhecimento e reflexão de quem venha a ler estes rememorares, remonta ao ano da Graça de 1975, portanto, há cinquenta anos, quando o rapaz que os protagonizara, ainda não houvera completado a primeira década e meia do seu existir. Ainda assim, malgrado o já largo passar de tempos que se estabeleceram entre o momento vivido e o rememorado, os vestígios daqueles dias ainda se encontram vivos, como tendo sido gravado em pedra, a pedra do tempo já pretérito.

É assim que, aquele domingo, 21 de setembro de 1975, que se dizia iniciar-se a “estação das flores”, a tão decantada e esperada primavera, amanhecera como os demais dias vividos naquele repositório de cegos, todos obrigatoriamente acordados às seis da manhã, como nos demais dias da semana, despertados pelo barulho rouco e amaldiçoado de uma sirene executada por um dos funcionários encarregados daquela tarefa, dando início à execução da mesma rotina cotidiana: banhavam-se, vestiam-se de roupa limpa e adequada ao dia de domingo, subia-se para o sexto andar, ali, aguardando o toque da sineta para o café, sempre frugal e insuficiente para mitigar a fome daqueles adolescentes que, na sua quase totalidade, gastavam energias em atividades noturnas... Enquanto se aguardava aquele tão ansiado soar do sino vindo do refeitório, se aspirava o cheiro da “Chadler Industrial da Bahia S.A”, situada ali por perto, fabricante de um chocolate que, embora desejado, se sabia que tão cedo ou mesmo nunca se chegaria a comer; apesar dos muros altos, se podia receber os primeiros raios do sol primaveril; a brisa ainda fresca da manhã que ainda se espreguiçava em bocejos da aurora há pouco apresentada ao viajor, fazendo  com que aqueles que ali se encontrava procurassem encher os pulmões com os aromas embrulhados no frescor que o amanhecer exalava.

Depois de vaguear naquele espaço de recreação por alguns quase intermináveis quarenta minutos, ouviam quase todos o som que vinha do refeitório, lançando-se à escada, como gado impulsionado pelo resto da manada, querendo todos, há um só tempo, alcançar o ponto de onde julgavam escutar o chamado; as escadas não conseguiam obstaculizar a desabalada carreira empreendida pelos mais afoitos e, como não poderia deixar de ser, pelos mais comedidos ou tímidos, se é que a fome conseguia estabelecer distinção entre uns e outros. Caso não caísse alguém pelo caminho, enfim, chegavam todos às suas mesas, antes de se assentarem, todos maquinalmente rezavam uma reza incompreensível e repetida mecanicamente, quase todos temendo uma punição – para uns era a Divina; para outros tantos era a de Josefina -, em caso de serem flagrados sem cumprir o ritual que, necessariamente, deveria preceder a satisfação – parcial, como já se disse – daquela necessidade vital; uma vez assentados, todos devoravam ávidos o que lhes era dado como repasto – um café preto e fraco, quase morno, servido em canecos esmaltados, por vezes um terço de uma banana da terra, por outras um mingau que se não se distinguia plenamente de que era feito, um terço  de uma bisnaga de  pão –; ao mais um soar de sinos, todos se deviam levantar; uma vez mais, mecanicamente rezar e, já em passos mais lentos, todos deveriam retornar ao ponto do prédio de onde se deslocaram até onde então se encontravam. Cabe salientar de passagem, para fins de esclarecimento, que o ritual brevemente acima descrito, era aplicável a todos os dias, semanas, meses ou anos que fossem vividos naquele ambiente de quase quartel ou convento, de acordo com a equipe diretiva de plantão, onde incontáveis cegos foram depositados e arquivados  - e alguns esquecidos – por grande parte de suas vidas.

Tendo a manada retornado ao sexto andar, ali vagueava por mais um tempo que quase não passava, até ser chamada, uma vez mais, mediante o toque de um sino que, desta vez, a convocava para a capela, onde deveria, obrigatoriamente, fosse católico ou crente – ou nem uma coisa e nem outra – para ali ouvir missa dominical, com padre, sacristão, confissão e comunhão, de acordo com o prescrito no dogma religioso adotado pela instituição e imposto aos seus internos. Mesmo aqueles que já possuíam a permissão de sair para passeios, teriam que permanecer no local de realização da missa, até que, uma vez terminada, pudesse se dirigir para onde quisessem.

Uma vez ouvido o som que os chamava à audição do rito religioso dominical – faz-se necessário aditar o fato de que durante a semana, também havia tal obrigação que era cumprida no final das tardes –, os internos deveriam passar pelo vestiário, a fim de se fazer a conferência de sua indumentária, no que dizia respeito à limpeza e a adequação ao acesso à capela. A funcionária, constatando eventual sujeira ou algum outro desalinho na roupa de alguém dentre eles, providenciaria  ajustar o tal desalinho, para que o interno naquele repositório de cegos, se dirigisse à missa, vestido com a roupa limpa, podendo assim assistir o ofício religioso, executado por um prelado externo àquele espaço onde desempenharia a sua tarefa sacerdotal, em conformidade com o que era esperado da instituição que os abrigava.

 

Alagoinhas – 21 de setembro de 2025 – ainda inverno brasileiro

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 14 de setembro de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XV

 

– Obras e autores parte XII.

 

Recorrendo-se ainda uma vez aos escavares de camadas espessas da memória, considerando um tempo marcado por aquele passado que ainda é percebido no presente, com mais estes garatujares que o paciente leitor tem diante de si, chega-se ao termo destes arrazoares que já vem longos e, quiçá, levantando mais algumas camadas de memórias acumuladas no curso do tempo vivido, se pretende desenvolver mais algumas formulações envolvendo o processo formativo do protagonista até aqui envolvido nestes escritos, considerando o seu ingresso no ensino superior, depois de muitas idas e vindas experimentadas desde que ele começara a palmilhar a estrada dos pós vinte anos, momento em que consegue concluir o que então se denominava “primeiro grau” e, seguia para concluir o também então chamado de “segundo grau”, assomando, por fim, o patamar do ensino superior, se fazendo aprovar para o curso de História, em sua primeira turma, iniciada em 1986, na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas.

Conforme postula Paul Ricöeur (1913-2005), ao se recorrer à “memória” em busca de encontrar os vestígios daquilo que ficou no passado e que se quer trazer ao presente, “[...], uma busca específica de verdade está implicada na visão da ”coisa” passada, do que anteriormente visto, ouvido, experimentado, aprendido. Essa busca de verdade especifica a memória como grandeza cognitiva. Mais precisamente, é no momento do reconhecimento, em que culmina o esforço da recordação, que essa busca de verdade se declara enquanto tal. [...], sentimos e sabemos que alguma coisa se passou, que alguma coisa teve lugar, a qual nos implicou como agentes, como pacientes, como testemunhas. [...]. Falaremos, doravante, da verdade-fidelidade da lembrança para dizer essa busca, essa reivindicação, esse clarim, que constitui a dimensão epistêmico-veritativa do orthos logos da memória. [...]” (RICÖEUR, 2007, p. 70).

Já se falou bastante das dificuldades enfrentadas por José Mário em compreender as diversas obras que se lhe passaram sob os dedos, na medida em que tal leitura ele só conseguia fazer no que dizia respeito à superfície delas ou, como também já se falou, a sua dificuldade era mediada tanto pela falta de elementos conceituais e contextuais relacionadas aos temas abordados, bem como era presidida pela sua compreensão estreita do que viria a ser uma construção literária. Naquele já distante e tórrido verão de 1985/1986, ele procurara se preparar para os exames vestibulares, estudando língua, redação e literatura com a sua professora Edna Garcia, amiga e incentivadora que sempre o apoiara, desde quando o tivera como aluno alguns anos antes, quando cursara a oitava série. Com ela ele voltara a ler obras da literatura brasileira, sobretudo, aquelas que estavam relacionadas para o certame que se realizaria no final de janeiro e, com a sua ajuda, passara a tentar compreender os tratados desenvolvidos por aqueles escritores, a partir de elementos estruturados na diversidade das escolas e gêneros literários estabelecidos em cânones a partir dos quais se deveria entender aquilo que se propunha a obra de cada autor.

Tendo sido aprovado no aludido certame, sido matriculado e dado início à frequência às aulas a partir de março de 1986, tomara contato com professores e matérias novas, ritmos e processos avaliativos que lhe deixaram aturdido e, ao mesmo tempo, impressionado com o fato de seus outros colegas encararem com a maior naturalidade, aquele ritmo quase frenético de se acompanhar as aulas. Ele nunca esquecera o elenco de matérias em que se matriculara, bem como dos professores que as desenvolveram. Na segunda feira, tivera “História Antiga”, com a professora Alba Mello, entre as dezoito e trinta e as vinte e uma horas; seguida por “ Introdução à Filosofia”, com o professor José Sales; na terça-feira, tivera “Introdução à História!, com a professora Zalvira Vilasboas, seguida da professora Emília –  e ele não lembra ou nunca soube o seu sobrenome – com “Sociologia; na quarta, retornava a professora Alba Melo com a sua “História Antiga” e era seguida de uma matéria que soara muitíssimo estranho aos ouvidos de José Mário – Metodologia do estudo e da pesquisa –, embora o nome da professora ministrante – Iraci Gama Santa Luzia – lhe fosse familiar, apesar de não a conhecer. Seria por meio daquela disciplina que ele viria a ouvir, pela primeira vez, a expressão “entrelinhas”, tratando-se de leitura e compreensão de texto; na quinta e na sexta feira, se complementava o elenco de matérias iniciadas na segunda, na terça e na quarta feira, entrando como novidade a disciplina de “Língua Portuguesa”, sob a responsabilidade da professora Lígia Freire, que a complementava no sábado pela manhã.

É preciso salientar de passagem que, a expressão “entrelinhas”, ouvida durante todo o transcorrer da matéria magistralmente conduzida pela professora Iraci – embora, à época, José Mário não houvesse considerado assim –, acabara por deixar aquele estudante ainda mais confuso, visto que, acreditava que se tratasse de haver alguma outra “linha” que se requeria um esforço extra para ser percebida, entre as linhas escritas, gravadas nas páginas que percorria. O que o deixava ainda mais confuso é que, em Braille, modo como ele exercitava a leitura e a escrita, não havia como inserir uma outra linha, entre as linhas  que ele apreendia por meio do tato, ensejando, por vezes uma pergunta recôndita – seria possível, na escrita em tinta, se inserir uma “linha” entre as que estavam fixadas no papel, que o leitor seria concitado a perceber com alguma arguta habilidade especial? –, isto é: para ele, as tais “entrelinhas” eram linhas extras sutilmente inseridas nos textos e não, como depois veio a saber, um exercício realizado pelo leitor, a partir de outras leituras e da apreensão dos contextos sociais, políticos, filosóficos, entre outros, bem como se referia à compreensão das subliminaridades que acabaram por levar a construção do texto sob o exercício da leitura e da análise feita pelos que viessem a tomar contato com o que fora produzido por autores tais, inscritos em escolas e/ou gêneros literários quais.

Assim, no transcurso do tempo que precisara empregar para o desenvolvimento e a conclusão da sua Licenciatura Plena em História, ele acabara por travar contato com uma aluna do curso de Licenciatura em Letras, com habilitação em francês, que era alguns semestres mais adiantada do que ele, quando acabaram sendo alunos comuns da professora Estela Rodrigues, em uma matéria que para José Mário fora “eletiva” e, para aquela sua colega era obrigatória. Tratava-se da disciplina “Metodologia do estudo e da pesquisa II”, ofertada pelo curso de Letras, que ele integralizara na sua carga horária e, que ampliara um pouco mais a sua compreensão dos elementos constitutivos do fazer e do apreender o conhecimento. Ali, a professora Estela Rodrigues, muito abordou sobre um tema que lhe era caro, falando de uma “Pseudoconcreticidade”, implicando em uma provocação aos seus alunos, insistindo que sem a dúvida e sem o questionamento, não se poderia compreender nem mesmo a produção textual mais simples. Tendo os seus ensinamentos como base epistemológica para o desenvolvimento de um trabalho que demonstrasse um pouco do que fora apreendido naquelas aulas, a professora em questão, dividiu a turma em duplas, para que fosse desenvolvido um trabalho de leitura de uma obra de livre escolha e, por fim, fosse apresentado u texto monográfico que demonstrasse uma espécie de “nova” compreensão daquilo que fora lido.

Neste sentido, formando dupla com a discente do curso de letras com quem passara a formar uma parceria que ultrapassou aqueles tempos estudantis, José Mário e Milfa Valério – hoje professora aposentada, que atuara no campus II, DEDCII Alagoinhas que, durante o seu exercício docente, viera a ser professora daquele seu colega e que fora sua incentivadora no estudo da língua francesa que ela tão bem domina –, se propuseram a ler e a discorrer sobre a obra de Aluísio de Azevedo (1857-1913), “o Mulato”, publicada em 1881, tratado que, segundo as convenções literárias, marcara o início do romance “naturalista” no Brasil. Ali, eles tomaram contato com um enredo cujo desenrolar se deu fora da capital da Corte Imperial – o que para ele, em particular, não deixara de ser observado, considerando as obras até ali percorridas pelos seus dedos – e, cujo desenlace acabara por despertar nos leitores/analistas, uma desconfiança que acabaram por tomar como hipótese de trabalho. Para eles, o “cônego” não só fora o assassino de “Raimundo”, como também era o seu pai biológico, indicando não só uma quebra do “celibato” que lhe era imposto pela instituição que representava, bem como, fora fruto de uma relação com uma senhora que poderia vir a ser mãe da mesma senhorita por  quem o rapaz se afeiçoara e de quem teria alcançado recíproca, o que arriscaria se dar um incesto, que só com a morte do rapaz se poderia evitar. Tendo chegado a aquele entendimento mediante sutilezas deixadas pelo autor, consideraram propor como título do arrazoado que escreveram para submeter a avaliação da professora Estela, “O Falso Moralismo em O Mulato”.

Tendo sido exitosos não só na proposição do entendimento que tiveram da obra, bem como no construir os elementos argumentativos a partir dos quais sustentaram as premissas por eles levantadas, receberam os elogios da professora/avaliadora, que apontara a  precisão dos postulados que eles apresentaram ao longo do arrazoado, em suas cerca de trinta páginas, bem escritas e bem fundamentadas.

Para José Mário – aquele aluno já quase ao final do seu curso de licenciatura em História e, há pouco entrado nos trinta –, a abordagem de um romance sustentada na identificação do seu pertencimento a uma escola/gênero literário dados, representou uma profunda e completa virada no seu modo de compreender o texto literário, uma vez que, as conclusões que extraíra juntamente com a sua parceira de trabalho, foram obtidas a partir de reflexões de elementos que não se encontravam diretamente estabelecidos no texto de per si; mas, principalmente, foram estruturadas em elementos subliminares ao texto, além de terem sido percebidos nas “entrelinhas” apresentadas no transcurso da leitura daquelas “linhas” que estavam postas pelo autor do arrazoado, mas que, se fazia necessário um observar mais atento de quem as viesse a ler.

 

Professor Jorge Damasceno – 14 de setembro de 2025 – inverno brasileiro – Alagoinhas Ba/Br.

 

- historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 7 de setembro de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – XIV


– Obras e autores parte XI.

 

Retomando neste penúltimo arrazoado proposto para aquilo que aqui se vem discorrendo sob as dificuldades encontradas por José Mário em compreender para além das “linhas que passaram sob os seus dedos em suas leituras feitas no transcurso do seu processo formativo”, pretende-se analisar mais uma dentre elas, talvez, a mais difícil para ele, na medida em que o gênero daquela obra em especial, fugir completamente do escopo já restrito de sua compreensão dos propósitos do autor, na medida em que, para cada “caixinha” em que se encaixa um gênero de obra  - romance/novela, crônica, conto, ... – existe um propósito para a sua escrita e para a sua publicação/circulação. E, como não poderia deixar de ser, há um tempo “histórico” em que aquela obra se inscreve e, a partir dele, se faz necessário compreender a sua razão de ser. Àquela altura da sua formação escolar, ele ainda não distinguia o tempo em que foram escritas as obras que lera, do tempo e da realidade em que estava vivendo. Nesta perspectiva, ele não fazia diferença entre a realidade do século XIX – tempo da escrita a ser evocada aqui – e o momento real no qual ele estava inserido, terceiro quartel do século XX.

Em completo acordo com José d’Assunção Barros que, evocando Marc Bloch (1871-1944), quando preconiza que ”a História é o estudo [ou a ciência]  dos homens no tempo”, prossegue Barros asseverando que “[...]. Situar todas as coisas no tempo — enxergá-las sob  a perspectiva de que cada uma delas interage e ajuda a constituir  um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que  também se inscrevem no tempo — é típico da História. Os historiadores estão presos ao tempo, literalmente. [...].” e Barros prossegue apontando o que para ele é fundamental, a perspectiva de que  “[...] tudo se inscreve  no tempo, de que tudo se transforma — e de que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma destas transformações,  deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e  que, de resto, também se inscreve no tempo” (BARROS, 2013, Pp. 17-18.

E, acrescenta este escrevedor que, pelo fato de ser a “História” escrita, pensada e estudada com base no transcorrer do “tempo”, para ser apreendida, faz-se necessário recorrer aos rastros por ela deixados em sua passagem. Tais rastros são também encontráveis nas “Fontes históricas”, que, em última instância, são os vestígios que podem ser apreendidos pelo historiador, tanto por meio de uma diversidade de registros, como  os pictóricos, os  escritos, os fotográficos ou, os imagéticos em geral,  dentre outros, quanto os diversos registros sonoros produzidos mais recentemente e “monumentalizados” em discos – em diversos formatos), fitas cassete ou VHS, “CDs”, “DVDs”, “MP3”, e ainda aqueles outros que ficaram na memória e que só poderão ser apreendidos mediante entrevistas gravadas pelo historiador/pesquisador oral. Esta, por sua vez, uma vez evocada, pode escolher o que lembrar ou esquecer, qual lembrança tornar pública ou qual silenciar. Assim sendo, à medida em que estes garatujares vinham sendo elaborados, algumas camadas de memória eram escavadas e levantadas e por conseguinte, alguns outros lembrares ressurgiam, mediante as evocações daquilo que pudesse trazer um certo passado à luz das reflexões históricas a ele pertinentes.

Conforme se tem salientado ao longo destas reflexões, algumas obras foram percorridas por Zé Mário, sem que ele pudesse apreender com precisão qual era a real pretensão dos autores em as produzir e qual o objetivo em fazê-las circular e, sobretudo, a razão daquelas obras terem ultrapassado não só o tempo de vida dos autores e dos leitores a que se dirigiam, bem como, a razão porque chegaram até ele e aos seus coetâneos, ao ponto de ainda terem a sua leitura cobrada nas escolas em suas diversas fases, incluídas entre as leituras obrigatórias para os candidatos aos certames de ingresso nas universidades, independentemente dos cursos pretendidos e, mais: ainda tendo a leitura delas estimuladas  pelos meios de comunicação, sobretudo, através das adaptações para as telenovelas, em diversas emissoras de televisão e, até mesmo , adaptações para difusão radiofônica.

Mesmo que a sua compreensão aos dezessete ou dezoito anos não alcançasse inferir as reflexões acima propostas, José Mário continuava a fazer as suas leituras, malgrado todas aquelas limitações já postas em arrazoares anteriores. De sorte que, continuando a percorrer algumas das obras de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), embora o fizesse motivado pela riqueza e profundidade do vocabulário nelas encontrado, por não conseguir estabelecer diferença entre romance, crônica ou conto – conforme já se explicou – ele arriscara a leitura de “O Alienista”, publicado em 1882, fazendo-o em sua íntegra, a despeito do descompasso entre a leitura e a compreensão do que lia. Por não saber distinguir o estilo da composição literária, uma vez mais, logo imaginara se tratar de uma obra cujo enredo passaria pelos clichês já consolidados no seu modo de pensar a literatura: um ou dois pares românticos; algumas intrigas e disputas; depois, tudo se resolvendo para acabar em pares felizes e leitores satisfeitos com o final por ele esperado e/ou desejado.

É certo que, à medida em que avançava no percurso das páginas do escrito machadiano, compreendia que eles não se encaminhariam na direção que aquele leitor esperava; o enredo se entrelaçando entre diagnósticos de “loucura” pouco a pouco se alastrando pela cidade, fazia com que aquele leitor começasse a perder o entendimento da proposta do autor – se é que em algum momento o tivera –, na medida em que Machado encaminhava o seu Doutor Bacamarte a compreender que, no fim e ao cabo, quem era o “luco” e necessitado de confinamento era ele próprio. O desavisado leitor não sabia que se tratava de uma ironia machadiana, ao modismo que grassara no século em que aquele conto fora escrito, uma espécie de “medicalização do modo de vida da sociedade”, que pressupunha uma “dominação” de formas de pensar baseadas em um “saber médico superior”, que marcara as ações das autoridades públicas de então. O tal “saber médico superior”, procurava chamar para si o conhecimento absoluto das razões que levavam aos adoeceres então frequentes de uma parte considerável da população, fazendo-se imperiosa a obediência às suas prescrições, tanto medicamentosas, quanto comportamentais.

É assim que, por não conhecer as circunstâncias que marcaram a produção da obra que lera e que, por isto mesmo não entendera, José Mário também não foi capaz de compreender nem a obra em si, nem a fina ironia nela presente. Só bem mais tarde, ao tomar contato com tratados que lhe apresentaram o contexto em que aquele tratado estava inserido, entre eles, o que relata o movimento chamado de “cemiterada” –História que pode ser conferida na obra de João José Reis (A Morte é Uma Festa – e, as motivações que o desencadeara, é que ele começou então a tomar contato com expressões como “miasma”, que fora um dos motes fundamentais da tentativa de “reinado” dos saberes médicos na sociedade brasileira   dos “oitocentos”, que Machado tão magistralmente ironizara por meio do seu “Simão Bacamarte.

 

Alagoinhas – 07 de setembro de 2025 – inverno brasileiro –  Ducentésimo terceiro ano da “independência política” do Brasil –


Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com