sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A SÉTIMA SÉRIE EM TRÊS TEMPOS - I –

 

1977: Sem Escola, Sem trabalho E Sem Dinheiro

 

A memória coletiva, que é desencadeada a partir dos rememorares do indivíduo, segundo o entendimento de autores como Maurice Halbwach (1877-1945), Paul Ricöeur (1913-2005), dentre outros, como já se tem insistido, ao procurar trazer o passado para o presente, além de retomar alguns fragmentos do passado abordado, só o pode fazer mediante uma ressignificação daquilo que é lembrado, para recompor a história vivida socialmente em um tempo dado. É pois o caso deste escrevedor que vem procurando recompor um passado já vivido em algumas áreas, tais como a escola, o trabalho, o cotidiano e, em algumas vezes, até um certo construto cultural, político e econômico que o cercara em um tempo marcado por diversas nuances de sua percepção de mundo, por vezes, ainda muito pouco profunda. Tal percepção foi desenvolvida com o passar dos anos; o que o leva a reconhecer os limites que então o cercavam. Logo, as suas reminiscências, inevitavelmente, ao se afluírem ao centro do seu pensar, já estarão modificadas, precisamente, por aquele desenvolvimento. Com estes elementos em mente, neste e nos dois próximos arrazoados, se pretende, além de trazer alguns elementos vividos por José Mário nos quase cinquenta anos já transcorridos do seu mourejar em busca de afirmação como pessoa, como cidadão e como alguém que se apresentava ao mundo para aprender dele, quer fosse através do processo de escolarização, quer fosse pelo viver em um mundo no qual, como todos os demais que com ele se empenhavam em se fazer inserir no âmbito da vida adulta, mergulhara no processo de construção dos meios para ingressar no conjunto da  chamada “população economicamente ativa", procurará trazer ao leitor, algumas reflexões que apontem para o desenvolvimento do seu modo de pensar e de perceber o mundo à sua volta, na medida em que os seus êxitos e/ou os seus fracassos, possam contribuir para o seu preparo intelectual, cognitivo e emocional, com o fito de se apresentar mais firme e seguro, diante dos enfrentamentos que terá diante de si, vida a fora.

É assim que, conforme já foi dito em arrazoados anteriores, José Mário, enfim, entrava em sala para iniciar a sua caminhada na sétima série. Também, igualmente já se disse, que ele estava com pelo menos três anos de atraso em relação àquilo que era considerado com “idade escolar”, para estar naquela série. Por esta razão, quase todos os seus colegas eram mais novos do que ele, mais ou menos naquele momento da vida; embora houvesse um ou outro mais próximo da sua faixa etária, isto consistia na tão propalada exceção, que acaba por confirmar a regra. Ao que parece, as turmas do vespertino eram construídas considerando-se os grupos que de alguma maneira já haviam ultrapassado a idade escolar ideal para a série que pretendiam cursar. Vem daí, o esforço para que uma parte da composição delas estivesse aliada com aquele princípio. Mas, é evidente que isto não se conseguiria plenamente, visto que, as diferenças significativas existentes, mesmo naqueles grupos com os quais se buscava homogeneizar a distribuição de estudantes da forma mais equânime que se pudesse, não poderiam ser disfarçadas. Portanto, a despeito daqueles esforços de uniformização das turmas, formando-as com alunos muito díspares em seus modos de ser, em seus modos de viver, em seus lugares de habitação, em suas maneiras de apreensão de mundo, em suas faixas etárias – ainda que aproximadas -, todas aquelas diferenças, bem como aquelas outras encontradas nos níveis de desenvolvimento cognitivo, de capacidade de apreensão dos conteúdos propedêuticos, se apresentavam, inexoravelmente, quando chegava a hora de se aplicar e/ou desenvolver o processo de ensino e de aprendizagem.

Certamente, nem José Mário, nem os demais alunos – ao menos, grande parte deles -, sabiam da existência de tais esforços. O que ele sabia, isto sim, é que precisaria envidar os seus e, com muito maior empenho em o fazer, para que pudesse caminhar com alguma firmeza, com o fito de alcançar o fim do ano e com ele, a aprovação. Logo de princípio, ele precisaria encontrar parceiros que o pudessem ajudar naquele intento; colegas que lessem o que os professores escrevessem no quadro e, como quase sempre acontecia, não dissessem o que haviam escrito; aquele colega, certamente, precisaria ler para os dois, pois, além de o fazer para José Mário, precisaria fazer também para si, uma vez que, deveria copiar em seu caderno. Para não sobrecarregar em demasia e, um dentre eles, precisaria ter outros que se dispusessem a colaborar consigo, naquela mesma tarefa, dividindo a carga a ser levada por eles, no geral.

De modo que, isto não lhe custou muitos dias para assim suceder, uma vez que, ele ali encontrara um antigo colega dos tempos do ensino primário, nas suas duas últimas séries, transcorrido nas dependências da escola Brasilino Viegas, ocasião em que já interagiam como parceiros de estudos e de troca de ideias, além de dividirem muitas e duradouras experiências de aprendizagens. José Mário e aquele grande amigo, não perderam de todo o contato, apesar de não se encontrarem em sala de aulas há pelo menos três anos, pois entre os dois se construiu uma excelente relação de profícua amizade. Entre o fim do ensino primário e o reencontro dos amigos na sétima, José Mário o visitara algumas vezes em sua residência – poucas, é certo, -, para tardes memoráveis de conversas e sonoras gargalhadas...

Dessarte, aquele e alguns outros colegas se revezavam na “arte” de ditar o quadro para o colega que o não podia ver; também se agrupavam para estudos coletivos, sobretudo, nas matérias onde as dificuldades de acesso aos livros didáticos, não se restringiam ao colega cego – que aliás, não tinha acesso a obras em braile, daquelas utilizadas pelos professores em sala -, mas, se estendiam àqueles outros que, por razões as mais diversas, não as poderiam adquirir para o seu uso pessoal.

Por outro lado, um outro esforço que José Mário precisaria envidar para continuar a caminhar no seu processo de formação escolar, seria o de desenvolver os meios a partir dos quais, ele pudesse interagir com os seus professores, com a pretensão de permitir a comunicação escrita entre ele e os seus mestres, visto que, aqueles docentes não sabiam Braille; outros só ouviram falar daquele método de leitura e escrita usado pelos cegos; e, alguns deles, sequer ouviram falar da existência de um sistema  em forma de pontos grafados em alto relevo, por meio do qual o aluno cego acedia às obras literárias, àquelas produzidas para fins didáticos ou mesmo, realizavam as suas avaliações. Para tanto, ele precisou recorrer à escrita datilográfica, por meio da qual poderia comunicar aos seus professores os resultados de sua aprendizagem, com o evidente impedimento de ele mesmo poder ler aquilo que escrevera, ainda que para retificar a grafia de uma palavra, corrigir ou reparar algum ponto avaliado. Ou seja, do jeito que saísse, estava saído.., não havia jeito a ser dado, nem remédio a ser aplicado.

Um outro inconveniente que se apresentara àquela solução buscada, se referia ao modo como se procederia com a temível matemática, com os seus inúmeros modos de construção formados por letras, sinais, colchetes, chaves e parêntesis matemáticos. Como ele faria tudo aquilo em uma máquina de escrever comum, visto que, mal ele conseguia escrever de maneira correta as construções da língua portuguesa? Neste embalo, também se acresce o estudo da língua inglesa, que, aliás, ele sequer via sentido prático – ou mesmo a francesa, pela qual ele se afeiçoara -,  visto que ele nunca houvera tido contato com as suas formas gráficas. Estas e outras questões se lhe apresentavam ao espírito, por todo o tempo que precisou enfrentar os processos de avaliação, principalmente.

Aqui, faz-se necessário abrir um parêntesis, para considerar que, por conta das circunstâncias que provocaram a saída de José Mário do Instituto dos Cegos da Bahia, ele tinha bem claro que não contaria com qualquer apoio especializado, advindo do “setor Braille” da Secretaria de Educação da Bahia, visto que ele fora tido como aluno rebelde e indisciplinado, de modo que, com tais considerações, ele estaria alijado do rol daqueles pelos quais se teria alguma atenção. Além disto, acrescente-se o fato de que, para as dirigentes daquele órgão, o diminuto número de professores disponíveis para atuar naquele tipo de “apoio”, a prioridade deveria ser dada aos alunos da capital e, claro, a aqueles que estivessem enquadrados nos afetos pessoais e/ou nos cânones disciplinares das “maestras” que davam o tom da música que os componentes da orquestra deveriam tocar.

Malgrado aquele aluno rebelde e indisciplinado ter tomado o rumo do seu caminhar nas próprias mãos, a despeito de não dispor de nenhum recurso econômico, social ou político para o fazer, em uma tarde morna, provavelmente de abril ou maio, ele recebera a visita de uma professora recém-concluinte de um curso de capacitação para o acompanhamento de alunos cegos, dado por aquele mesmo “Setor Braille” da Secretaria de Educação, apresentando-se como estando disposta a lhe propiciar o acompanhamento tiflológico que ele precisaria, para o bom andamento daquela caminhada.

Embora alvissareira aquela visita e, claro, bastante animador o seu propósito, logo mostrou-se inexequível, uma vez que a professora não possuía vínculo como tal no Estado e, propôs ao seu quase futuro aluno, que buscasse junto à Prefeitura e ao seu titular, a sua contratação. Claro que não avançou a proposta, por uma razão óbvia: o candidato a receber o acompanhamento especializado, não possuía qualquer meio que pudesse convencer o então prefeito a fazer aquela contratação, nem mesmo quem pudesse interferir junto a ele, no sentido de a obter. Imagine o caríssimo leitor, que o incauto José Mário, até procurou ser recebido pelo alcaide alagoinhense, apresentando como única credencial, com a qual ele acreditava que "talvez o sensibilizasse", o fato de ser um dos filhos de um seu antigo empregado no comércio de carnes verdes que o dirigente municipal possuía na cidade – tão ingênuo era o estudante, ao acreditar que com aquela credencial, o prefeito acabaria por atender o seu apelo e contrataria uma professora que, embora pudesse trazer alfabetização a outros cegos, naquele momento seria só para José Mário. De mais a mais, o que importaria ao então prefeito, que era rico e quase analfabeto, se aquele cego que ora se encontrava à sua frente, em seu gabinete, fosse atendido, ou não, por uma professora especializada, ou se outros cegos viessem a ter acesso à leitura e à escrita, ou, ficassem sem o ter?

Assim, o resultado daquela inesperada visita foi a frustração de quem teve um cobiçado doce entre os lábios e, quando pensava iria desfrutar o prazer de o saborear em sua plenitude, eis que o dito lhe cai das mãos em uma rua de areia densa e suja, o que o tornara inutilizável, deixando aquele que há pouco o tivera na boca, com a sensação de quem fora esmagado  pela impotência de não ter força política para dar existência legal à proposta, além do desalento pela perda irreparável daquela oportunidade, aliás, única, em todo o tempo da sua trajetória autônoma, iniciada após voltar de um curto período estudando em Salvador.

Mas, sejam fechados os já longos parêntesis e, retomem-se as considerações acerca dos esforços envidados por José Mário com vistas a se apropriar de ferramentas úteis ao seu bom caminhar nas sendas da escolarização, que àquela altura, se encontrava em um impasse, quanto à maneira de se estabelecer uma comunicação com os seus professores, mesmo que aquela fosse feita por uma via de mão única, visto que, ele apenas poderia se fazer ler; não poderia, no entanto, ler-se a si mesmo, nem ler o que eventualmente os seus mestres viessem a lhe escrever, a título de correção de rumos, de orientação de modos e formas de se expressar por escrito ou, redarguir-lhe em algum sentido ou direção, relativamente ao seu processo de desenvolvimento formativo.

Ainda assim, José Mário tratou de procurar aprimorar os seus parcos conhecimentos no manejo dos instrumentos datilográficos, adquiridos inicialmente em manuais em Braille, encontrados nas estantes da biblioteca do Instituto de Cegos da Bahia. Já houvera procurado fazer isto antes, quando nos meados do ano anterior tentara ingressar nos cursos de datilografia oferecidos na cidade. Não tendo porém os recursos financeiros que lhe permitissem a efetivação de matrícula em qualquer das escolas existentes, ele propôs que os horários não ocupados – por falta de alunos ou por não comparecimentos –, fossem franqueados a ele, para que pudesse, ao menos, treinar o domínio da utilização dos teclados, sem a obrigação de ser assistido por qualquer dos professores atuantes ali. Não se saberia dizer se por caridade ou por qualquer outro sentimento, o certo é que aquela proposta foi aceita e aquele estudante do “Estadual” pôde ter contato com as diversas máquinas de escrever que compunham o acervo da escola, trocando de uma para outra, logo que o seu ocupante por direito, chegasse para o fazer.

Destarte, fora lhe dado aceder duas vezes por semana a uma escola de datilografia situada no centro da cidade, bem al lado da famosa praça J. J. Seabra, conhecida como “o Coreto”, pela manhã, em um horário que lhe permitisse retornar para casa em tempo de se preparar e se dirigir para a escola, sem prejuízo do cumprimento pontual do seu turno de estudos, o que ele cumpriu rigorosamente, até meados de agosto, ou talvez já fosse setembro, aproveitando ao máximo aquela oportunidade que lhe fora conferida. Um tal empenho, resultou em bons frutos, no que tange à comunicação entre ele e os professores – não obstante os inúmeros defeitos da sua escrita, dos seus muitos vícios e desconhecimentos acerca do manejo das artes datilográficas -, no tocante à possibilidade daqueles em procederem uma avaliação rigorosa e assertiva, ao menos, assim pensava o aluno, considerando-se as matérias cujo conteúdo fosse discursivo; em outras, no entanto, as avaliações foram feitas oralmente, por escolha dos professores, aliás, saliente-se, uma forma de avaliar que ao aluno não agradava mas, pouco ou nada ele poderia fazer no sentido contrário.

Porém, a matemática, ah, a matemática, para ele, continuava um problema sem solução. As unidades se amontoavam em dezenas e centenas de cálculos não compreendidos e, por isto mesmo, mal ou  mesmo, não resolvidos, acabando por resultar em resoluções que era iguais ou inferiores a zero, implicando em reprovações em sequências infinitesimais. Neste sentido, aqueles péssimos resultados acumulados em três unidades já cursadas, restando só mais uma das quatro unidades, que compunham o ano letivo, acaba por produzir em José Mário, a certeza de reprovação iminente, o que o exasperava, uma vez que, ele não admitiria uma derrota assim, tão fragorosa, a despeito dos seus esforços no sentido de apreender os conteúdos que lhes foram apresentados; a despeito de ter razoáveis êxitos nas demais matérias, sucumbiria, justamente, naquela que ele menos compreendera, menos assimilara – sequer o mínimo para se fazer aprovar -; aquela que menos entrara na sua “cabeça animal”, conforme Raul Seixas o dissera alguns poucos anos antes, no seu “Ouro de Tolo”. Como se tudo aquilo fora pouco e, não fosse bastante, associado a tudo isto, estava o caminhar para os dezessete anos e, a necessidade de praticamente tudo aquilo que só poderia ser obtido mediante algum recurso financeiro, que por sua vez, aquela necessidade só poderia ser satisfeita, pensava o rapazinho que desconhecia o mais superficial da realidade que constituía o mundo ao seu redor, mediante a obtenção de um trabalho.

Assim pensando, sem nada dizer a ninguém, renunciou à escola e, se lançou em busca do trabalho que acreditava, supriria e  atenderia aquele seu desejo de ter com o que se fazer útil em casa e a si próprio. Ele até que, no princípio, alcançara encontrar o trabalho que, na verdade, seria utilizado como justificativa para fugir ao fracasso  escolar iminente, ao qual ele não queria se dobrar, sem um “travo de amargura”. Fora admitido como embalador em um depósito de um supermercado que se encontrava em vertiginosa ascensão na cidade, cujo horário de atuação era das oito as doze, das quatorze as dezoito horas e, seria remunerado com cem cruzeiros semanais, o que implicaria em quatrocentos cruzeiros mensais, o que correspondia a pouco mais de um terço do salário mínimo em vigor – salientando-se que havia uma considerável diferença entre o valor do salário mínimo que era pago na região suo/sudeste e nas demais regiões do Estado brasileiro. Destaque-se que, para aquele aprendiz de operário chegar até o local onde desempenharia a sua labuta, seria preciso a utilização de dois transportes ou, um até o terminal e se dirigisse a pé até lá, fazendo o tal trajeto em quatro momentos: na chegada para o início das atividades do dia; na saída para o almoço; na volta do almoço; na saída do fim do dia, o que requeria um esforço físico e mental considerável para cumprir rigorosamente aqueles horários de entrada e de saída, mesmo naqueles dias em que o trânsito na cidade ainda não era tão movimentado.

Entretanto, a sua "lua de mel" com o novo modo de viver, durara menos de um mês, malgrado a expectativa que aquele rapaz alimentara, no sentido de ter iniciado ali uma nova etapa da sua vida adulta, visto que, dali por diante, não seria mais a farda da escola, já fora da idade que teria que vestir; mas, a roupa de trabalho; não seria mais o cumprimento de horários relacionados à matérias a serem cursadas, mas horário de trabalho, pelo que seria remunerado e, cujo não cumprimento, resultaria em corte no dinheiro que teria a receber. No entanto, agastado e desencantado com a labuta diária a que era submetido um trabalhador sem qualificação e sem força física, aliás, razão pela qual fora liberado de uma “virada de turno” feita pelos demais trabalhadores, para abastecer as quatro lojas com um produto que estivera em falta – o que o fez pensar ser incapaz para realizar aquele tipo de esforço -, fê-lo recuar da empreitada laboral, solicitando a sua demissão, antes mesmo que se completasse o primeiro mês de sua vida de trabalhador.

Em suma, ao fim e ao cabo, aqueles dois movimentos intempestivos que fizera quase ao final de 1977, –acabaram por deixá-lo, sem êxito na escola – reprovado que fora por faltar nos últimos meses letivos -, sem o trabalho que logo lhe parecera infrutuoso, o que logo lhe fizera perceber o equívoco da sua decisão, intempestivamente tomada, no sentido de buscar a obtenção  de um trabalho em detrimento de continuar o processo de escolarização e, por fim, sem o dinheiro, que acreditava passaria a fazer parte do seu mourejar diário, mediante a remuneração obtida em troca do seu farfalhar no depósito daquele supermercado.

 

– Alagoinhas, 21 de fevereiro de 2025

 

Professor Jorge Damasceno– historiadorbaiano@gmail.com 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS - PARTE VI

EM ALGUMA DAS SALAS DO “PAVILHÃO LUIZ VIANA”.

 

Ao iniciar esta última das seis digressões aqui propostas e, para uma melhor compreensão a respeito do que se pretende discorrer neste conjunto de divagações até aqui apresentado, faz-se necessário reafirmar o caráter seletivo da memória, visto ser ela um elemento essencial do existir humano, sobretudo, do seu “existir social”, que é formada por um grande número de camadas que vão se tornando cada vez mais espessas, à medida do passar do tempo. Algumas daquelas camadas são chamadas ao presente, mediante sensações olfativas, auditivas, gustativas ou táteis – no caso de pessoas cegas -, além, claro, da perspectiva visual, que pode ser acionada pelos fragmentos de imagens, desencadeando feixes de lembranças, que, por sua vez, ao ser evocados  a partir do presente, agrega as experiências sociais e/ou individuais acumuladas ao longo dos anos; incorpora àqueles lembrares, informações acumuladas em momentos posteriores à lembrança evocada.     

O tempo transcorrido entre o que é lembrado e o momento em que se desencadeia o lembrar, promove o acúmulo de outras camadas sobre aquela que ora é evocada, formando um todo complexo, exigindo a atenção de quem se lembra, no sentido de abstrair-se dos aludidos dois momentos. Neste arrazoado, este tempo está sendo denominado de “tempos idos”, apontando para um tempo já vivido, mas que, por conta de já se haver passado um feixe de tempo experienciado por aquele que lembra, entre o que é lembrado e a sua manifestação por escrito, no sentido de evitar que o “ontem” ora trazido à memória, se confunda com o que agora seja escrito – ou verbalizado oralmente -, mediante a evocação de uma memória já coberta por inúmeras camadas de outras lembranças, de um grande número de informações, de aprendizagens, de sentimentos e de marcas indeléveis deixadas pelo tempo já vivido por quem se dispõe a lembrar.

À título de ilustração do que se apôs acima, entre tantas outras que se poderia encontrar na literatura atinente ao tema, é possível evocar a experiência de Macel Proust (1871-1922), por ele mesmo apontada como desencadeadora de uma avalanche de lembranças, a partir das quais, pôde construir uma das mais icônicas obras acerca da memória. A partir de uma estranha sensação experimentada por meio do paladar – memória gustativa – e do olfato – memória olfativa – produzidas ao entrar em contato com elementos inerentes ao seu quotidiano infanto juvenil, após assomar-se de uma xícara de chá com “Madeleine” que lhe foram oferecidos pelas mãos maternas, quando já contava um pouco mais de “tempos vividos”, conforme comenta Mario Sergio Conti, autor da introdução de “À Procura do Tempo Perdido” (Companhia das Letras 2022):

“[...], o bolinho que o Narrador,  na meia-idade, come ao tomar chá num dia de inverno em Paris. Ele sente um prazer imenso, uma energia libertadora que advém de sentidos básicos, despertados pelo cheiro e pelo sabor do pequeno doce. Como não consegue entender a fonte da sua alegria, o Narrador recorre a inúmeros pensamentos paralelos, que o ajudam a se aproximar do cerne da força maravilhosa que o toma. Em frases longas, separadas por pontos e vírgulas, ele especula, nuança, indaga, pondera, tenta fixar a sensação fugidia. Até que a descobre. É a memória involuntária das manhãs de domingo de suas férias na cidadezinha de Combray, quando sua tia lhe servia chá com madalenas. Tudo aquilo que tantas vezes buscara lembrar, e não conseguiu, lhe aparece de súbito e com nitidez: ”a boa gente da aldeia e suas pequenas casas, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo aquilo que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá. [...]” (CONTI, 2022, p. 10).

 

Da interação entre o paladar, acionado pelo toque da “Madalena” no palato e na língua do “Narrador” e o cheiro do chá, outro dos elementos desencadeadores das rememorações de Proust, conforme assegura Conti no seu arrazoado, foi, aquilo que se poderia entender como sendo um reestabelecimento de uma espécie de “tempo perdido”. portanto, Conte assevera que

“[...]. O tempo é assim recuperado. A obra magna de Proust é produto desse duplo movimento. O primeiro, vertical, vai e volta entre o  passado, o presente e o futuro. O segundo, horizontal, é um ”Nilo da  linguagem, que transborda e frutifica os vastos espaços da verdade”,  como escreveu Walter Benjamin, o primeiro tradutor para o alemão  de Para o lado de Swann. Nesse rio de frases que se expandem, o Narrador compara, reconsidera, contrasta, qualifica e aprofunda a situação vivida, mesclando-a com aportes vindos da pintura, da botânica,  da literatura, da música, da moda, da arquitetura, da psicologia, do  teatro, da crônica dos costumes e da história francesa.  [...]” (CONTI, 2022, p. 10).

 

Desta forma, aqui se tem procurado rememorar “uns tempos vividos”, considerando-se um ponto do quotidiano de um sujeito que esperava o recomeço do seu caminhar rumo ao robustecer do seu processo formativo para a vida, na medida em que, ele não se sentia pronto para enfrentar a sua realidade, aquela que se lhe apresentava como perspectiva de alguém “sem eira nem beira, sem ramo de figueira”, conforme o dito popular, uma vez que, além de não possuir lastros econômicos, políticos ou sociais para bancar os custos de uma inserção qualificada no mundo do trabalho, ele já iniciara o seu ano dezessete e, ainda se encontrava em uma série escolar, bem abaixo daquela em que já deveria cursar àquela altura: a segunda do segundo grau, conforme os ditames pedagógicos encontrados nas Leis que regiam o sistema educativo do Brasil, a partir da década de 1970. Tais rememorares se relacionam com pessoas e lugares, que, ao contrário do fenômeno descrito por Marcel Proust, fenômeno que permeou toda a sua obra, os rememorares apresentados no curso destes arrazoados, estão relacionados com pessoas, objetos e espaços com os quais se interagiu naqueles “tempos idos”, que se manifesta por meio  das diversas camadas que compõem o lembrar, sujeitas às ressignificações já aludidas linhas atrás. No caso aqui especificado, não houve nenhum fator externo desencadeador; houve sim, um esforço por lembrar do vivido, mediante reflexões, audições de músicas tocadas à época, sensações e/ou  impressões táteis, olfativas e gustativas, que se apresentam como tendo sido experimentadas naqueles lidares cotidianos que marcaram José Mário, enquanto se dirigia ao lugar onde tomaria contato com a sua nova série, com sua nova turma e,, por fim mas, não menos importante, interagiria com os seus novos professores, por meio de todos eles, procuraria enfrentar os percalços e os entraves que se lhe adviriam ao mourejar nas sendas formativas.

Depois de uma noite longa e quiçá, mal dormida, a manhã daquele dia em que finalmente José Mário se dirigiria ao Centro Integrado Navarro de Brito, para ali viver o seu primeiro dia de aula do ano de 1977,pode ter sido preenchida com alguma audição de rádio, talvez, conforme era o seu viver quotidiano, intercalando programas de notícias e música. Ou, como era seu costume em vários momentos da sua jornada diária,  ele procurara andar um pouco no entorno do espaço em que residia – talvez um banho no rio da Brasilinha -, enquanto aguardava o momento em que ouviria o soar da sirene da “Leste”, indicando dez para as onze – momento em que se teria que dirigir para casa, caso lá não estivesse afim de tomar banho, vestir a farda e almoçar -, para depois, se dirigir até o local onde embarcaria no transporte coletivo que o deixaria no centro da cidade, em um terminal que ali funcionara até o início dos anos 1990.

Algum tempo depois, o seu padrasto introduziu na casa um aparelho de televisão, conforme ele mesmo dissera, tratava-se de um equipamento da marca GE, modelo Máscara Negra, que adquirira de segunda mão, o que lhe permitiu incorporar àquele ritual, o costume de ouvir as músicas executadas durante os instantes que antecedia a abertura da TV Aratu, então afiliada à rede Globo de Televisão – emissora de Salvador que opera no canal 4, cujo “jingle” de abertura iniciava com a frase “bom dia Bahia, Bahia do meu coração” e concluía com o epiteto “Canal quatro está chegando ao seu lar, TV Aratu está no ar” -, onde seria exibido um programa em que se ensinava inglês, cujo conteúdo não lhe despertava grande interesse, só mantendo o aparelho ligado para esperar a audição da música de abertura do “Sítio do Picapau Amarelo”, cantada por Gilberto Gil e, claro, o episódio, que ouvia, pouco antes do banho e do almoço.

Portanto, aquele seria o primeiro dia em que José Mário se dirigiria até o “Estadual”, no turno vespertino para retomar mais uma etapa letiva. Tomara banho, vestira a farda que consistia em uma calça de tergal, “boca de sino”, uma camisa daquele mesmo tecido, na qual já estava inserido o escudo do CILNB. O calçado era um Kichute”, talvez ainda aquele utilizado no ano anterior; levava uma prancheta com o seu material de escrita, uma Reglete de mesa, acompanhada de algumas folhas de papel ofício, visto não dispor mais de papel Braille além do punção que era levado no bolso.  Assim, depois de ter comido o seu almoço, composto de feijão, arroz, alguma “mistura” e, a indispensável farinha, que viria a ser o meio pelo qual a refeição renderia e, após o toque da sirene da Leste, que indicava já ser meio dia, o ansioso estudante saíra de casa para embarcar no ônibus que o levaria ao referido terminal, situado à rua Castro Leal, onde se imiscuiria naquele mar formado pelos demais jovens e adolescentes que convergiam dos diversos bairros da cidade, para dali, iniciarem a caminhada que os levaria até espaço onde seriam repartidos entre os pavilhões, as salas e as diversas séries a serem cursadas, para enfim, tomarem contato com os professores com os quais interagiriam por todo aquele ano, com as matérias que precisariam assimilar e com as tarefas escolares que teriam que desenvolver.

Ao ingressar no “Estadual” por aquele que então era o portão central, descia-se por uma espécie de rua calçada e com meio fio, andava-se cerca de 20 ou 30 metros  e se alcançava o pavilhão Luiz Viana, situado bem em frente. Algo parecido com um esquadro de marceneiro, ao lado direito do chegante, se destaca uma parte do prédio, iniciada antes mesmo que se acesse à sua frente, onde funcionavam os cursos de Técnicas Comerciais, Educação para o lar, além de abrigar as salas em que funcionava primeiro grau nível 1; à frente do chegante, se estendia um amplo espaço onde se podia encontrar as salas de coordenação, uma cantina – para os alunos que a podiam utilizar -, um bebedouro e um espaço usado para os jogos de bola de meia; ali, portanto, paralelo ao do prédio comentado acima, entrava-se pelo lado direito, percorria-se alguns corredores, subia-se e descia-se alguns conjuntos de degraus e, subindo-se o último deles, talvez a penúltima ou a última das salas, uma vez aberta, lá estavam carteiras, quadro e janelas que formavam o mobiliário e o espaço onde por quase todo o ano de 1977, arejada pela ventilação natural, José Mário ali esteve assistindo as aulas, sendo avaliado e, quando possível, interagindo com os colegas de labores inerentes ao processo formativo e adestramento cognitivo.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas, 14 de fevereiro de 2025

 

- historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS – PARTE V.

 

 

ERAM QUASE SETE MIL ALUNOS E MUITOS OS INTERROGARES!

 

Aqui, se pretende continuar a puxar o fio das digressões sobre uns tempos idos, fio que teve o seu ponto de partida, no primeiro dia do ano de 1977, quando José Mário se dirige até a Câmara de vereadores do seu município, com o fito de tomar parte no evento em que foram empossados o novo corpo legislativo e, o novo administrador da cidade. Antes de o encontrar na expectativa da chegada de março e, com ele, a retomada do seu processo de formação escolar, voltou-se um pouco ao final do ano de 1976, para ali encontrá-lo a debater-se com uma realidade que, aliás, não lhe era desconhecida, aquela de se encontrar só em meio a ruidosa, amorfa e “alegre” multidão, enquanto ele, precisaria voltar para casa triste, silencioso e pensativo. Depois de tentar responder a alguns questionamentos em torno daquela última digressão, finalmente, alcançou-se o mês de março e o seu início de ano letivo. Ali, se procurou digressar um pouco sobre dois elementos matemáticos que se apresentaram para José Mário, como sendo o seu “calcanhar de Aquiles”, razão pela qual ele ficara estacionário em sua seriação, por pelo menos três anos, os “monômios” e os “polinômios”. Desta forma, ao tentar elaborar mais uma digressão sobre aqueles tempos idos, que ajudaram a forjar o processo de amadurecimento daquele rapaz tímido, retraído e, mesmo aos quase dezessete anos, desprovido das ferramentas que o ajudassem a discernir os movimentos, os comportamentos, bem como, os modos de pensar e de agir das pessoas ao seu redor, que lhe permitisse decifrar os enigmas que a vida lhe apresentava e, que o tornasse capaz de tomar decisões, com o maior número possível de acertos, o que o tornaria apto para o indispensável interagir com o todo social.

Dito isto, faz-se necessário salientar que, o Estado da Bahia, tanto a sua capital, quanto algumas cidades médias do seu vasto território, experimentou uma expansão rápida e bastante abrangente do processo de interiorização da educação ginasial e secundária, no período em que foi governado por Luís Viana Filho (1908-1990), que tomara posse em 1967 e, governara até 1971, quando foi sucedido por Antônio Carlos Peixoto de Magalhães (1927-2007), que assumira os destinos dos baianos em 1971, que, por sua vez, fez-se suceder por Roberto Filgueiras Santos (1926-2021), que assumira as rédeas políticas e administrativas da Bahia em 1975, tendo permanecido no Palácio de Ondina até 1979, quando devolvera o comando político-administrativo ao seu sucessor.

Aquele momento histórico foi marcado pela construção de um grande número de prédios escolares que, à época, poderiam parecer monumentais ou “faraônicos”, como se vociferava na imprensa na ocasião, mormente, a da capital. Não obstante aquelas críticas, Alagoinhas foi uma das cidades baianas contempladas pela instituição de um Ginásio Estadual, em 1968, cujo funcionamento se dera temporariamente, no espaço onde houvera funcionado a escola do Senai, à Praça Barão do Rio Branco, tendo passado para o seu prédio definitivo em 1970. Já se disse em um outro texto publicado neste mesmo espaço que, José Mário ali estivera no mesmo ano em que começara o desenvolvimento das suas atividades naquele lugar, acompanhando o seu irmão mais velho, quando ainda se podia sentir os cheiros das tintas frescas, do cimento há pouco aplicado; daquele ar de mato verde, bem como da vasta vegetação que ainda era predominante em seu derredor; as carteiras nas salas de aula e o mobiliário existente nos espaços administrativos, ainda cheiravam a novo e, grande parte da área em que fora encravado, ainda se encontrava intacta ou em fase de conclusão das edificações. Era um terreno situado em uma área em que havia um grande número de xácaras e sítios diversos, pouco habitada, situada há cerca de dois quilômetros de Alagoinhas Velha; cerca de um quilômetros do centro comercial; próxima a um lugar chamado “fonte dos Padres – para onde acorriam alguns alunos mais ariscos, com o fito de tomar banho nas tarde frias ou quentes, enquanto transcorriam as aulas às quais haviam se furtado a assistir”. Ali foi erguido um conjunto formado por quatro pavilhões de aulas e um quinto, que abrigaria o setor administrativo, uma biblioteca, um auditório, tudo em espaços bem alentados. Cravado em amplo espaço de terra, ladeado  pelo também recém-inaugurado estádio Antônio Carneiro e ofuscando aquele que até então fora o único ginásio misto da cidade, embora fosse uma instituição privada, era nele que se refugiavam os filhos daqueles que poderiam até pagar uma mensalidade, mas, não poderiam pagar e manter os seus rebentos em Salvador.

Portanto, era já março, talvez na sua segunda septena, ao se encaminhar para o “Estadual” na primeira semana letiva daquele fim de verão de 1977, o grupo formado pelos cerca de sete mil alunos, distribuídos pelos três turnos de funcionamento daquela unidade escolar, quiçá se perguntasse entre si, ou de si para consigo, quais seriam as matérias que seriam ensinadas, quem seriam os professores que estariam diante dos alunos por todo aquele ano e, com quais colegas voltariam a interagir, quer em salas, quer nos corredores. E outros, já familiarizados com a estrutura física do Centro Integrado, talvez conversassem durante o seu trajeto até as dependências do aludido espaço de formação educacional,  a respeito de saber em qual pavilhão de aulas a sua turma seria alocada. OU ainda, em quais horários, tais ou quais matérias seriam apresentadas. Em suma, desde a saída de suas casas, situadas nos diversos bairros de que era formada a cidade, passando pelo transporte coletivo que precisariam utilizar para se deslocarem até o centro da urbe alagoinhense e, por fim, enquanto completavam o trajeto a pé pelas ruas que os levariam finalmente àquele prédio monumental que os receberia por todo aquele ano, aqueles estudantes, em grupos ou em marcha solitária, talvez conversassem entre si e/ou conjeturassem de si para consigo, o que seria, o que haveria, o que enfrentariam, o que esperavam aprender e apreender e, sobretudo, qual o resultado que alcançariam naquele ano de idas e vindas por aqueles caminhos, em tempos ensolarados e quentes ou, em dias chuvosos e frios, bem como nos dias primaveris de temperaturas mais amenas, que precisariam enfrentar, por mais aquele ano que se iniciava naquele dia. E José Mário, entre eles, ansiava por chegar o momento em que poderia começar a descortinar todos aqueles interrogares, quiçá, encontrando algumas respostas para eles.

Vale salientar de passagem, a heterogeneidade que marcava aqueles presumíveis sete mil alunos que frequentaram o Centro Integrado Luiz Navarro de Brito  nos seus tempos áureos, entre as sete da manhã e as dez e quarenta da noite. Alguns daqueles grupos de alunos estariam ali pela primeira vez, para cursar a quinta série; certamente, estranhariam a rotatividade de professores, de horários em que deveriam assistir cada matéria; da imensidão do espaço que se lhe apresentava estonteante e, para um bom número deles, quase assustador, considerando-se os pequenos espaços escolares de onde eram originários; muitos deles, talvez, viessem de comunidades rurais em que as instalações escolares fossem muito precárias e os espaços onde funcionavam fossem ainda mais acanhados. Alguns outros eram formados por aqueles que não conseguiram ultrapassar aquelas barreiras iniciais da nova caminhada no processo escolar e, repetiriam as séries iniciadas no ano anterior; para eles eram abertas turmas que os agregassem, como se fosse necessário afastar aqueles grupos de “repetentes” daqueles outros que estavam iniciando a nova caminhada na nova série, baseados, sabe-se lá em tais ou quais teorias pedagógicas, ou metodologias educacionais, que presumivelmente cravassem que os “repetentes” atrasariam os “seriados” e/ou os induziriam à “vadiagem”, no sentido de minar o interesse daqueles que “queriam alguma coisa”. Um terceiro grupo era formado por aqueles que precisavam dos cursos noturnos para completar – ou mesmo iniciar – a sua caminhada escolar, em concomitância com as atividades laborais, quase sempre desenvolvidas no comércio local, uma vez que não tivera a oportunidade de estudar – ou não pudera – naquilo que se convencionou chamar de “idade escolar” ideal.

Dizia-se que, a idade escolar padrão para que se completasse o ciclo que se iniciaria aos onze anos, tempo em que se deveria ingressar na quinta série i os catorze anos, quando se deveria concluir o primeiro grau, cursando a oitava série. Este último grupo de estudantes, que ingressava na quinta série depois daquela “idade escolar” padrão, talvez seja aquele que apresenta em sua caracterização endógena, uma heterogeneidade ainda mais acentuada, visto que se diferenciava, conforme já se salientou, pela idade em que iniciava a quinta série – em tese, aos dezesseis anos, idade mínima para se estudar a noite -, insista-se, também se diversificava no que respeita à motivação que o levava a insistir em estudar em circunstâncias pouquíssimo favoráveis ao cumprimento de tarefas escolares, ao acompanhamento das atividades de classe, à realização das chamadas atividades extraclasse, além da dificuldade de conciliar os horários de trabalho, de estudos e de descanso, tanto físico, quanto mental.

Quanto a José Mário, considerando-se a maior parte dos aspectos inerentes às suas peculiaridades, talvez ele pudesse ser mais bem encaixado no terceiro grupo dos alunos há pouco examinados, tomando na devida conta a heterogeneidade de sua formação. Embora ainda não estudasse no noturno, mas estava com a idade acima do esperado, ao cursar a sétima série, visto já ter completado dezesseis anos, tempo em que já deveria estar no segundo ano do segundo grau; embora ainda não trabalhasse, possuía grandes dificuldades para fazer frente às obrigações escolares e à elaboração das tarefas correspondentes a cada uma das matérias que precisaria dar conta. Embora contasse com o apoio de alguns colegas de turma e com o incentivo de alguns dos seus professores, tais aportes não eram suficientes para mitigar a falta de acesso ao material de leitura equivalente a cada disciplina, o que reduzia bastante a possibilidade de participação nas aulas, a apresentação das suas dúvidas e ao pedido de maiores e melhores explicações de questões mais específicas relativas à exposição dos docentes. É claro que isto dificultaria – embora não impedisse – a aprendizagem, o que prejudicaria muito a consolidação dos processos estruturais de formação discente – o que mais tarde se apresentou com maior gravidade, nas etapas posteriores. Logo, foi com estes interrogares que José Mário e os seus cerca de sete mil colegas de turma e prédio, enfrentaram o primeiro dia de aulas daquele início de caminhada.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas 09 de fevereiro de 2025.

 

historiadorbaiano!gmail.com

domingo, 2 de fevereiro de 2025

SEIS DIGRESSÕES SOBRE UNS TEMPOS IDOS – Parte IV.

– Os “Monômios” e os “Polinômios”

 

Fechados os parêntesis abertos no arrazoado anterior para que se pudesse refletir um pouco sobre alguns questionamentos propostos acerca daquilo que se escreveu sobre José Mário e a sua solidão em meio à multidão, volte-se, enfim, para o ano que se iniciara com a sua ida até a câmara municipal, prestigiar a investidura dos novos ocupantes dos cargos mais importantes da urbe alagoinhense. Ao sair daquela cerimônia pública, aberta ao ingresso de qualquer cidadão que por ela se interessasse, José Mário, provavelmente, dirigiu-se para o Jardim Pedro Braga, onde morava o seu irmão paterno mais velho com senhora e filhos ou, quiçá, dirigira-se ao então bairro do 10 de novembro, onde residia uma das suas irmãs paternas com marido e filhos, onde talvez tivera almoçado e tirado o cochilo da tarde; mas, também, ele poderia ter, simplesmente, retornado para a casa materna, desencantado pelo fracasso que experimentara, no seu intento de firmar novos lassos de convivência social.

O que ele fizera no transcurso de todo os meses de janeiro, de fevereiro e o início de março, não é possível precisar, embora se possa inferir que mantivera a sua rotina de visitas aos seus irmãos; de observar os nasceres e os terminares de dias quentes de verão, sem quaisquer perspectivas de novidades que lhes pudessem trazer alguma nova expectativa de mudança significativa no seu farfalhar. Talvez se possa aqui conjecturar, que ele estivesse dividido entre as suas audições de rádio e a angustiante espera da chegada de março, quando retomaria os ires e vires para o Centro Integrado Luiz Navarro de Brito, o já aludido “Estadual”, onde cursaria a sétima série do 1º, nível 2, como eram denominadas as seriações escolares, a partir da Lei 5692 de 1971, implementada pela Ditadura Militar que governava o Brasil desde 1964, cujo objetivo era reformar o ensino, suprimindo dele, elementos que pudessem incutir a subversão nos estudantes das novas gerações.

Para tanto, a dita Lei trouxera como novidade, a obrigatoriedade de ensinar Educação Moral e Cívica no primeiro grau e, Organização Social e Política brasileira, no segundo grau, para incutir a “brasilidade” nos jovens – o que, conforme pensavam os seus idealizadores, evitaria que caíssem nas garras do comunismo, que eles acreditavam estar logo ali, pronto para acercar e ganhar a juventude incauta e inocente -, além de introduzir os “Estudos Sociais” na grade de matérias a serem estudadas, com o fito de substituir o “pernicioso” estudo de matérias como “História”, Geografia, Sociologia ou Filosofia, o que, ainda conforme pensavam as elites governantes, levariam o cidadão a pensar, a refletir e, eventualmente, a contestar o regime que os oprimia em seu direito de pensar e, até mesmo o de viver e prover as necessidades básicas dos seus– quando prendia, torturava e tirava a vida de pessoas que julgavam “subversivas”, cujo crime era se contrapor ao Regime, sendo Rubens Paiva, Vladmir Herzog e Manoel Fiel Filho, aqueles que poderiam ser evocados como tendo sido os exemplos mais ilustrativos daqueles ”tempos de chumbo” vividos no País – e, como disse Chico Buarque de Holanda, viessem a “perceber” que os “subtraía”, por meio de “tenebrosas transações”.

Convém aqui ressaltar que, conforme já foi dito no primeiro escrito destas digressões, à época a que elas se reportam, José Mário não atinava para nada do que se aludiu acima. Para ele, não havia uma “ditadura Militar” mas, sim, um “Regime Militar” que governava o Brasil, instituído mediante uma “Revolução” em31 de março de 1964, que trazia como objetivo livrar o País da “corrupção” e do “comunismo” que ameaçava subverter a “pátria”, a “religião” e o “civismo” dos brasileiros. Isto é o que lhe era ensinado e, claro, no que ele acreditava. Informações acerca de tortura como aquelas que ceifaram vidas como as de um ex-deputado, de um jornalista e de um operário, massacres como os do Araguaia, por exemplo, a ele não chegara, se não, muito tibiamente, quando passara a cursar o segundo grau e, quando já contava vinte e um para vinte e dois anos e, mais claramente, um pouco mais tarde, quando entrara no curso de Licenciatura em História, na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, em 1986, quando contava vinte e cinco anos.

Conforme já se disse, ali, aos dezessete, José Mário não possuía acesso a qualquer tipo de meio de informação que não fosse o rádio, meio vigiado bem de perto pela Censura e, que também exercia a autocensura; aos jornais, às revistas ou a quaisquer outros meios de difusão escritos, mesmo os de caráter  favorável ao Regime, ele não tivera como aceder, visto não haver nenhuma outra forma de leitura compatível com a condição de cegueira, que não fosse aquela propiciada pelo Braille, ou pela leitura feita por terceiros. Considerando-se que as pessoas do seu convívio que eventualmente pudessem ler algum impresso estivessem no mesmo patamar que ele, no que tange à leitura meramente textual, sem quaisquer níveis de interpretação e/ou inserção nas camadas intertextuais, pouco ou nada lhe faria avançar no terreno do conhecimento das vicissitudes da política e da sociedade brasileira de então.

Assim, nem mesmo as chamadas “músicas de protesto” eram por ele compreendidas como tais; quando muito, eram apreendidas como irreverentes e ousadas, sem lhe causar maiores impressões, no que tange a compreender plenamente a mensagem que os seus autores e/ou intérpretes procuravam passar. Embora José Mário apreciasse a belíssima interpretação de “Cálice” e, até cantasse aquela música lançada em 1978, que ele ouvira na rádio Jornal do Brasil do Rio de Janeiro, nada entendia da subliminaridade que trazia aquela letra, que, inclusive fora severamente censurada pela diocese de Belém, o que, aliás, ele considerou absurda pois, conseguira entender que a letra não tratava de criticar um dos caros elementos da Igreja Católica, conforme entendia um dos seus prelados. No entanto, ele não conseguia associar aquele tipo de texto à situação política vivida naquele Brasil em que vivia; não compreendia que se tratava de uma música que pretendia denunciar o regime  militar que, além de acumular crises econômicas e sociais – que ele desconhecia naquele momento, volte-se a salientar -, também fazia crescer o número de mortos e desaparecidos políticos.

Mas, enfim, chega março e com ele, talvez, logo na sua primeira semana, o início do ano letivo. Com ele, também se reencontram antigos colegas, toma-se contato com outros novos e, no seu já velho conhecido Estadual, recomeça o périplo na busca pela continuidade do seu processo formativo: era a sétima série que para ele se apresentava, como mais uma etapa que precisaria completar. Nela, tomara contato com algumas matérias que lhe pareciam de fácil absorção , como a já aludida Educação Moral e Cívica e os inúteis Estudos Sociais; outras, se lhe afiguravam com um maior grau de dificuldade, o que exigiria dele um pouco mais de esforço cognitivo para dar conta daquilo que lhe seria cobrado, como fora o caso de mais uma invenção do Regime, “comunicação e expressão”, que pretendia juntar em uma única matéria, a gramática com os seus intrincados conteúdos, a Redação, com as suas técnicas do “bem escrever” e a literatura, resumida a leituras de alguma obra indicada pelo professor, cujo entendimento era cobrado mediante questões pouco abrangentes ou inovadoras, no que tange ao real interpretar de texto.

Mas, ainda mais grave foi o modo como se lhe afigurava a velha e quase intransponível matemática, com aspecto de que lhe impingiria maiores dificuldades para atravessar os seus emaranhados de parêntesis, colchetes e chaves, os tão temidos e, para ele, indecifráveis “monômios” e “polinômios”. Aliás, ao que parece, todos os estudantes que os tiveram que enfrentar, sempre se perguntaram, no auge da sua agonia por não conseguir compreender a razão de ser daqueles indigitados, qual a necessidade de ser imposto a todos o seu ensino? Qual a utilidade prática que aquilo viria a ter para o cidadão que, mais tarde, se teria que apresentar para habilitar-se em Administração, Secretariado, magistério ou enfermagem? Visto que há bem pouco tempo foram extintos os cursos colegiais e Clássicos, para que atormentar aqueles adolescentes, mormente, aqueles que não possuíam qualquer pendor pelos cálculos?

A despeito de tais questões ainda permanecerem sem resposta e os tais “monômios” e “polinômios” permanecerem atormentando a juventude dos tempos da “Inteligência Artificial”, José Mário foi fragorosamente derrotado por eles, naquele ano e no seguinte.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – alagoinhas 02 de fevereiro de 2025

 

historiadorbaiano@gmail.com