O TERCEIRO ANO
Depois de se ter comentado alguns do desdobramentos do
processo de “redemocratização” brasileira, com base em arranjos, acordos e
conciliações perpetrados no seio da sua elite social, econômica e política, que
teve o seu ponto mais elevado no “colégio eleitoral” reunido nos primeiros dias
de janeiro de 1985, é hora de se retomar a escrita a respeito de José Mário e o
seu caminhar nas sendas da escolarização formal. Por meio do rádio – que já se disse
ter sido o seu livro, o seu jornal, a sua revista semanal – desde os finais do
ano anterior, ele se encontrava atento ao que se passava em Brasília, muito
mais na perspectiva de se manter informado dos rumos do País, sobretudo,
intentando acumular informações, sem que, necessariamente, pretendesse que tal
acúmulo viesse a se fazer elemento constitutivo de sua formação enquanto ser
capaz de interagir com a sua história, visto não ter ele de per si, uma
percepção clara daquilo poder se dar por meio dele, que sempre vivera à margem
daquela sociedade elitista, excludente e sempre disposta a manter às suas
margens aqueles que não se pudessem enquadrar em seus padrões de ritmo cognitivo,
capacidade motora, perfeição sensorial e acumulação monetária/patrimonial –
talvez, aquele armazenar de notícias, comentários e outras manifestações por
ele ouvidas em seu receptor, servisse tão somente para que ele pudesse construir
os argumentos que utilizaria em um eventual processo seletivo, no qual
precisasse escrever uma redação. É evidente que àquela altura do seu viver à
margem da história, José Mário não possuía uma forma de pensar tão sofisticada
quanto a exposta acima; É possível que tenha sido o passar de um tempo já
pretérito e a distância entre aquilo que desejara ser e, aquilo que talvez
viesse a alcançar ser, aliado aos sucederes em seu viver ao largo daqueles
vinte e quatro anos recém-completados e,
aquilo que efetivamente lograra
concretizar, acabou por sedimentar o seu pensamento. A sua expectativa naquele
virar de folhinhas, era o de que, na próxima substituição daquele objeto
popularmente utilizado para se inteirar do passar dos anos, ele pudesse, enfim,
concluir o seu já por demais alongado processo de escolarização formal
Naquele março, mais um, dentre os vinte e cinco já alcançados
por José Mário, enquanto se aguardava a posse de mais um presidente da
República Federativa do Brasil, se dava o início de mais um ano letivo, para
ele que tanto o aguardara: o que seria o seu último ano do segundo grau. O
atento leitor deve ter notado que o concluinte estava com uma defasagem de
cerca de oito anos, considerando-se aquilo que se convencionou denominar de “idade
escolar”, tempo em que o indivíduo deveria completar o seu processo formativo
geral, para então, intentar alguma formação específica. Já se explicou em
arrazoados anteriores e com bastante vagar, algumas das razões de tão grande
espaço de tempo que José Mário precisou percorrer, para completar o tal processo
formativo.
Portanto, o caminho por ele percorrido entre a conclusão do
primeiro grau e aquele início de 1985, não foi menos obstado do que nas fases
anteriores. Naquelas, o problema estava em se fazer assertivo no que diz
respeito ao aprendizado, envolvendo as dificuldades de acesso a materiais que
lhe permitissem o acúmulo necessário ao avanço na seriação. Nesta porém, o
problema estava um pouco mais afeito a ele próprio, na medida em que, já fora
do ciclo normal daquele caminhar escolar, havia que decidir o que iria cursar,
com base na premissa de que, aquela seria a sua formação profissional, por meio
da qual, deveria se lançar no mercado de mão de obra, teoricamente, com alguma
qualificação funcional. Uma tal necessidade acabou por provocar um pequeno desvio
de rota, quando ele não iniciou o segundo ano de um curso para se aventurar em
um outro – onde não foi bem-sucedido e se viu obrigado a recuar -ocasionando
mais uma perda de tempo. Acreditando que com uma formação em magistério, o
equivalente ao professor primário, ele teria mais chance de ingressar no
mercado do que com a formação que iniciara já o primeiro ano, Administração de
empresas, José Mário acabou por recorrer a uma sua velha conhecida, com o fito
de entrar no segundo ano do curso de magistério, devendo fazer alguma matéria
específica do curso, oferecida no primeiro ano. Não se ajustando aos elementos
basilares do magistério – principalmente à didática e à metodologia –, não teve
outra alternativa, se não, retomar o segundo ano do curso de Administração,
mas, não mais naquele ano e, sim, no seguinte.
Tendo pois entrado no terceiro ano, a grande preocupação,
nem era mais o material a ser estudado – ele já era construído a partir de
cópias escritas por meio da reglete, de acordo com as necessidades –, mas sim,
com o estágio que precisaria fazer, que era obrigatório para a integralização
do curso, dito, profissionalizante. Em geral, eram as casas comerciais de uma
cidade na qual era aquela a principal atividade laboral disponível para os seus
munícipes, a dificuldade para José Mário ser aceito em uma daquelas unidades
empresariais era ainda maior, visto que, para os demais colegas, ela já era
bastante grande. Como concluiria o segundo grau, em um curso “profissionalizante”,
sem que conseguisse realizar o estágio, que era requisito para a finalização do
processo?
Depois de muito matutar e quase nada encontrar que
permitisse resolver o impasse; depois de muito ponderar, que não seria de bom
alvitre desistir da corrida faltando apenas alguns metros para a bandeirada
final, recorreu ao próprio estabelecimento de ensino, no sentido de encontrarem
juntos uma saída para aquele quase indesatável nó. Ali, em princípio, se pensou
em realizar um estágio nas dependências da secretaria do colégio, embora se
soubesse inviável na prática o tal estágio naquele espaço – como o seria em
qualquer outro do tipo, consoante as atividades desenvolvidas que exigiam mais
do que conhecimentos teóricos dos processos administrativos. Após surgirem algumas
outras sugestões igualmente inaplicáveis, se acordou que o aluno faria um contato
com um seu conhecido comerciante estabelecido no ramo de relógios, que,
mediante alguma estada em seu estabelecimento comercial, elaboraria um relatório,
preencheria os formulários expedidos pela escola e, formalizaria, assim, o
estágio – que se sabia, de antemão, que não seria realizado em sua
integralidade. Mas, foi assim que José Mário recebeu o aval para concluir o seu
processo de formação escolar formal.
Entretanto, conforme foi nos percursos anteriores, embora um
pouco menos tensa, a não ser pelas incertezas inerentes à conclusão de algum
ciclo da vida, o último ano de José Mário no “Estadual”, transcorreu em meio a
alguns pontos críticos. Além do já mencionado estágio obrigatório, o copiar
manual de materiais de leituras para o cumprimento das tarefas e avaliações, o
ano letivo inteiro foi vivido sob a ameaça de greve dos professores, o que
acabou por ocorrer, já no seu final, atingindo aqueles que não foram aprovados
e precisaram fazer recuperação de alguma matéria, o que não foi o caso dele. No
entanto, no ano seguinte, quando precisou do certificado para a matrícula no
curso de História para o qual fora aprovado, sentiu os seus efeitos, sem porém
ser prejudicado por eles.
Desta forma, o ano que se iniciara um tanto quanto nebuloso,
tanto do ponto de vista da política institucional brasileira, quanto do ponto
de vista daquilo que José Mário esperava daquele seu último ano no nível médio
da seu processo de escolarização, que àquela altura já tardava e muito a sua
concretização, terminou por estabelecer o marco final daquela trajetória educativa
formal, abrindo-se lhe a oportunidade para iniciar outros percursos, dali por
diante, ainda mais complexos e desafiadores. Dezembro de 1985, que chegava trazendo consigo o verão com os seus
dias longos e quentes, a temporada dos cajus, das jácas, dos umbus e dos buzinares
das cigarras, também apresentava algumas novas perspectivas, marcadamente por
uma decisão arriscada que o levara a inscrever-se no vestibular para ingresso
na Faculdade De Formação de Professores de Alagoinhas e, por via de consequência,
indicando a necessidade de estudar, com mais vagar para prestar aquele certame,
algo antes impensável para ele em face de suas limitações de bases e
fundamentos, fragilizados em tantos aspectos, que já foram apontados em
arrazoados anteriores.
Alagoinhas – 27 de abril de 2025 – domingo de outono
brasileiro.
Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com