domingo, 27 de abril de 2025

1985: há quarenta anos

O TERCEIRO ANO

Depois de se ter comentado alguns do desdobramentos do processo de “redemocratização” brasileira, com base em arranjos, acordos e conciliações perpetrados no seio da sua elite social, econômica e política, que teve o seu ponto mais elevado no “colégio eleitoral” reunido nos primeiros dias de janeiro de 1985, é hora de se retomar a escrita a respeito de José Mário e o seu caminhar nas sendas da escolarização formal. Por meio do rádio – que já se disse ter sido o seu livro, o seu jornal, a sua revista semanal – desde os finais do ano anterior, ele se encontrava atento ao que se passava em Brasília, muito mais na perspectiva de se manter informado dos rumos do País, sobretudo, intentando acumular informações, sem que, necessariamente, pretendesse que tal acúmulo viesse a se fazer elemento constitutivo de sua formação enquanto ser capaz de interagir com a sua história, visto não ter ele de per si, uma percepção clara daquilo poder se dar por meio dele, que sempre vivera à margem daquela sociedade elitista, excludente e sempre disposta a manter às suas margens aqueles que não se pudessem enquadrar em seus padrões de ritmo cognitivo, capacidade motora, perfeição sensorial e acumulação monetária/patrimonial – talvez, aquele armazenar de notícias, comentários e outras manifestações por ele ouvidas em seu receptor, servisse tão somente para que ele pudesse construir os argumentos que utilizaria em um eventual processo seletivo, no qual precisasse escrever uma redação. É evidente que àquela altura do seu viver à margem da história, José Mário não possuía uma forma de pensar tão sofisticada quanto a exposta acima; É possível que tenha sido o passar de um tempo já pretérito e a distância entre aquilo que desejara ser e, aquilo que talvez viesse a alcançar ser, aliado aos sucederes em seu viver ao largo daqueles vinte e quatro anos recém-completados  e, aquilo  que efetivamente lograra concretizar, acabou por sedimentar o seu pensamento. A sua expectativa naquele virar de folhinhas, era o de que, na próxima substituição daquele objeto popularmente utilizado para se inteirar do passar dos anos, ele pudesse, enfim, concluir o seu já por demais alongado processo de escolarização formal

Naquele março, mais um, dentre os vinte e cinco já alcançados por José Mário, enquanto se aguardava a posse de mais um presidente da República Federativa do Brasil, se dava o início de mais um ano letivo, para ele que tanto o aguardara: o que seria o seu último ano do segundo grau. O atento leitor deve ter notado que o concluinte estava com uma defasagem de cerca de oito anos, considerando-se aquilo que se convencionou denominar de “idade escolar”, tempo em que o indivíduo deveria completar o seu processo formativo geral, para então, intentar alguma formação específica. Já se explicou em arrazoados anteriores e com bastante vagar, algumas das razões de tão grande espaço de tempo que José Mário precisou percorrer, para completar o tal processo formativo.

Portanto, o caminho por ele percorrido entre a conclusão do primeiro grau e aquele início de 1985, não foi menos obstado do que nas fases anteriores. Naquelas, o problema estava em se fazer assertivo no que diz respeito ao aprendizado, envolvendo as dificuldades de acesso a materiais que lhe permitissem o acúmulo necessário ao avanço na seriação. Nesta porém, o problema estava um pouco mais afeito a ele próprio, na medida em que, já fora do ciclo normal daquele caminhar escolar, havia que decidir o que iria cursar, com base na premissa de que, aquela seria a sua formação profissional, por meio da qual, deveria se lançar no mercado de mão de obra, teoricamente, com alguma qualificação funcional. Uma tal necessidade acabou por provocar um pequeno desvio de rota, quando ele não iniciou o segundo ano de um curso para se aventurar em um outro – onde não foi bem-sucedido e se viu obrigado a recuar -ocasionando mais uma perda de tempo. Acreditando que com uma formação em magistério, o equivalente ao professor primário, ele teria mais chance de ingressar no mercado do que com a formação que iniciara já o primeiro ano, Administração de empresas, José Mário acabou por recorrer a uma sua velha conhecida, com o fito de entrar no segundo ano do curso de magistério, devendo fazer alguma matéria específica do curso, oferecida no primeiro ano. Não se ajustando aos elementos basilares do magistério – principalmente à didática e à metodologia –, não teve outra alternativa, se não, retomar o segundo ano do curso de Administração, mas, não mais naquele ano e, sim, no seguinte.

Tendo pois entrado no terceiro ano, a grande preocupação, nem era mais o material a ser estudado – ele já era construído a partir de cópias escritas por meio da reglete, de acordo com as necessidades –, mas sim, com o estágio que precisaria fazer, que era obrigatório para a integralização do curso, dito, profissionalizante. Em geral, eram as casas comerciais de uma cidade na qual era aquela a principal atividade laboral disponível para os seus munícipes, a dificuldade para José Mário ser aceito em uma daquelas unidades empresariais era ainda maior, visto que, para os demais colegas, ela já era bastante grande. Como concluiria o segundo grau, em um curso “profissionalizante”, sem que conseguisse realizar o estágio, que era requisito para a finalização do processo?

Depois de muito matutar e quase nada encontrar que permitisse resolver o impasse; depois de muito ponderar, que não seria de bom alvitre desistir da corrida faltando apenas alguns metros para a bandeirada final, recorreu ao próprio estabelecimento de ensino, no sentido de encontrarem juntos uma saída para aquele quase indesatável nó. Ali, em princípio, se pensou em realizar um estágio nas dependências da secretaria do colégio, embora se soubesse inviável na prática o tal estágio naquele espaço – como o seria em qualquer outro do tipo, consoante as atividades desenvolvidas que exigiam mais do que conhecimentos teóricos dos processos administrativos. Após surgirem algumas outras sugestões igualmente inaplicáveis, se acordou que o aluno faria um contato com um seu conhecido comerciante estabelecido no ramo de relógios, que, mediante alguma estada em seu estabelecimento comercial, elaboraria um relatório, preencheria os formulários expedidos pela escola e, formalizaria, assim, o estágio – que se sabia, de antemão, que não seria realizado em sua integralidade. Mas, foi assim que José Mário recebeu o aval para concluir o seu processo de formação escolar formal.

Entretanto, conforme foi nos percursos anteriores, embora um pouco menos tensa, a não ser pelas incertezas inerentes à conclusão de algum ciclo da vida, o último ano de José Mário no “Estadual”, transcorreu em meio a alguns pontos críticos. Além do já mencionado estágio obrigatório, o copiar manual de materiais de leituras para o cumprimento das tarefas e avaliações, o ano letivo inteiro foi vivido sob a ameaça de greve dos professores, o que acabou por ocorrer, já no seu final, atingindo aqueles que não foram aprovados e precisaram fazer recuperação de alguma matéria, o que não foi o caso dele. No entanto, no ano seguinte, quando precisou do certificado para a matrícula no curso de História para o qual fora aprovado, sentiu os seus efeitos, sem porém ser prejudicado por eles.

Desta forma, o ano que se iniciara um tanto quanto nebuloso, tanto do ponto de vista da política institucional brasileira, quanto do ponto de vista daquilo que José Mário esperava daquele seu último ano no nível médio da seu processo de escolarização, que àquela altura já tardava e muito a sua concretização, terminou por estabelecer o marco final daquela trajetória educativa formal, abrindo-se lhe a oportunidade para iniciar outros percursos, dali por diante, ainda mais complexos e desafiadores. Dezembro de 1985, que  chegava trazendo consigo o verão com os seus dias longos e quentes, a temporada dos cajus, das jácas, dos umbus e dos buzinares das cigarras, também apresentava algumas novas perspectivas, marcadamente por uma decisão arriscada que o levara a inscrever-se no vestibular para ingresso na Faculdade De Formação de Professores de Alagoinhas e, por via de consequência, indicando a necessidade de estudar, com mais vagar para prestar aquele certame, algo antes impensável para ele em face de suas limitações de bases e fundamentos, fragilizados em tantos aspectos, que já foram apontados em arrazoados anteriores.

 

Alagoinhas – 27 de abril de 2025 – domingo de outono brasileiro.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 20 de abril de 2025

1985: Quarenta anos de uma posse Presidencial frustrada – Terceira Parte

TANCREDO NEVES NÃO SUBIU A RAMPA DO PLANALTO, ELE DESCEU À CAMPA FRIA

 

A memória deste garatujador e, já se percebe, aquela produzida pelos meios de comunicação social, se remete ao ano de 1985, quando se esperava que o novo presidente eleito, ainda que pelo Colégio Eleitoral, há alguns meses antes, viesse a ser empossado nos meados de março daquele ano, quando seria o primeiro chefe do executivo civil a receber a faixa presidencial, depois de vinte e um anos de arbítrio, quando o país foi sangrado por governos  encabeçados por cinco generais – na verdade, dois marechais e três generais –, frutos de uma ditadura implantada por uma das muitas quarteladas ocorridas no Brasil – inclusive, aquela que derrubou o Império e implantou a República em 15 de novembro de 1889 –, a penúltima delas, a que interrompeu o governo legítimo de João Goulart, com o  golpe de 1964. A despeito de todos os preparativos cerimoniais; não obstante os cuidados e ajustes protocolares; malgrado o esmero para garantir a segurança das autoridades, das lideranças políticas e dos chefes de Estado; mesmo em meio às atividades festivas para a recepção das gentes que participariam da efeméride política em Brasília, o dia quinze de março amanhecera sob a estupefação provocada pela confirmação do que há poucas horas não passara de boatos: o ainda presidente eleito, Tancredo de Almeida Neves estava internado em um hospital de Brasília e, claro, não estaria pronto para subir a “rampa do Planalto”. Que desastre! O que se daria nas horas posteriores ao momento que se confirmara aquela informação? Como se comportariam os quartéis, ainda inconformados por terem de retornar aos seus espaços de ação, diante da possibilidade de um de seus antigos aliados e, então, um  desafeto, assumir, ainda que interinamente, o posto que equivaleria a chefia maior deles?

Todo aquele dia e os demais que se seguiram foram marcados por boatos, desinformações, contrainformações, especulações tão diversas, quanto díspares. Para a maioria daqueles que se interessavam por aqueles acontecimentos, tinha os meios de comunicação como a sua principal e, por vezes, como a sua única fonte de acesso ao que se passava na capital federal e em São Paulo, onde os principais lances daquele jogo político eram desencadeados. Mas, conforme se apontou em arrazoado anterior, embora, em tese,  todos pudessem receber as principais notícias do País e do Mundo, principalmente por meio da televisão, para a grande maioria do “povo”, o que importava mesmo era dar conta das atividades cotidianas e procurar, por algum meio, prover as necessidades imediatas do comer, do vestir, do calçar e do folgar. Para aquelas gentes para quem o mundo de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro era um mundo a parte e, praticamente, quase não lhes dizia respeito, os dias, as noites, as semanas e os meses se passavam indiferentes; neles, se nascia, se morria; se comprava se vendia; se chegava se saía, sem que a eles se lhes desse conta, a menos que os atingisse de forma direta e lhes acabrunhasse a morte, a vergonha e a fome. Como quase toda a gente, este garatujador se deitava em seu leito comum de pessoa desprovida de qualquer luxo; pensava no que seria, no que faria; se seria, se teria ou se faria; levantava e se dirigia até a escola; outros, em melhor situação que ele, se dirigiam ao trabalho, para dali tirar o provimento para si e para os seus. Enquanto isto: sucediam-se as cirurgias, os boletins médicos que, para a maioria dos que acompanhavam sem paixões ou vãos esperares, o estado de  saúde do paciente mineiro, só se agravava, só se degradava, apesar da insistência com que os meios de comunicação social – mormente a televisão – e  as autoridades políticas e eclesiásticas, incentivavam a uma quase histeria coletiva, procurando infundir uma esperança de que, quiçá, nem as autoridades médicas acreditavam haver.

Evidentemente que a memória aqui evocada, não pôde trazer em forma de lembrança, senão aquilo que mais se lhe emergiu das muitas camadas já sobrepostas pelos anos. Além disto, nem tudo que se passou naquele dia e nos seguintes, foi de pleno conhecimento público; mesmo aquilo que foi “descoberto” a posteriori, sempre esteve envolto em muitas controvérsias e inúmeras incertezas. Circularam desde as mais absurdas às mais “aceitáveis” ou “possíveis” versões. Dentre as muitas, chegou a surgir uma que apontava a utilização de uma arma “biológica”, que infectara o presidente, para que ele não viesse a fazer do Brasil, uma nação “soberana”, sobretudo, sobrepujando a intocável nação Norte-Americana. Ou seja: grande parte das versões surgidas para explicar aquele  dia da “posse frustrada”, estariam assentadas sobre as bases daquilo que se convencionou denominar “teorias da conspiração”.

Chegara abril e já era outono, quando as chuvas se apresentam para varrer do chão aquelas primeiras folhas caídas das árvores para que a nova folhagem pudesse surgir na próxima primavera. Depois do susto na noite que antecedera o dia da posse do novo presidente, seguido do torpor provocado pela internação emergencial do eleito, passando por uma sensação de alívio precário, ao se dar posse ao vice-presidente, enquanto se aguardava o desenrolar do quadro de saúde após o procedimento cirúrgico de quem seria o titular da faixa presidencial, vieram dias e dias de agonia do enfermo e de aflição para aqueles que acompanhavam pela imprensa a sucessão de cirurgias que se seguiram àquela, dita emergencial

Depois do hospital de Base em Brasília, seguiu-se para o Instituto do Coração (INCOR) em São Paulo, onde mais algumas intervenções foram feitas, na tentativa, àquela altura, desesperada para conter um processo infeccioso que avançava pelo organismo do paciente, idoso e debilitado pelos procedimentos anteriores, em intervalos curtíssimos, indiferente aos esforços das equipes médicas e às orações, rezas ou coisas que tais, pretensamente feitas pelas autoridades eclesiásticas e fiéis de credos diversos e  adversos entre si. Aliás, neste Brasil varonil, sempre que uma autoridade, ou alguém muito apreciado pelo público em geral e pela imprensa em particular – e ainda hoje, mais ainda, pelas redes sociais -, são organizadas e/ou convocadas tais manifestações, vulgarizadas sob o epíteto de “Correntes de orações”, pululam aqui, ali, acolá ou alhures, fazendo crer na existência de um poder em tais ações coletivas, em formas de orações, rituais, rezas e outras similaridades, no sentido de fazer com que aquela “divindade” evocada nas tais “correntes”, se digne a atender súplicas tão candentes e, “sare” o doente, sim, aquele doente pelo qual, tão compungidos corações se derramam em fé – só não se sabe “fé em quê”, como diriam Gilberto Gil e  Herbert Vianna, por meio dos Paralamas do Sucesso; e este escrevedor ousa complementar, em quem!  Mas: e os demais? Ah, os demais, os médicos e os medicamentos que resolvam.

Todo o resto do mês de março e os primeiros vinte e um dias de abril, foram marcados pelo ritmo das notícias, das especulações e pelos boatos, não somente emergidos de Brasília, bem como espalhados pelos rincões brasileiros, através do rádio, da televisão, das revistas e  pelos jornais em circulação no País. Porém, em abril, ah, aqueles meados de abril, aquele abril em que o desfecho se deu; aquele terceiro domingo de abril, naquele meio de  noite, o que se abriu, foi o último dos boletins médicos que foram divulgados por todo aquele tempo. A voz embargada do jornalista gaúcho, Antônio Brito, informa aos telespectadores e aos ouvintes de todo o Brasil, que o excelentíssimo senhor Tancredo de Almeida Neves “EST Mort”.

Enfim, terminava em abril aquela agonia de uma pessoa; de um ser humano, independentemente de se tratar de alguém que fora eleito para a mais alta magistratura do País. Agonia lenta, longa e culminada com o fim de um ciclo pessoal e político daquele que a sofrera. Naquele abril de quarenta anos atrás, portanto, o que se  abriu foi uma campa cemiterial em sua cidade natal, para que nela fosse depositado o corpo inerte daquele que se esperava fosse receber a faixa presidencial. Sim, ele até a recebera. Mas, já de forma simbólica, visto que, quando a recebera, já não mais poderia presidir o povo a quem dissera em seu discurso antológico: “Não vamos nos dispersar”.

 

Alagoinhas, outono de 2025.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Mário Vargas Llosa - 1936-2025.

OUTONO: CAI MAIS UMA FOLHA DA ÁVORE DOS GRANDES LITERATOS


Hoje se concluiu uma das mais brilhantes e profícuas carreiras literárias  na América Latina. Lado a lado com o colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), o peruano Mário Vargas Llosa, a partir de sua vasta produção livresca, mas também como periodista, desenvolveu um papel de grande importância para que se possa compreender os ditos, os não ditos e os interditos da História Latino-americana. Foi, portanto, por meio da sua vastíssima produção literária e jornalística, que Vargas Llosa trouxe ao conhecimento de tantos quantos acederam aos seus escritos, um importante conjunto d aspectos do viver na América latina e no Caribe, apontando sem quaisquer filtros ou sem escamotar aquilo que pudesse vir a ferir as suscetibilidades dos "Donos do Poder", as mazelas enfrentadas pelos milhões de seres humanos que, via de regra, são constantemente submetidos ao jugo da dominação das nações e asfixiados pelas expropriações exercidas pelas suas elites políticas e econômicas, empoleiradas no topo da pirâmide social que esmaga e esmigalha aqueles outros humanos que, contraditoriamente, são a sua base de sustentação e a sua razão de existir e de enriquecer.

Perde a literatura latino-americana; perdem os leitores que apreciam o modo e o tipo de literatura que Llosa produziu, restando, enfim, mergulhar com maior avidez no conjunto daquela obra que lhe rendera o Prêmio Nobel de literatura de 2010. Como se não bastasse o fato de ser o outono a estação em que caem as folhas, murcham as flores e raream os frutos, acaba por ser neste outono de 2025, o momento em que cai mais uma folha da árvore dos literatos.


Alagoinhas, 14 de abril - OUTONO DE 2025: 

Professor Damasceno - historiadorbaiano@gmail.com

domingo, 13 de abril de 2025

1985: QUARENTA ANOS DE UMA POSSE PRESIDENCIAL FRUSTRADA – segunda parte

 

O Presidente eleito, não conseguiu chegar ao local da posse, para receber a faixa presidencial.

 

Este arrazoado, prezado leitor, pretende retomar uma postagem feita por ocasião do quadragésimo aniversário da instauração daquilo que se convencionou chamar de “Nova República”, período que foi estudado pelo Professor Jorge Ferreira e pelos seus colegas de caminhada nas sendas da pesquisa histórica e da produção historiográfica e, por eles denominado “Quinta República”[1], em que se abordou brevemente a frustração de uma parcela da população que acompanhava os desdobramentos advindos da fragorosa derrota da proposta que pretendia reestabelecer a eleição direta e por sufrágio universal, que permitiria escolher quem seria o presidente civil, que conduziria o País, após se concluir o mandato do último dos Generais. Tendo que submeter aquela eleição presidencial ao viciado “Colégio Eleitoral”, formado por deputados e senadores da República, acabou por se conseguir eleger Tancredo de Almeida Neves (1910-1985), para exercer o mandato que teria início nos meados de março daquele mesmo ano em que se reunira o Congresso Nacional, para sufragar o seu nome. Dali por diante, foi uma sucessão de frustrações, uma delas já comentada no mencionado texto anterior e, outra, o será no escrito que se segue. Como já e cediço, grande parte daquilo que aqui será exposto, está consolidado na memória de quem ora garatuja estes palavrares. E, como já igualmente é cediço, a memória é seletiva e, como tal, passível de esquecimentos e, também, de silenciamentos, o que dá um maior encadear de elementos fáticos, cujos fragmentos podem estar encobertos por espessas camadas de cedimentos empilhados pelo tempo e pelo acúmulo de outras informações e experiências vividas ao longo dos quarenta anos já passados, entre janeiro e abril daquele ano.

Era março de 1985 e o dia se levantara radioso, trazendo consigo os eflúvios doces e diversificados de aromas de folhas, flores e chão, cujos cheiros matinais chegavam às narinas deste escrevedor, talvez com algum toque de final de estação, pois, dentro de pouco menos de dez dias, o outono se apresentaria, enquanto o verão se deixaria ir; as diversas aves que gorjeavam no seu entorno, o faziam conforme os determinantes de cada espécie, alheios e indiferentes aos movimentos sociais, políticos, econômicos  e culturais empreendidos pela espécie humana, sobretudo, os humanos que habitavam as terras brasílicas.

Enquanto isto, mais precisamente em Brasília, tudo se encaminhava para se concretizar o fim do “regime militar” que governara o País, desde o golpe perpetrado em 1964, com a elevação de cinco generais à cabeça político-administrativa Nacional, cuja condução foi feita sob a força de torturas, mortes, desaparecimentos, cassação de direitos políticos, fechamento de casas legislativas, supressão de direitos civis  universais elementares - como o “Habeas Corpus” – imposição de exílios políticos e massacres de indivíduos e/ou grupos de indivíduos recalcitrantes e tidos por “subversivos”, outorga de uma Constituição  - logo depois quase totalmente reconstruída por uma “Emenda”, a número 1 -, que lhes desse a legitimidade que “precisavam” para os fins a que se propunham, fossem quais fossem os meios que para tanto quisessem empregar.

Entretanto, crê-se necessário salientar de passagem que, a julgar pelo comportamento daquele rapaz que ora usa a sua faculdade de lembrar aquele março, nestes escritos – que àquela altura não contava vinte e cinco anos e, ainda cursava o terceiro ano do segundo grau –, bem como o de uma boa parte dos seus colegas – tanto os da rua, quanto os da escola –, ao que parece, talvez, uma pequena parcela dos pouco mais de cento e trinta e cinco milhões dos habitantes do “gigante pela própria natureza” – quiçá, um terço, em uma abordagem das mais otimistas -, se importava – ou estava informada – de toda aquela movimentação de caráter social, cultural, político e econômico que conformava o viver nacional, durante todos aqueles vinte e um anos de arbítrio. Era um tempo em que o que importava mesmo e o que preocupava os mais de dois terços restantes do “povo” era o que comeria – alguns, se comeriam, visto que, a inflação dos preços e  o desemprego, grassavam naqueles dias finais de João Batista Figueiredo -; onde iria desempenhar as suas tarefas laborais; o que faria após serem declarados concluintes do segundo grau; se um dia viria a ter um Fusca usado; se entrariam na Petrobrás, ou em algum órgão público, mediante uma indicação de um deputado amigo (popularmente conhecido como “pistolão” – concurso público: quase nem se pensava nisto, ao menos, para os originários das margens subalternas da população; qual seria a performance da Seleção “canarinha” nas eliminatórias para  a Copa do Mundo do México, que seria jogada dali há pouco mais de um ano; quem  seria “feliz para sempre” com quem, nos folhetins televisivos,  sobretudo, aqueles exibidos após o “Jornal Nacional”.... Rio de Janeiro e, principalmente São Paulo, eram lugares onde alguns almejavam encontrar um bom emprego e construir, por assim dizer, o “pé de meia”.

Já a capital Federal, Brasília, era aquela cidade onde só os poderosos da política e da alta sociedade teriam lugar. Dela só se ouvia falar: Palácio do Planalto; Praça dos Três Poderes; Câmara dos Deputados, Senado Federal ou , Congresso Nacional, Granja do Torto, enfim, tudo aquilo era apresentado ao público em geral, quase como uma espécie de lugar  - formado apenas pelo “Plano Piloto”, saliente-se -, onde poucos brasileiros um dia chegariam a pisar. Era ali que as elites sociais, econômicas e políticas daquele Brasil para poucos, articulavam a ampliação de sua dominação sobre os demais; onde urdiam as tramas e construíam as redes de “mutualidade” que as protegiam de algum imaginado levante das massas contra os seus insaciáveis desejos de poder e mando. Era em Brasília que o Brasil “sem perceber era subtraído”, conforme Chico Buarque tão bem expressara, “em tenebrosas transações”. Dali, emergiam discursos, por vezes inflamados, cheios de “soberania Nacional”, “segurança Nacional”, amor e defesa da “democracia”, que visava distrair o “povo”, enquanto as riquezas produzidas pelo labor daqueles que ainda estavam empregados, eram vorazmente devoradas por uma matilha de lobos sociais, cuja fome nunca era mitigada; cuja sede de ganhos e de acúmulos de bens, nunca era saciada.

Ao que parece, foi desenvolvido um complexo e engenhoso modelo de procedimentos no campo da informação, implementado principalmente pela Rede Globo de Televisão – mas, saliente-se, não somente por ela, pois contou com o apoio incondicional das grandes e médias emissoras das capitais e regiões metropolitanas em todo o território nacional e, dado o potencial de pessoas e lugares a serem alcançados talvez ainda mais eficiente em seus efeitos, também contou com o apoio de um grande número de pequenas emissoras de rádio difusão, espalhadas pelos mais distantes espaços habitados do País. Além disto, considerando-se a dificuldade enfrentada pelos outros meios de comunicação social – jornais, livros, revistas, almanaques – tanto pelo fato de se ter um grande número de analfabetos no seio da formação social brasileira – incluindo-se  em tal contexto, aquelas pessoas que mal  reconheciam as letras e as palavras por elas formadas -, quanto pelo baixo poder aquisitivo que afetava aquela mesma população, impedindo a aquisição de publicações impressas – onde o contraditório conseguia aparecer de algum modo, a despeito da censura -,  tudo somado, favoreceu a comunicação radiofônica e televisiva, no desempenho de um papel crucial durante toda a vigência do Regime Militar, por meio do qual, se formatou um modo de pensar e de viver do brasileiro médio e daqueles de menor posição na pirâmide social, despolitizando e desacreditando a ação da sociedade civil – o  que, aliás, talvez se possa afirmar, com pouca probabilidade de erros, era o grande objetivo do regime instituído pelo golpe de 1964, ainda que não abertamente proclamado -, o que fez passar quase desapercebido, toda a brutalidade dos governos dos Generais, tidos como moralizantes e restauradores dos “bons costumes, sem que mais de dois terços da população tivesse tido conhecimento das atrocidades que foram postas em prática por todo o tempo em que esteve em vigor, aquilo que se poderia denominar de “República dos Generais”.

Portanto, é assim que se ergue o dia quinze daquele março de 1985, envolto na expectativa de uma espécie de “volta à democracia”, quando teria fim aquele período de vinte e um anos de arbítrio, desaparecimentos e mortes de tantos quantos ousaram desafiar o “Regime”, com a implantação de uma “Nova República”, que seria marcada pela posse de um presidente civil, legitimado pelo Colégio Eleitoral. Porém, a despeito de todo aquele esperar de novos ares políticos a serem respirados dali por diante, as primeiras notícias do dia não eram nem um pouco alvissareiras. Os boatos, as especulações e os palpites emergidos desde as primeiras horas da madrugada, sobretudo,  aqueles que fervilhava nos bastidores políticos de Brasília, lançavam na sua primeira crise, relativa ao seu vir a ser implantada, a ainda recém-nascida “Nova República”, mergulhada que fora na incubadeira da incerteza, que a poderia asfixiar irremediavelmente. Levado ao Hospital de Base, por uma “diverticulite de Merkel”, na noite de catorze para quinze de março, Tancredo Neves foi submetido a uma cirurgia de emergência, que o impediu de comparecer a posse e de receber a faixa presidencial. Em tal caso, quem tomaria posse, o Vice-Presidente? O último dos generais, aquele hipopótamo em uma loja de cristais, vociferou que não passaria a dita faixa ao seu antigo correligionário, complicando ainda mais os desdobramentos do caso. E então, o que fazer? Como fazer? Juristas, os mais diversos e divergentes eram consultados ao longo do dia, com o intuito de dar um caráter melodramático e obter pontos de audiência, movimentava a mídia televisiva e radiofônica, enquanto a cúpula política nacional, procurava encontrar uma fórmula que desse legitimidade à decisão de dar posse ao político maranhense, até pouco tempo perfilado e –aliado ao regime moribundo, como Presidente interino da República Federativa do Brasil. Enfim, aquela que deveria ser uma noite de regozijo e alívio, tornou-se em dias de perplexidade e aflição.

 

Alagoinhas 13 de abril de 2025

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com



[1] O tempo da Nova República: da transição democrática à crise política de 2016: Quinta República (1985-2016) / organização Jorge  Ferreira, Lucilia de Almeida Neves Delgado. —1’ ed. — Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, 2018.  504 p. (O Brasil Republicano; 5) 

 

 

sábado, 5 de abril de 2025

1981 – O Fim do Primeiro Grau: A Oitava Série em um único lance – Parte II.

 

A memória quase sempre precisa ser evocada por quem lembra, isto já está consolidado enquanto elemento constitutivo dos estudos a ela relacionados. No entanto, ao ser evocada, ela se apresenta, o mais das vezes, fragmentada e fugidia. Isto quer dizer que a memória não se apresenta plena e organizada, o que obriga a quem lembra, estruturar o que lembra, de forma a dar coerência e concatenar o rememorar que pretende apresentar em forma textual.

É assim que se procura orientar, aquele que se prontifica a elaborar alguns dos elementos surgidos nas evocações de fios da memória, com o fito de desenvolver uma história – dentre tantas outras possíveis – que se viveu em um tempo já pretérito. Há já alguns dias, este escrevente vem traçado uma espécie de “trajetória” escolar/educacional de José Mário, retomando aqui e ali, o seu caminhar pelas séries que, se completadas, lhe permitiria completar a primeira fase de um longo – e no caso em discussão, já alongado – processo de formação escolar, visto que, tendo ele vivido algumas experiências laborais malogradas, enquanto, igualmente malograva no acompanhar o ritmo daquele processo, o que, pouco a pouco, não sem resistências e relutâncias, ele era instado a perceber que, sem concluir aquela etapa e, sem adentrar e conduzir até ao fim, as etapas seguintes, pouco ou nada conseguiria, conforme o passar do tempo confirmou para ele.

Com isto lhe fervendo no cérebro, José Mário se resigna em continuar percorrendo aqueles tortuosos caminhos da escolarização, procurando se valer do pouco instrumental que lhe viesse às mãos. Tendo obtido alguns êxitos nas nove ou dez outras disciplinas que compunham o cardápio servido para a Oitava Série, o prato da matemática, naquela primeira unidade, ainda lhe causara algum desconforto, o que lhe fez, ainda uma vez, recorrer a uma maior aproximação com a professora que elaborava aquele quase indigesto prato, no sentido de obter dela algumas explicações, diga-se, complementares, que lhe pudesse entender melhor a sua composição e, por conseguinte, uma melhor deglutição.

Desta forma pensando e agindo, a partir da segunda unidade, José Mário se aproximou daquela professora que lhe dera a chance de escapar de uma perda da unidade anterior, recebendo dela Cortez acolhimento, procurando fazer o rapaz entender as tais equações – daquela vez, eram as do segundo grau.

Cabe aqui abrir uns parêntesis, com o fito de informar ao leitor que, o irrequieto aluno em análise, arrumou umas boas confusões com alguns professores, durante todo o seu trajeto formativo. Na oitava, não foi diferente. Ele entrou em rota de colisão com a professora de “comunicação e expressão”, havendo uma tal altercação entre eles, que José Mário, receando retaliação da docente, procurou a secretaria da escola, para pedir a sua troca de turma Embora com alguma reticência, o secretário, após consultar a direção, aquiesceu e José Mário foi alocado na 8M4, formada por gente ainda mais nova do que ele, o que no geral não chegaria a ser novidade. Mas, naquele caso, o aluno polemista já contava com vinte anos completos, enquanto a média de idade dos alunos daquela nova turma, estava na faixa dos 14 anos. Um cavalo velho, entre os poldros... No entanto, aquela mudança acabou por aproximar José Mário com uma professora que o ajudara muitíssimo nas caminhadas seguintes. Tranquilizado pelo fato de ser a professora de matemática a mesma que atuava na turma anterior, a professora de português era para ele uma pessoa completamente desconhecida. Tratava-se da professora Edna Garcia (1945-2017), com quem se estabeleceu uma amizade e um respeito que ultrapassaram e muito, os muros escolares. Primeiro, ela enquadrou o altercador, sobretudo, com o respeito e a admiração que ela fê-lo sentir. Depois, com todo o tato professoral, ela o ajudou a compreender muito melhor os liames da língua, da gramática e da redação, fazendo com que o seu rendimento alcançasse maiores patamares naquele ano. E, terceiro, ela foi a pessoa que o recebeu em sua residência, para o incentivar na caminhada rumo ao curso de História na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, com aulas, orientações e, mais do que qualquer outra coisa: apostando naquele aluno em muito fragilizado do ponto de vista das estruturas que o sustentasse em tal empreitada. Mas, não se adiantem as coisas. E fechem-se os parêntesis, dizendo que, a sintonia fina encontrada entre professora e aluno, deveras, foi fundamental para os desdobramentos posteriores.

Mas, de volta a oitava série, aquele aluno, contando com a paciência e a competência da professora Zenilda – ou era Zenildes – alcançou as suas melhores notas na malfadada matemática, em toda a sua trajetória escolar. Ela conseguiu fazer com que aquele seu aluno recalcitrante nas fases anteriores do processo de formação escolar, conseguisse não só entender, como assimilar aquelas construções de equações e, melhor: a sua resolução. Aquilo lhe valeu surpreendentes notas nove, nove e meio, que deixaram aquele aluno encabulado consigo mesmo: como conseguira aquilo? O que mudara no seu cérebro, que afinal, se abrira para aquelas construções por demais abstratas que, ao se bater com jogos de sinais e operações, antes para ele complicadas e incompreensíveis, chegava a resultados, quase invariavelmente “igual a zero”? Benedito Castrucci com o seu livro de matemática e as suas explicações acompanhadas de exemplos, com cada vez maiores níveis de dificuldade  e, Zenilda, que procurava dirimir as incontáveis dúvidas do seu aluno, eram os únicos instrumentos com os quais ele contava. O Sorobã era a sua única ferramenta de cálculo; a reglete, a sua companheira inseparável de todas as matérias. Mas, como foi aquilo?

Não se saberia responder, ao menos, sem um aprofundamento do caso, o que não é o objetivo deste arrazoado. O que se sabe de certo é que, ao findar o ano de 1981,aproximadamente no final de novembro, José Mário já se encontrava aprovado em todas as matérias – inclusive, saliente-se, a Matemática – e, apto para iniciar o caminhar no Segundo Grau, o que se deu no ano seguinte. Dali por diante, outras seriam as preocupações, outros seriam os questionamentos. Também, seriam outras as barreiras; outros os níveis de dificuldade; ainda outras seriam as incertezas, as dúvidas, as ansiedades. Tudo, embora nem tanto – pois segundo o sábio Salomão “Nada há de novo, debaixo do sol” -, mas enfim, tudo seria novo, pelo menos, para José Mário.

 

Alagoinhas – 06 de abril de 2025

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno

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