domingo, 27 de julho de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – VIII

– Obras e autores parte VI.

 

A ideia – ou necessidade – de refletir aqui sobre obras e autores que passaram pelos dedos de José Mário durante o seu processo de escolarização e/ou de formação da sua percepção de mundo, repousa em uma questão que sempre esteve rondando o seu cérebro, na medida em que o tempo passava e se construía o seu pensamento, nem sempre crítico, embora um tanto questionador, no que respeita ao entendimento que alcançava das leituras feitas – embora nem sempre tenha sido aquele o intento ao fazê-las -, reflexões sempre desenvolvidas a partir de um rememorar de momentos vividos ou de eventos pelos quais passou ou deles teve notícia. Este rememorar, como se vem insistindo aqui, é feito a partir de escolhas de quem rememora, mediante o escavar de camadas de memórias, algumas vezes bem profundas, espessas e cobertas pelo passar do tempo, quase sempre evocadas por quem lembra e ,trazidas à superfície, quando se dá, por fim, a escolha daquilo que se vai tornar público, o que se vai silenciar ou apagar, uma decisão, insista-se, sempre uma decisão daquele que lembra.

No arrazoado passado, se discorreu sobre algumas obras cujas leituras foram impostas aos estudantes, ao longo do nível 2 do então primeiro grau, por meio das quais, em geral, se esperava deles, apenas a compreensão do que fora lido, sob o ponto de vista da gramática normativa – ou na melhor das hipóteses, dependendo da professora que faria a avaliação, alguns elementos inerentes ao processo redacional -, pouco ou nada sendo cobrado do aprendiz, alguma noção daquilo que viesse a ser percebido nas entrelinhas da obra que acabara de ler; daquilo que eventualmente houvesse de subliminar nos textos recentemente percorrido por eles. No que respeita àquele aluno em causa, apesar de já contar com uma idade superior aos demais alunos que com ele cursara as quatro últimas séries do primeiro grau, não os conseguira ultrapassar o nível de compreensão do que liam, fazendo valer o que o maior passar dos anos lhe deveria conferir. Ou seja: a sua maturidade não era maior do que a dos seus colegas que contavam três, quatro ou mais anos a menos que ele. Não obstante ter ele lido bem mais páginas do que os seus colegas de série, não os conseguia ultrapassar no acúmulo de conhecimento que lhe permitisse melhor compreensão das linhas e, sobretudo, das entrelinhas das obras que leram com o mesmo objetivo: desenvolver as tarefas escolares.

Dentre as obras que José Mário lera, para além das tarefas escolares, ao menos três poderiam aqui ser citadas, para que o leitor tenha um melhor juízo daquilo que se vem apontando ao longo destes arrazoares. O gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975) comparece com duas delas, aliás, as duas únicas daquele autor brasileiro que fora lida pelo aluno baiano de Alagoinhas. A primeira que aqui se quer comentar é “Olhai os Lírios no Campo, publicada em 1938, caiu nas mãos de José Mário aproximadamente quarenta anos após aquela data. Como sempre, por meio da então Fundação para o Livro do Cego no Brasil, ele recebera em Braille, em três ou quatro volumes e, do mesmo modo como as demais, devorou-a, de capa a capa, sem, porém, ultrapassar a superfície das linhas que passaram sob os seus dedos. Da mesma maneira como se deu com outras obras que devorara, pouco ou nada ficou de entendimento, a não ser algumas expressões como aquelas que Eugênio tivera de ouvir dos moleques de sua idade “Calça furada”, dando a entender ao leitor que, embora Eugênio fosse um menino filho de alfaiate, aquele não conseguira “consertar” as calças do filho, evitando que passasse por aquele constrangimento diante dos colegas de folguedos e travessuras, infantis e juvenis. O que, aliás, não ocorria com José Mário, cuja genitora era lavadeira de ganho e, que fazia todo esforço para que o seu filho estivesse sempre com a roupa limpa e perfumada com patchouli, planta que sempre cultivara no quintal para tal fim. E, em laivos de alguma possiblidade de pensamento crítico, ele acabava por se perguntar, qual teria sido o motivo de Eugênio não ter as calças consertadas pelo seu pai, sem, no entanto, a questão se demorar muito no seu cérebro e, menos ainda, tentar encontrar alguma resposta, provisória ou precária que fosse.

A segunda das obras de Érico Veríssimo que José Mário lera com avidez e grande interesse foi “O Senhor Embaixador”, publicada em 1959, cuja leitura lhe fora sugerida e induzida por dois de seus colegas, Carlos Caldeira, seu coetâneo, além de ser seu contemporâneo no processo de escolarização e Genésio Silva, seis anos mais velho do que os dois e, já fora do contexto escolar, com os quais disputara não só o tempo dispendido para a leitura completa daquelas mais de quatrocentas páginas ( considerando o exemplar em tinta), mas, algumas possibilidades de entendimento que viessem a ter daquela obra, transcrita em Braille e, em seis alentados volumes. Por mais que os três se tivessem esforçado no sentido de percorrer aquelas linhas, de tentar se apropriar daquele texto profundo e denso, pouco conseguiram compreender além da superfície  da proposta do escritor, uma vez que, no caso específico de José Mário, apenas depois de passados alguns anos e de adquirida alguma experiência de vida e de leituras outras, ele percebeu alguns elementos da obra que não estavam disponíveis ao nível do entendimento que tivera de sua leitura à época aqui relatada. A História de uma república imaginada pelo autor em algum lugar do Caribe, para aqueles leitores, além de acreditarem não passar de uma mera ficção ricamente desenvolvida pelo autor, aqueles leitores superficiais não compreenderam nem as entrelinhas nem os contextos que envolveram os desenvolvimentos das tramas encontradas no romance, razão pela qual, eles deram importância apenas ao pitoresco, animalesco e anedótico que encontraram e, que chamaram a atenção, como a última frase da obra, pronunciada pelo protagonista Gabriel Heliodoro – o então embaixador da “República do Sacramento” em Whashington -, ao ser colocado no paredão para o fuzilamento, por ter sido o representante da ditadura derrubada pela oposição “Lego mis Cojones al museu...”.

A terceira das obras que se escolheu para apensar um comentário neste arrazoado, é “E a Porteira Bateu”, escrita por Francisco Marins (1922-2016)e publicada em 1963. A sua leitura foi uma sugestão , para melhor dizer, uma indução feita por Eraldo Galvão, um pouco mais velho do que José Mário, apesar de estar transitando pelo mesmo processo de formação escolar, fazendo-lhe crer que a obra era imprópria para a sua idade (15 anos) à época e ele, o “sensor”, pasme-se: contava dezesseis. Mesmo tendo insistido e argumentado que entre eles quase não havia diferença no contar dos anos, isto é, ambos eram menores e, portanto, fosse aquela a razão de um não poder ler a dita obra, o outro, igualmente e pelo mesmo motivo, não o poderia.

Diante do fato de não haver aquela obra na biblioteca do internato onde ambos moravam e, ela só constar no setor Braille da biblioteca Central do Estado, José Mário driblou a “Censura” do seu coetâneo e a sua pouca disposição de fazê-la chegar às suas mãos, solicitando-a à Fundação para o Livro do Cego no Brasil, de quem recebeu algumas semanas depois mas, só veio a ler, quando voltara para a sua casa nas férias, não tendo atinado a razão do seu colega assegurar ser leitura imprópria à idade.

No entanto, insiste-se em salientar que, malgrado ter percorrido todas as suas páginas, procurando digerir cada uma das linhas com avidez, nada aprofundou do seu conteúdo textual, que viesse a provocar uma reflexão acerca daquele conteúdo. A primeira das suas preocupações, fora a de identificar a razoabilidade de ser aquela leitura imprópria a um rapaz ainda na metade da sua adolescência, uma vez que o tema ali exposto não continha qualquer ideia ou forma de pensar que já não conhecesse, ao menos, superficialmente. Talvez, aquilo tenha dificultado àquele leitor, realizar um mergulho mais profundo e, sobretudo, profícuo naquelas páginas, com o fito de tirar delas algumas noções que embasassem a construção de um pensamento crítico a respeito de algumas situações abordadas pelo autor. Pelo fato da leitura ter sido feita sem os elementos que lhe permitissem um melhor aproveitamento da proposta do autor – sequer ele sabia qual era –, acabou por ficar só na superfície, como se deu nas demais obras, restando alguns de seus fragmentos no rememorar do leitor, como por exemplo, o nome de um dos protagonistas – Adão Pungá – morto em confronto com nativos, com posseiros, ou alguma coisa do tipo; bem como a tentativa por quatro vezes frustrada de um outro personagem – talvez o principal – em ter um filho homem para fazer o seu herdeiro e, ao conseguir tal intento, depois de simpatias e rezas muitas, acabou lhe nascendo um menino frágil de saúde e corpo, tendo ele de se contentar com as três ou quatro filhas até ali geradas, arriscando a divisão do seu vasto patrimônio, o que muito afligia o seu espírito. Pronto. Acaba neste ponto a compreensão de José Mário daquela leitura.

 

Alagoinhas 27 de julho de 2025.


Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

  

domingo, 20 de julho de 2025

As Linhas e as Entrelinhas – VII

 

– Obras e autores parte V.

 

O conjunto de arrazoados que se vem desenvolvendo há já algum par de meses neste espaço virtual, chega em sua sétima postagem, sempre contando com a paciência daqueles que se tem dignado a ler as considerações que aqui vem sendo feitas. Dito isto, antes de continuar a discorrer sobre as dificuldades enfrentadas por José Mário em compreender o que lera no tempo em que se dava o seu processo formativo, volta-se a postular algumas premissas concernentes à memória, reforçando a proposição que indica haver um processo de escolha feita por quem lembra, acerca do que lembra e, sobretudo, daquilo que, uma vez lembrado, é verbalizado, silenciado ou apagado. Conforme assevera Ecléa Bosi (1936-2017), ainda nas páginas introdutórias de sua já clássica “Memória e Sociedade: lembranças de velhos” – largamente utilizada por este escrevedor –, “A memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. [...]. Lembrança puxa lembrança e seria preciso  um escutador infinito” BOSI, 1994, P. 39). Mais adiante, ao discorrer sobre os diversos teóricos da memória que dão lastro aos pressupostos com os quais ela lida por todo o seu corolário de argumentos, Bosi propõe o enunciado que este garatujador considera a pedra de toque com a qual se deve lidar, ao tratar de produzir estudos ou realizar pesquisas, tendo a “memória” – individual ou social/coletiva - como campo para a  reflexão histórica. Disse ela que, “Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem  o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O  sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma  repetição do estado antigo, mas uma reaparição. (BOSI, 1994, P. 81).

É assim que, conforme relata no último capítulo da obra, ao retornar dos espaços onde ela realizara as entrevistas, Bosi propõe a si mesma, algumas reflexões, enquanto se encaminha para a sua residência ou mesmo, para talvez, realizar uma segunda entrevista do dia, observando os espaços por onde transita, procurando no seu próprio rememorar, os elementos que tragam à sua lembrança, vestígios do lugar por onde passara a caminho da escola – quando jovem – ou, quando ainda criança, levada pelas talvez já trêmulas mãos do seu avô. Daqueles cismares carregados de tempos pretéritos, aquela então pesquisadora acaba por concluir que:

 

“[...]. Para localizar uma lembrança não  basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas,  pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado. Como  transmitiríamos a nossos filhos o que foi a outra cidade, soterrada embaixo da atual, se não existem mais as velhas casas, as árvores, os muros e os rios de outrora?” (BOSI, 1994, p. 413).

 

Neste sentido, se pretende que este “desenrolar de fios de meadas” propugnada na passagem acima transcrita, seja um pouco a que se propõe este escrevente, ao rebuscar nos seus relembrares, um conjunto de fragmentos que tem procurado encaixar nestes garatujares. Com um tal desenrolar, pode ser que se consiga apreender algumas das muitas nuances que envolvem o lembrar e, principalmente, ao se trazer o lembrar para a formulação de algumas reflexões que ajudem na construção de alguns postulados que permitam compreender o trabalho desenvolvido pela memória, tanto no que respeita ao indivíduo de per si – que conforme Halbwach “é quem lembra” –, quanto no que tange à sociedade.

Portanto, retomando uma parte do caminhar de José Mário em seu esforço para se ajustar à necessidade de se fazer adequar aos parâmetros sociais de escolarização, de aquisição de cultura e de incorporação de hábitos que indicassem algum nível de civilidade, aqui se pretende evocar a obrigação de que se fizessem leituras que lhe foram dadas como tarefa obrigatória – tanto quanto aos demais estudantes, saliente-se – durante o transcurso do seu processo escolar. Embora ele tenha cursado três vezes a sétima série, conforme já se apontou em postagens anteriores, em todas elas tendo havido obras a serem lidas, somente três delas permaneceram na sua lembrança, apesar de, somente os seus títulos, pois, exceto uma, todas as demais lhe foram impostas pela autoridade escolar: a professora de Português ou, para os que preferem, de Comunicação e Expressão.

A primeira das obras aludidas, lida na quinta série iniciada em Alagoinhas, mas integralizada em Salvador, no Complexo Escolar Carneiro Ribeiro Filho, em 1975, foi “A Ilha Perdida”, de Maria José Dupré (1898-1984), que, conforme já se salientou, apenas o título permaneceu na lembrança daquele aluno que se esforçava por cumprir os deveres estudantis, sem no entanto, atinar para a razão daquela leitura, daquela obra e, menos ainda, sem a compreensão do que traria para o seu desenvolvimento escolar e pessoal, uma leitura descontextualizada da sua realidade social, econômica, cultural e, ainda, qual a relação que teria que estabelecer entre os personagens e as suas peripécias, com o viver do leitor em seus limites sensoriais. Além disto, inquiria ele, se haveria alguma  possibilidade de trazer para si e para o seu dia a dia, algum resultado prático daqueles enredos. Cria que não; ao menos, não lhe fora indicado que o houvesse. Aquele leitor compulsório, sequer sabia que se tratava de obra voltada para o público infanto-juvenil, exceto, o conjunto dos seus personagens. Uma outra leitura de uma obra da mesma autora “Éramos Seis”, fora igualmente imposta àquele aluno, em um tempo e em uma série que ele não saberia precisar – talvez, aquela leitura tenha sido feita na sexta série, cursada em parte no Instituto Central Isaías Alves (ICEIA) em Salvador ou, já no Centro Integrado Luís Navarro de Brito, em Alagoinhas, no ano de 1976 –, com o mesmo resultado da primeira, continuando a não compreender o porquê de sua leitura e da obrigatoriedade de a fazer. Não lhe fora dado conhecer o contexto em que a obra fora escrita – se o foi dado, lhe escapou à memória e, sobretudo, à compreensão –, o que talvez o ajudasse a melhor entender o que lia mas, principalmente, por que e para que lia. Isto é: fora uma leitura feita para cumprir a obrigatoriedade escolar e realizar a tarefa que teria uma nota a ser atribuída, que lhe ajudaria a compor a média por meio da qual poderia vir a ser aprovado.

A segunda das obras que lera por obrigação escolar, que lhe fora apresentada no formato de livro gravado -, talvez tenha sido aquele que tomara contato pela primeira vez naquela modalidade (cuja voz de leitura, este autor não lembra com precisão se foi a da professora Ailma ou da também professora Zilma)– foi  escrita por Maurice Druon (1918-2009), cujo contato se deu na última das sétimas séries, aquela que fora cursada até o fim e que se lograra passar adiante no processo de escolarização. Ali, o estudante em questão, já entrara no ano XX do seu existir; o livro que constava no conjunto das leituras obrigatórias para a sétima série, ainda que aquela turma fosse composta por gente que já contava mais de quinze ou dezesseis anos, seria uma obra infanto-juvenil, “O Menino do Dedo Verde”. Dela, ainda restam alguns fragmentos do seu enredo, sobretudo, aquela ideia de que Tistu, seria um “anjo” e, como tal, conseguira transformar em flores os projéteis que seriam usados em um conflito iminente e,que fora evitado, por conta daquela inesperada transformação. Mas, onde estaria o contexto daqueles escritos? Qual a razão para os ler, quais as lições a se tirar de tal leitura e, claro: para que fazer tal leitura, a não ser para se incutir os elementos gramaticais e redacionais de sua composição? Tais perguntas, evidentemente, ficariam sem respostas, exceto, talvez, a última, uma vez que os alunos foram inquiridos pela excelentíssima senhora professora, sobre tais propósitos. No entanto, nada de entrelinhas, subjacências ou intertextos que ali pudessem existir, que poderiam ser apontados e, claro, instigar um aprofundamento naquele conteúdo, por parte daqueles alunos.

Por fim, para o que se tem proposto discorrer neste rememorar de tempos idos, a terceira e última obra que se leu por conta da obrigatoriedade de se percorrer as páginas de um arrazoado literário para fins didáticos e escolares foi “Clarissa”, tendo sido a única produção literária que não foi imposta a José Mário mas, sim, escolhida em comum acordo com a professora Edna Garcia Batista (1945-2017), com quem ele cursara a oitava série e, saliente-se, de quem se tornou um pouco mais do que um aluno, pois acabou por construir uma amizade que se desenvolveu para além dos muros escolares. Trata-se de uma das diversas obras escritas por Érico Veríssimo (1905-1975), que aquele aluno lera em Braille, um pouco antes de a eleger – e também por isto – para que por meio dela, a sua professora o pudesse avaliar, exigindo dele apenas o fazer uma segunda leitura, desta vez, percorrendo aquelas páginas, na tentativa de “adivinhar”, por assim dizer, o que aquela professora poderia vir a perguntar.

Saliente-se que, em tal tipo de avaliação, prevalecia o caráter de aferição de aprendizado, apoiado no processo de memorização, o que os alunos chamavam de “decorar”. Portanto, como nos demais processos já comentados, nada de informar a existência de contextualização; nada de incentivar a compreensão do desenvolvimento da trama; nada de propor uma reflexão em torno do seu conteúdo, no que respeita à possibilidade de uma aplicação prática daquilo que eventualmente fora aprendido e ou apreendido. Aquela professora em especial, focou o seu propósito avaliativo no que dizia respeito à compreensão do texto e, eventualmente, instou o avaliado a perceber algumas variações linguísticas, apontando para a presença de alguns modos de falar de personagens bem destacados, como por exemplo, um dentre eles que, naturalmente incorporara ao seu falar, a expressão “j’ouviu?”.

 

20 de julho de 2025 – inverno brasileiro – Alagoinhas, Bahia.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 13 de julho de 2025

As Linhas e as Entrelinhas VI

 

 

– Obras e autores parte IV.

 

Conforme já é cediço e, tem sido enfatizado nestes garatujares, o processo de rememoração se dá, em geral, a partir de escolhas feitas por quem se dispõe a lembrar; também, se dá a partir de elementos materiais que podem ser acessados através dos sentidos – como por exemplo, alguém que vê u prédio antigo e ele associa a algum momento do seu viver, como o seu trajeto para a escola, ou para a casa de amigos, avós;; outro que sente o cheiro de um perfume há muito não aspirado e, lembra do primeiro encontro com alguém que lhe inspirara o primeiro sentimento de afeto; um terceiro que toca com os seus dedos em um veículo antigo, seu conhecido, no qual esbarra enquanto percorre uma calçada, acontecendo de lembrar, quiçá, de alguém que tivera um daqueles e ele o soubera ou conhecera; ainda um quarto que degusta algum alimento, caso emblemático de Marcel Proust (1871-1922), que acaba por trazer à tona lembranças de infância, há muito recobertas por espessas camadas de tempo –, bem como a tarefa de lembrar é possibilitada pelo mergulho do rememorador no tempo, em busca de escavar as camadas já superpostas e, delas, extrair momentos, fatos ou experiências que, por certo, não viriam a ser despertados por meio de ações sensoriais materializáveis. Para este último tipo de exercício do lembrar, se faz necessário recorrer à “memória coletiva”, muitas vezes,  encontrável em uma conversa com pessoas da mesma idade do interlocutor ou, com alguém alguns anos mais acumulados em relação aos primeiros, uma audição de rádio, uma leitura de periódico ou livro antigos, fazendo com que aqueles lembrares saltem dos seus refúgios e se apresentem a quem lembra, que por sua vez, torna perceptível por meio de um texto escrito ou uma mensagem de áudio, por exemplo.

Há já alguns arrazoados, este escrevedor vem procurando discorrer sobre o processo que envolve a leitura que, em geral – ou pelo menos se espera –, consiste no contato, na apreensão e, principalmente, na compreensão daquilo que se tenha lido, o que pode significar – ou não – o pleno êxito do autor em passar a sua mensagem. No entanto, como diriam os mestres da língua, para se dar a compreensão da comunicação textual, faz-se necessário haver uma adequada decodificação do pensamento que foi exposto por meio do texto em questão – que pode ser escrito ou verbalizado -, por aquele que a recebera. Em grande parte das vezes, a adequada decodificação da mensagem apreendida, requer uma leitura que seja feita para além das linhas que se apresentam na superfície do suporte no qual a mensagem esteja inserida. Trata-se daquilo que se tem denominado “entrelinhas”, portanto, aquilo que estaria nos elementos não encontráveis diretamente no texto lido; aquilo que se encontra nos contextos que envolvem o texto em causa, que, grande parte das vezes, seria o resultado “resumido” dos contextos que o produzira. Seria os “por quês” daquele texto; as tensões que envolveram a sua escrita; as condições sociais e culturais que propiciaram a sua construção e, sobretudo, os meios que permitiram a sua difusão.

É assim que se volta a José Mário, na altura em que contava entre quinze e dezessete anos, momento em que tivera acesso a um grande número de obras literárias e que as devorara quase insaciavelmente, mas, que não as compreendera adequadamente. Para este arrazoado, à guisa de exemplo do que se foi afirmado, aqui serão abordadas três dentre as obras de José de Alencar (1829-1877) que lhe passaram pelas mãos e foram percorridas inteiramente pelos seus dedos. Chegadas à si por intermédio da Fundação para o Livro do Cego no Brasil, mediante sua solicitação, elas foram lidas com grande atenção e interesse; até se procurou refletir sobre o texto em si; as leituras foram feitas sem pressões externas de obrigação escolar; foram feitas nos momentos de silêncio e de temperatura ambiente, sem extremos de calor ou frio. No entanto, lhe faltavam ferramentas outras que, talvez, lhe pudessem auxiliar no intuito de promover a compreensão adequada de cada uma daquelas obras, inclusive, do seu contexto, embora ele soubesse que elas foram escritas em um outro tempo e em um outro lugar. Por outro lado, desconhecia que elas foram escritas em uma outra conjuntura – sequer sabia da sua existência como elemento de análise – nem mesmo que foram ambientadas em uma outra estrutura social – igualmente, sua desconhecida, como elemento que lhe pudesse fornecer alguma compreensão da proposta do autor.

A primeira das obras de José de Alencar que aqui se quer abordar, no sentido da dificuldade de sua compreensão por parte daquele leitor, é “Senhora de 1975, apresentada na ordem que foi lida por José Mário e, não necessariamente, na ordem de sua publicação, uma vez que ele não possuía o conhecimento dos parâmetros de uma leitura que levasse em conta o momento e o motivo do surgimento de cada obra e, como já se salientou em arrazoados anteriores, ele não possuía as noções básicas de quem era o autor – exceto o seu nome, logicamente –, a qual escola pertencia, qual o seu pertencimento social ou político ou, onde ele moldara o seu modo de pensar – este ponto, longe das cogitações daquele leitor. Para ele, o que estava em conta, no que respeita à sua compreensão de leitura, era o caminhar da narrativa, o seu desenvolvimento, o mais linear possível e, sobretudo, o final por ele esperado: o casamento, mas, fundamentado naquilo que ele entendia ser o “amor” e não, uma negociação financeira, onde os interesses “afetivos” não eram levados na devida conta. Claro está que, era por estes parâmetros que José Mário compreendia estar entendendo a obra em sua inteireza. No entanto, ele desconhecia que o que forjara aquele enredo que ele dissera não ter apreciado, o que estaria nas entrelinhas daquele desenvolvimento que o autor dera a obra, precisamente, era o contexto social e o caldo cultural que a forjara. Mesmo tendo lido a obra pouco mais de cem anos depois de sua publicação, ele não a compreendera como uma produção literária que demarcava um tempo, um lugar, um modo de pensar, calcado em elementos econômicos, sociais e culturais diferentes daquele em que o desavisado leitor se encontrava.

 O Guarani” de 1857 foi a segunda das obras em que José Mário apresentou grande dificuldade em compreender, sobretudo, as suas entrelinhas e o contexto envolvido em sua criação “. Nela, o texto sobrepujou qualquer tentativa de inferência a respeito do seu contexto, pois, além do leitor sequer atentar para a possibilidade da sua existência, ele foi completamente envolvido pelo desenrolar da obra – que transcrita em Braille rendeu cinco volumes -, reduzindo a sua compreensão aos desfechos dados pelo autor. José Mário se deu por contente pelo fato de Loredano não ter conseguido qualquer dos seus intentos; por Peri ter sido reconhecido como “herói” e por Ceci ter sido salva por ele e, claro, por talvez, ter se tornado sua esposa. Pronto. Acabou a compreensão da obra, evidentemente, uma compreensão parcial e quiçá, destorcida, pelas razões já apontadas acima, agravadas pelo entendimento por parte do leitor, de que se tratava de um “romance” clássico, com começo, meio e fim, presumíveis ou mesmo, desejáveis por quem os lia.

A terceira obra de José de Alencar que José Mário  não conseguira compreender as suas entrelinhas e, saliente-se, aquela não compreensão acabou por se tornar um obstáculo para outras situações por ele vividas nos anos que transcorreram mais à frente, foi “o Tronco do Ipê” de 1881, lida quando ele contava cerca de dezoito ou dezenove anos. Para ele, aquela obra acabou por influenciar o seu modo de pensar, no que respeita à relação afetiva, uma vez que ele compreendera aquelas linhas como sendo, diriam hoje os metodólogos, “uma representação do real” e não, uma construção literária que, necessariamente, não significaria a expressão de uma realidade dada. Aquela “alvíssaras” dada a Mário, por seu retorno à fazenda; a ansiedade que marcara Alice pela chegada do amigo de infância  que, já era encarado naturalmente como seu futuro marido, deu a José Mário a ideia, equivocada, logicamente, que a diferença social – no seu caso, agravada com a diferença sensorial – seria suplantada, em qualquer tempo ou lugar, pelo “amor” que se procurara implantar em Alice, herdeira e dona de tudo, por Mário, desprovido de tudo, mas que trazia na bagagem o bacharelado obtido em Coimbra. Para José Mário, a ascensão social seria o abridor de portas,, mas o “amor”, seria o abridor de todas as portas. Mal sabia o desgraçado leitor que, as coisas não funcionavam bem assim; o tempo e a vida é que acabaram por lhe ensinar esta verdade dura e crua. Não sabia ele que, havia um contexto inserido naquela obra, que, evidentemente, ele não conseguira ler, nas suas entrelinhas.

E, à guisa de conclusão, uma quarta obra de Alencar que aqui poderia ser evocada e, que o leitor em causa sequer conseguira avançar em suas páginas, só vindo a fazê-lo alguns anos depois da primeira tentativa, seria “Til” de 1872. A rudeza como o autor introduz os personagens e a escolha que fizera para entrelaçar os primeiros enredos da obra, acabaram por demonstrar àquele leitor que, a trama não consistiria em mais um daqueles romances novelescos que tanto apreciava, que acabaria por ter casais perfeitamente ajustados entre si, cujos enlaces se dariam ao fim e ao cabo. AS primeiras linhas da obra não lhe deram o entendimento de que assim seria, fazendo com que o leitor superficial recuasse da empreitada. Bem mais tarde, quando fez a leitura completa e, saliente-se, já no formato digital, ele acabara por compreender que a proposta do autor passava longe daquilo que ele cogitara inicialmente, embora, não deixasse de ter alguns enlaces afetivos, porém, com um aporte bem humano, ao colocar um personagem, o que dá título ao livro, pouco usual nas obras escritas naquele contexto de século XIX, em que o “perfeito” era buscado pelos autores e, quiçá, exigido pelos leitores, sobretudo, aqueles tão superficiais quanto o era José Mário.

 

Alagoinhas – 13 de julho de 2025

 

José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com