domingo, 13 de abril de 2025

1985: QUARENTA ANOS DE UMA POSSE PRESIDENCIAL FRUSTRADA – segunda parte

 

O Presidente eleito, não conseguiu chegar ao local da posse, para receber a faixa presidencial.

 

Este arrazoado, prezado leitor, pretende retomar uma postagem feita por ocasião do quadragésimo aniversário da instauração daquilo que se convencionou chamar de “Nova República”, período que foi estudado pelo Professor Jorge Ferreira e pelos seus colegas de caminhada nas sendas da pesquisa histórica e da produção historiográfica e, por eles denominado “Quinta República”[1], em que se abordou brevemente a frustração de uma parcela da população que acompanhava os desdobramentos advindos da fragorosa derrota da proposta que pretendia reestabelecer a eleição direta e por sufrágio universal, que permitiria escolher quem seria o presidente civil, que conduziria o País, após se concluir o mandato do último dos Generais. Tendo que submeter aquela eleição presidencial ao viciado “Colégio Eleitoral”, formado por deputados e senadores da República, acabou por se conseguir eleger Tancredo de Almeida Neves (1910-1985), para exercer o mandato que teria início nos meados de março daquele mesmo ano em que se reunira o Congresso Nacional, para sufragar o seu nome. Dali por diante, foi uma sucessão de frustrações, uma delas já comentada no mencionado texto anterior e, outra, o será no escrito que se segue. Como já e cediço, grande parte daquilo que aqui será exposto, está consolidado na memória de quem ora garatuja estes palavrares. E, como já igualmente é cediço, a memória é seletiva e, como tal, passível de esquecimentos e, também, de silenciamentos, o que dá um maior encadear de elementos fáticos, cujos fragmentos podem estar encobertos por espessas camadas de cedimentos empilhados pelo tempo e pelo acúmulo de outras informações e experiências vividas ao longo dos quarenta anos já passados, entre janeiro e abril daquele ano.

Era março de 1985 e o dia se levantara radioso, trazendo consigo os eflúvios doces e diversificados de aromas de folhas, flores e chão, cujos cheiros matinais chegavam às narinas deste escrevedor, talvez com algum toque de final de estação, pois, dentro de pouco menos de dez dias, o outono se apresentaria, enquanto o verão se deixaria ir; as diversas aves que gorjeavam no seu entorno, o faziam conforme os determinantes de cada espécie, alheios e indiferentes aos movimentos sociais, políticos, econômicos  e culturais empreendidos pela espécie humana, sobretudo, os humanos que habitavam as terras brasílicas.

Enquanto isto, mais precisamente em Brasília, tudo se encaminhava para se concretizar o fim do “regime militar” que governara o País, desde o golpe perpetrado em 1964, com a elevação de cinco generais à cabeça político-administrativa Nacional, cuja condução foi feita sob a força de torturas, mortes, desaparecimentos, cassação de direitos políticos, fechamento de casas legislativas, supressão de direitos civis  universais elementares - como o “Habeas Corpus” – imposição de exílios políticos e massacres de indivíduos e/ou grupos de indivíduos recalcitrantes e tidos por “subversivos”, outorga de uma Constituição  - logo depois quase totalmente reconstruída por uma “Emenda”, a número 1 -, que lhes desse a legitimidade que “precisavam” para os fins a que se propunham, fossem quais fossem os meios que para tanto quisessem empregar.

Entretanto, crê-se necessário salientar de passagem que, a julgar pelo comportamento daquele rapaz que ora usa a sua faculdade de lembrar aquele março, nestes escritos – que àquela altura não contava vinte e cinco anos e, ainda cursava o terceiro ano do segundo grau –, bem como o de uma boa parte dos seus colegas – tanto os da rua, quanto os da escola –, ao que parece, talvez, uma pequena parcela dos pouco mais de cento e trinta e cinco milhões dos habitantes do “gigante pela própria natureza” – quiçá, um terço, em uma abordagem das mais otimistas -, se importava – ou estava informada – de toda aquela movimentação de caráter social, cultural, político e econômico que conformava o viver nacional, durante todos aqueles vinte e um anos de arbítrio. Era um tempo em que o que importava mesmo e o que preocupava os mais de dois terços restantes do “povo” era o que comeria – alguns, se comeriam, visto que, a inflação dos preços e  o desemprego, grassavam naqueles dias finais de João Batista Figueiredo -; onde iria desempenhar as suas tarefas laborais; o que faria após serem declarados concluintes do segundo grau; se um dia viria a ter um Fusca usado; se entrariam na Petrobrás, ou em algum órgão público, mediante uma indicação de um deputado amigo (popularmente conhecido como “pistolão” – concurso público: quase nem se pensava nisto, ao menos, para os originários das margens subalternas da população; qual seria a performance da Seleção “canarinha” nas eliminatórias para  a Copa do Mundo do México, que seria jogada dali há pouco mais de um ano; quem  seria “feliz para sempre” com quem, nos folhetins televisivos,  sobretudo, aqueles exibidos após o “Jornal Nacional”.... Rio de Janeiro e, principalmente São Paulo, eram lugares onde alguns almejavam encontrar um bom emprego e construir, por assim dizer, o “pé de meia”.

Já a capital Federal, Brasília, era aquela cidade onde só os poderosos da política e da alta sociedade teriam lugar. Dela só se ouvia falar: Palácio do Planalto; Praça dos Três Poderes; Câmara dos Deputados, Senado Federal ou , Congresso Nacional, Granja do Torto, enfim, tudo aquilo era apresentado ao público em geral, quase como uma espécie de lugar  - formado apenas pelo “Plano Piloto”, saliente-se -, onde poucos brasileiros um dia chegariam a pisar. Era ali que as elites sociais, econômicas e políticas daquele Brasil para poucos, articulavam a ampliação de sua dominação sobre os demais; onde urdiam as tramas e construíam as redes de “mutualidade” que as protegiam de algum imaginado levante das massas contra os seus insaciáveis desejos de poder e mando. Era em Brasília que o Brasil “sem perceber era subtraído”, conforme Chico Buarque tão bem expressara, “em tenebrosas transações”. Dali, emergiam discursos, por vezes inflamados, cheios de “soberania Nacional”, “segurança Nacional”, amor e defesa da “democracia”, que visava distrair o “povo”, enquanto as riquezas produzidas pelo labor daqueles que ainda estavam empregados, eram vorazmente devoradas por uma matilha de lobos sociais, cuja fome nunca era mitigada; cuja sede de ganhos e de acúmulos de bens, nunca era saciada.

Ao que parece, foi desenvolvido um complexo e engenhoso modelo de procedimentos no campo da informação, implementado principalmente pela Rede Globo de Televisão – mas, saliente-se, não somente por ela, pois contou com o apoio incondicional das grandes e médias emissoras das capitais e regiões metropolitanas em todo o território nacional e, dado o potencial de pessoas e lugares a serem alcançados talvez ainda mais eficiente em seus efeitos, também contou com o apoio de um grande número de pequenas emissoras de rádio difusão, espalhadas pelos mais distantes espaços habitados do País. Além disto, considerando-se a dificuldade enfrentada pelos outros meios de comunicação social – jornais, livros, revistas, almanaques – tanto pelo fato de se ter um grande número de analfabetos no seio da formação social brasileira – incluindo-se  em tal contexto, aquelas pessoas que mal  reconheciam as letras e as palavras por elas formadas -, quanto pelo baixo poder aquisitivo que afetava aquela mesma população, impedindo a aquisição de publicações impressas – onde o contraditório conseguia aparecer de algum modo, a despeito da censura -,  tudo somado, favoreceu a comunicação radiofônica e televisiva, no desempenho de um papel crucial durante toda a vigência do Regime Militar, por meio do qual, se formatou um modo de pensar e de viver do brasileiro médio e daqueles de menor posição na pirâmide social, despolitizando e desacreditando a ação da sociedade civil – o  que, aliás, talvez se possa afirmar, com pouca probabilidade de erros, era o grande objetivo do regime instituído pelo golpe de 1964, ainda que não abertamente proclamado -, o que fez passar quase desapercebido, toda a brutalidade dos governos dos Generais, tidos como moralizantes e restauradores dos “bons costumes, sem que mais de dois terços da população tivesse tido conhecimento das atrocidades que foram postas em prática por todo o tempo em que esteve em vigor, aquilo que se poderia denominar de “República dos Generais”.

Portanto, é assim que se ergue o dia quinze daquele março de 1985, envolto na expectativa de uma espécie de “volta à democracia”, quando teria fim aquele período de vinte e um anos de arbítrio, desaparecimentos e mortes de tantos quantos ousaram desafiar o “Regime”, com a implantação de uma “Nova República”, que seria marcada pela posse de um presidente civil, legitimado pelo Colégio Eleitoral. Porém, a despeito de todo aquele esperar de novos ares políticos a serem respirados dali por diante, as primeiras notícias do dia não eram nem um pouco alvissareiras. Os boatos, as especulações e os palpites emergidos desde as primeiras horas da madrugada, sobretudo,  aqueles que fervilhava nos bastidores políticos de Brasília, lançavam na sua primeira crise, relativa ao seu vir a ser implantada, a ainda recém-nascida “Nova República”, mergulhada que fora na incubadeira da incerteza, que a poderia asfixiar irremediavelmente. Levado ao Hospital de Base, por uma “diverticulite de Merkel”, na noite de catorze para quinze de março, Tancredo Neves foi submetido a uma cirurgia de emergência, que o impediu de comparecer a posse e de receber a faixa presidencial. Em tal caso, quem tomaria posse, o Vice-Presidente? O último dos generais, aquele hipopótamo em uma loja de cristais, vociferou que não passaria a dita faixa ao seu antigo correligionário, complicando ainda mais os desdobramentos do caso. E então, o que fazer? Como fazer? Juristas, os mais diversos e divergentes eram consultados ao longo do dia, com o intuito de dar um caráter melodramático e obter pontos de audiência, movimentava a mídia televisiva e radiofônica, enquanto a cúpula política nacional, procurava encontrar uma fórmula que desse legitimidade à decisão de dar posse ao político maranhense, até pouco tempo perfilado e –aliado ao regime moribundo, como Presidente interino da República Federativa do Brasil. Enfim, aquela que deveria ser uma noite de regozijo e alívio, tornou-se em dias de perplexidade e aflição.

 

Alagoinhas 13 de abril de 2025

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com



[1] O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016) / organização Jorge  Ferreira, Lucilia de Almeida Neves Delgado. —1’ ed. — Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, 2018.  504 p. (O Brasil Republicano; 5) 

 

 

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