domingo, 12 de janeiro de 2025
Seis digressões sobre uns tempos idos – Parte I
Saiu tão anônimo quanto entrou.
Naquele sábado, primeiro de janeiro de 1977, a Câmara municipal de Alagoinhas daria posse ao seu novo prefeito, eleito em 15 de novembro de 1976, o ex-vereador, comerciante de carnes e pecuarista da região, Miguel Santos Fontes, bem como o vice-prefeito Jeferson Vilanova. Antes, tomara posse a nova composição da Casa legislativa, formada por treze edis, que foram para a legislatura 1977-1983: José Ribeiro Libório (ARENA, João Cardoso da Cruz (ARENA), Nilton da Cruz Esteves (ARENA), José de Deus Oliveira (ARENA), Newton Andrade Pimentel Sampaio (ARENA), Antôn io Edson da Silva Costa (ARENA), Walter Altamirano Robatto Campos (ARENA), Jamim Nascimento Silva (ARENA), Hostilio Ubaldo Ribeiro Dias (ARENA), João Bosco de Farias Lins (MDB), Josaphat Paulino dos Santos (MDB), José Antônio dos Santos (MDB) e Genário Carvalho Damião (MDB).
Para prestigiar o evento político mais importante de uma cidade, ali estaria reunida, além de uma grande assistência formada por populares de várias matizes políticas, econômicas, sociais e culturais, enfim, curiosos diversos, sem quaisquer distinções de cor, classe ou credo, além de autoridades civis, militares e eclesiásticas.
Ainda bem cedo, José Mário levantara – talvez sequer tenha dormido -, tomara o seu café frugal e saíra para também tomar parte naquela efeméride, embora houvesse acabado de completar dezesseis anos, o que ainda não lhe conferia a faculdade de votar, logo, ainda não sendo considerado “cidadão”.
Mas, indiferente a isto, lá fora ele para o centro da cidade, a fim de incorporar-se entre aqueles que se espremiam no espaço exíguo do prédio onde estava instalada a Câmara, aguardando, principalmente, os discursos que certamente seriam proferidos pelas autoridades e, sobretudo, pelos vereadores que ali seriam investidos da condição de legisladores municipais.
Acreditando estar vestido com o que possuía de melhor em sua pouca variedade indumentária, talvez tenha sido olhado com desdém por uns, com desprezo por outros e, até mesmo com compaixão por outros tantos e, quiçá, considerado um palhaço por mais alguns poucos...
De certo mesmo é que, José Mário estava ali, em meio ao grupo formado pelos curiosos que se acotovelavam naquele pequeno espaço onde funcionava a Câmara Municipal, com o fito de assistir àquela cerimônia que, para eles, se lhes afigurava como um espetáculo, como uma distração a ser prestigiada, em uma cidade ainda pequena e pacata como o era Alagoinhas, no que tange ao campo da diversão e/ou das novidades políticas e sociais.
Mesmo já tendo transcorrido quarenta e oito anos desde aqueles eventos, até a digressão ora em curso, este escrevedor não é capaz de atinar o que motivara aquele rapaz, mal entrado na adolescência e já bastante atrasado no seu processsso de escolarização, a se interessar pelas disputas políticas locais, saliente-se, desde a campanha eleitoral, ocorrida meses antes, visto ter ele estado em diversos comícios, sobretudo aqueles realizados mais ao alcance de si, embora, sem demonstrar entusiasmo por qualquer um dos quatro candidatos que se apresentaram para a disputa eleitoral: Marco Antunes (MDB), Filadelpho Neto, Miguel Santos Fontes e Solon Barros, estes últimos, candidatos pela Arena – sob o instituto da sublegenda, razão pela qual, aliás, foi possível a vitória de um dos arenistas, por meio da soma da votação recebida pelos três, sufragando o mais votado dentre eles. Convem salientar que, para o eleitor mediano, aquilo não fazia o menor sentido, uma vez que, para aquele, o vitorioso deveria ter sido o candidato do MDB, que obtivera uma votação superior a aquela obtida pelo arenista que fora considerado o eleito.
A dificuldade que este escrevedor possui em entender o que teria levado José Mário a se dirigir até o centro da cidade naquele dia Primeiro do ano, está no fato de que, aquele moço curioso que se imiscuíra na assistência daquela importante cerimônia político-administrativa, não possuía conhecimento e/ou consciência histórica; não possuía maturidade pessoal e/ou intelectual para fundamentar quaisquer preferências políticas – partidárias ou eleitorais -; sequer sabia ao certo de que se tratava, quando ouvia expressões como “ditadura militar”, “golpe militar”; sua formação histórica era precaríssima, visto que, além de não contar com acesso a leituras profundas sobre praticamente nada, era aluno de escola pública, forjado no mundo dos “Estudos sociais”, instruído por professores conservadores – ou vigiados, não sabia -, sequer lera ou ouvira sobre a existência de uma “repressão”, nem que vivia, estudava e caminhava, sob a vigência de um “Ato Institucional”, pois, a imprensa, em geral, o omitia; ou, quem sabe, talvez até falasse; mas ele, ele de nada quisesse saber, ou com nada daquilo se importasse, posto que, aquilo não dissesse respeito a ele, visto que, ele não era “subversivo”. Afinal de contas, aqueles seus professores apenas falavam de valores “Pátrios”, dos “símbolos Nacionais”, de datas, acontecimentos e pessoas “importantes”, que o fizera aceitar, abraçar e incorporar ao seu “construto histórico”, como sendo o “real” eo fizera absorver como factível, uma “História oficial”, que exaltava os feitos da “Revolução” e os “avanços” econômicos, políticos, tecnológicos e educacionais, promovidos pela sua implantação em 1964 e, pelos seus desdobramentos posteriores. Se há “uma repressão”, talvez dissessem, era sob os enquadramentos legais e, sobre aqueles que se opunham ao regime e se levantam contra a sua investida contra a corrupção e a subversão dos seus detratores. E em tudo isto, aquele moço acreditava, embora não fosse um entusiasta, saliente-se.
Dir-se-ia qe José Mário possuía um elevado grau de dificuldade para ir além da superfície da compreensão de texto, pois, apesar de ler algumas das excelentes matérias publicadas pela revista Realidade – aquelas transcritas na revista Relevo (em Braille) -, não conseguia ir muito além do “significado das palavras”. A profundidade daquelas matérias era quase que impenetrável para ele. A sua formação escolar era quase sem livros, pois eles lhes eram inacessíveis, sobretudo, em transcrição Braille, embora a sua formação literária fosse mais ampla, pela mesma razão inversa, isto é, havia uma produção e uma distribuição de livros em Braille, que abrangia as diversas criações literárias, sobretudo, aquelas do século XIX.
Malgrado o acesso a um largo número de obras e autores e, a voracidade com que ele percorria as páginas e as partes em que eram divididos os livros em Braille que lhe caíam nas mãos, aquela leitura era superficial, mecânica, emotiva e, quase sempre, acrítica, pouco ou nada reflexiva, o que significava não alcançar o objetivo esperado pelo contato com tão vasta e diversificada gama de autores e o seu modo de pensar, no que tange à construção de uma percepção e à uma leitura do mundo que o cercava. Em suma, José Mário, que naquele ano de 1977 entraria na sétima série do primeiro grau e completaria dezessete anos ao se findar mais aquele ciclo de trezentos e sessenta e cinco dias, embora fosse um leitor voraz, não conseguia ultrapassar a barreira da compreensão dos signos e das palavras, para aceder àquilo que se poderia chamar de interpretação além das letras e dos vocábulos por elas formadas. No seu processo formativo escolar e/ou literário, não foram incorporadas as ferramentas indispensáveis para desenvolver a capacidade crítica que lhe era inerente, mas, sem os instrumentos que lhe permitissem o seu exercício, no que tange à reconheceras diversas percepções de mundo que se lhe apresentavam, com o fito de poder, ele mesmo e de per si, fazer a sua própria leitura e apreender o mundo a sua volta,, alcançando a capacidade de o compreender.
No entanto, a despeito de não dispor de tais ferramentas; apesar de pouco ou nada compreender daquilo que se passava naquele acanhado espaço do legislativo local, ali, ele permaneceu durante todo o transcorrer da cerimônia e dos seus desdobramentos. Porém, José Mário saiu dali, tão anônimo quanto entrou. Ninguém o chamou para um dedo de prosa; ninguém o inquiriu, sequer, o que fazia ali, visto não ser parente, nem mesmo conhecido dos empossados; não pertencia ao seleto contingente dos eleitores; não era ligado a qualquer movimento social; não tinha acento nas rodas de frequentadores dos bares e dos restaurantes da cidade. Não se deparou com qualquer dos seus colegas da já concluída sexta série... O que ele fazia então ali? O que queria ele ali? No que pensava poder obter, estando ali?
Saliente-se de passagem que, embora ele se encontrasse no meio de um número considerável de pessoas, era como se José Mário Estivesse só; apesar de se ter apresentado para cumprimentar as autoridades que ali foram investidas em seus cargos, o fizera apenas conforme acreditava ser o modo correto de proceder. Era, portanto, só “mais um na multidão”. Talvez tenha sido por isto, que não tenha havido ninguém que lhe fizesse quaisquer daqueles questionamentos, ao menos, dirigindo-se a ele. Mas, certamente, aquelas indagações poderiam ter perpassado os cérebros daqueles que, eventualmente, o tivessem percebido imiscuído naquela plateia tão diversa, reunida naquele recinto onde se tomariam as decisões políticas mais relevantes para a cidade.
Alagoinhas - 12 de janeiro de 2025
Professor José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
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Que lindo escrito, hoje chego a compreender uma porção de coisas, ao redor deste escrevedor. Parabéns!
ResponderExcluirMuitíssimo grato!
ExcluirMuitíssimo grato.-
ExcluirCaro e doutíssimo amigo, elucide-me, por obséquio, quem foi esse Mário. Nelson Bittencourt courtdrones@gmail.com
ResponderExcluirJosé Mário seria mais uma vítima da invisibilidade social...
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