O Presidente eleito, não conseguiu chegar ao local da posse,
para receber a faixa presidencial.
Este arrazoado, prezado leitor, pretende retomar uma
postagem feita por ocasião do quadragésimo aniversário da instauração daquilo
que se convencionou chamar de “Nova República”, período que foi estudado pelo
Professor Jorge Ferreira e pelos seus colegas de caminhada nas sendas da
pesquisa histórica e da produção historiográfica e, por eles denominado “Quinta
República”[1],
em que se abordou brevemente a frustração de uma parcela da população que
acompanhava os desdobramentos advindos da fragorosa derrota da proposta que
pretendia reestabelecer a eleição direta e por sufrágio universal, que
permitiria escolher quem seria o presidente civil, que conduziria o País, após
se concluir o mandato do último dos Generais. Tendo que submeter aquela eleição
presidencial ao viciado “Colégio Eleitoral”, formado por deputados e senadores
da República, acabou por se conseguir eleger Tancredo de Almeida Neves
(1910-1985), para exercer o mandato que teria início nos meados de março
daquele mesmo ano em que se reunira o Congresso Nacional, para sufragar o seu
nome. Dali por diante, foi uma sucessão de frustrações, uma delas já comentada
no mencionado texto anterior e, outra, o será no escrito que se segue. Como já
e cediço, grande parte daquilo que aqui será exposto, está consolidado na
memória de quem ora garatuja estes palavrares. E, como já igualmente é cediço,
a memória é seletiva e, como tal, passível de esquecimentos e, também, de
silenciamentos, o que dá um maior encadear de elementos fáticos, cujos
fragmentos podem estar encobertos por espessas camadas de cedimentos empilhados
pelo tempo e pelo acúmulo de outras informações e experiências vividas ao longo
dos quarenta anos já passados, entre janeiro e abril daquele ano.
Era março de 1985 e o dia se levantara radioso, trazendo consigo
os eflúvios doces e diversificados de aromas de folhas, flores e chão, cujos
cheiros matinais chegavam às narinas deste escrevedor, talvez com algum toque
de final de estação, pois, dentro de pouco menos de dez dias, o outono se
apresentaria, enquanto o verão se deixaria ir; as diversas aves que gorjeavam
no seu entorno, o faziam conforme os determinantes de cada espécie, alheios e indiferentes
aos movimentos sociais, políticos, econômicos e culturais empreendidos pela espécie humana,
sobretudo, os humanos que habitavam as terras brasílicas.
Enquanto isto, mais precisamente em Brasília, tudo se
encaminhava para se concretizar o fim do “regime militar” que governara o País,
desde o golpe perpetrado em 1964, com a elevação de cinco generais à cabeça político-administrativa
Nacional, cuja condução foi feita sob a força de torturas, mortes, desaparecimentos,
cassação de direitos políticos, fechamento de casas legislativas, supressão de
direitos civis universais elementares -
como o “Habeas Corpus” – imposição de exílios políticos e massacres de
indivíduos e/ou grupos de indivíduos recalcitrantes e tidos por “subversivos”,
outorga de uma Constituição - logo
depois quase totalmente reconstruída por uma “Emenda”, a número 1 -, que lhes
desse a legitimidade que “precisavam” para os fins a que se propunham, fossem
quais fossem os meios que para tanto quisessem empregar.
Entretanto, crê-se necessário salientar de passagem que, a
julgar pelo comportamento daquele rapaz que ora usa a sua faculdade de lembrar
aquele março, nestes escritos – que àquela altura não contava vinte e cinco
anos e, ainda cursava o terceiro ano do segundo grau –, bem como o de uma boa
parte dos seus colegas – tanto os da rua, quanto os da escola –, ao que parece,
talvez, uma pequena parcela dos pouco mais de cento e trinta e cinco milhões
dos habitantes do “gigante pela própria natureza” – quiçá, um terço, em uma
abordagem das mais otimistas -, se importava – ou estava informada – de toda
aquela movimentação de caráter social, cultural, político e econômico que
conformava o viver nacional, durante todos aqueles vinte e um anos de arbítrio.
Era um tempo em que o que importava mesmo e o que preocupava os mais de dois
terços restantes do “povo” era o que comeria – alguns, se comeriam, visto que,
a inflação dos preços e o desemprego,
grassavam naqueles dias finais de João Batista Figueiredo -; onde iria
desempenhar as suas tarefas laborais; o que faria após serem declarados concluintes
do segundo grau; se um dia viria a ter um Fusca usado; se entrariam na
Petrobrás, ou em algum órgão público, mediante uma indicação de um deputado amigo
(popularmente conhecido como “pistolão” – concurso público: quase nem se
pensava nisto, ao menos, para os originários das margens subalternas da
população; qual seria a performance da Seleção “canarinha” nas eliminatórias
para a Copa do Mundo do México, que
seria jogada dali há pouco mais de um ano; quem
seria “feliz para sempre” com quem, nos folhetins televisivos, sobretudo, aqueles exibidos após o “Jornal
Nacional”.... Rio de Janeiro e, principalmente São Paulo, eram lugares onde alguns
almejavam encontrar um bom emprego e construir, por assim dizer, o “pé de meia”.
Já a capital Federal, Brasília, era aquela cidade onde só os
poderosos da política e da alta sociedade teriam lugar. Dela só se ouvia falar:
Palácio do Planalto; Praça dos Três Poderes; Câmara dos Deputados, Senado
Federal ou , Congresso Nacional, Granja do Torto, enfim, tudo aquilo era
apresentado ao público em geral, quase como uma espécie de lugar - formado apenas pelo “Plano Piloto”,
saliente-se -, onde poucos brasileiros um dia chegariam a pisar. Era ali que as
elites sociais, econômicas e políticas daquele Brasil para poucos, articulavam a
ampliação de sua dominação sobre os demais; onde urdiam as tramas e construíam as
redes de “mutualidade” que as protegiam de algum imaginado levante das massas
contra os seus insaciáveis desejos de poder e mando. Era em Brasília que o
Brasil “sem perceber era subtraído”, conforme Chico Buarque tão bem expressara,
“em tenebrosas transações”. Dali, emergiam discursos, por vezes inflamados,
cheios de “soberania Nacional”, “segurança Nacional”, amor e defesa da “democracia”,
que visava distrair o “povo”, enquanto as riquezas produzidas pelo labor
daqueles que ainda estavam empregados, eram vorazmente devoradas por uma
matilha de lobos sociais, cuja fome nunca era mitigada; cuja sede de ganhos e
de acúmulos de bens, nunca era saciada.
Ao que parece, foi desenvolvido um complexo e engenhoso
modelo de procedimentos no campo da informação, implementado principalmente
pela Rede Globo de Televisão – mas, saliente-se, não somente por ela, pois
contou com o apoio incondicional das grandes e médias emissoras das capitais e
regiões metropolitanas em todo o território nacional e, dado o potencial de
pessoas e lugares a serem alcançados talvez ainda mais eficiente em seus efeitos,
também contou com o apoio de um grande número de pequenas emissoras de rádio difusão,
espalhadas pelos mais distantes espaços habitados do País. Além disto,
considerando-se a dificuldade enfrentada pelos outros meios de comunicação social
– jornais, livros, revistas, almanaques – tanto pelo fato de se ter um grande
número de analfabetos no seio da formação social brasileira – incluindo-se em tal contexto, aquelas pessoas que mal reconheciam as letras e as palavras por elas
formadas -, quanto pelo baixo poder aquisitivo que afetava aquela mesma
população, impedindo a aquisição de publicações impressas – onde o
contraditório conseguia aparecer de algum modo, a despeito da censura -, tudo somado, favoreceu a comunicação
radiofônica e televisiva, no desempenho de um papel crucial durante toda a
vigência do Regime Militar, por meio do qual, se formatou um modo de pensar e
de viver do brasileiro médio e daqueles de menor posição na pirâmide social, despolitizando
e desacreditando a ação da sociedade civil – o que, aliás, talvez se possa afirmar, com pouca
probabilidade de erros, era o grande objetivo do regime instituído pelo golpe
de 1964, ainda que não abertamente proclamado -, o que fez passar quase desapercebido,
toda a brutalidade dos governos dos Generais, tidos como moralizantes e restauradores
dos “bons costumes, sem que mais de dois terços da população tivesse tido
conhecimento das atrocidades que foram postas em prática por todo o tempo em que
esteve em vigor, aquilo que se poderia denominar de “República dos Generais”.
Portanto, é assim que se ergue o dia quinze daquele março de
1985, envolto na expectativa de uma espécie de “volta à democracia”, quando teria
fim aquele período de vinte e um anos de arbítrio, desaparecimentos e mortes de
tantos quantos ousaram desafiar o “Regime”, com a implantação de uma “Nova República”,
que seria marcada pela posse de um presidente civil, legitimado pelo Colégio
Eleitoral. Porém, a despeito de todo aquele esperar de novos ares políticos a
serem respirados dali por diante, as primeiras notícias do dia não eram nem um
pouco alvissareiras. Os boatos, as especulações e os palpites emergidos desde
as primeiras horas da madrugada, sobretudo, aqueles que fervilhava nos bastidores políticos
de Brasília, lançavam na sua primeira crise, relativa ao seu vir a ser
implantada, a ainda recém-nascida “Nova República”, mergulhada que fora na incubadeira
da incerteza, que a poderia asfixiar irremediavelmente. Levado ao Hospital de
Base, por uma “diverticulite de Merkel”, na noite de catorze para quinze de
março, Tancredo Neves foi submetido a uma cirurgia de emergência, que o impediu
de comparecer a posse e de receber a faixa presidencial. Em tal caso, quem
tomaria posse, o Vice-Presidente? O último dos generais, aquele hipopótamo em
uma loja de cristais, vociferou que não passaria a dita faixa ao seu antigo correligionário,
complicando ainda mais os desdobramentos do caso. E então, o que fazer? Como
fazer? Juristas, os mais diversos e divergentes eram consultados ao longo do
dia, com o intuito de dar um caráter melodramático e obter pontos de audiência,
movimentava a mídia televisiva e radiofônica, enquanto a cúpula política
nacional, procurava encontrar uma fórmula que desse legitimidade à decisão de
dar posse ao político maranhense, até pouco tempo perfilado e –aliado ao regime
moribundo, como Presidente interino da República Federativa do Brasil. Enfim, aquela
que deveria ser uma noite de regozijo e alívio, tornou-se em dias de
perplexidade e aflição.
Alagoinhas 13 de abril de 2025
Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
[1]
O
tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016:
Quinta República (1985-2016) / organização Jorge Ferreira, Lucilia de Almeida Neves Delgado. —1’
ed. — Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018. 504 p. (O Brasil
Republicano; 5)
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