sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Diagnóstico "depressivo"; Prognóstico "irrecuperável"; crime: "heresia social"; sentença: reclusão e segregação; risco: contaminação.

Considerações acerca de mim mesmo Eu não poderia ser considerado um admirador da obra de Raul Seixas; nem do seu modo de pensar; menos ainda, do seu modo de ser e viver. Mas, evidentemente, eu não pude escapar aos seus grandes "aforismos", que podiam ser ouvidos e cantados com toda a força dos pulmões. Em grande medida, as suas músicas eram ouvidas por meio das transmissões radiofônicas, visto que eram poucos aqueles que possuíam os equipamentos de execução de músicas em suas casas, sobretudo, nos anos 1970, quando Rausito entrou no nas paradas dos sucessos. Uma daquelas músicas que fora sucesso por todo o ano de 1974, ainda hoje muito executada nas plataformas agregadoras de músicas, era "Ouro de Tolo". É claro que não se vai aqui querer explicar uma letra tão complexa na variedade dos entendimentos que possa ter vindo a provocar. O que se quer dizer aqui, é que, alguns anos depois de tê-la ouvido incontáveis vezes, bem como de a ter cantado outras tantas, chegou-se a conclusão que uma das suas estrofes, acaba por falar da maneira de ser e de entender a vida que tem este que ora escreve. O trecho será transcrito aqui, porém, já intercalando um pouco de coisas a mais do que aquelas ditas em tão rápidas e certeiras sílabas: "Ah, que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado" - não encontra sentido em nada; que não tem prazer em nada; que não aprecia nada - "Macaco, praia, carro, jornal, tobogã" cinema, viagens, comemorações, restaurantes, roupas, sociabilidades - "eu acho tudo isso um saco"! E, na estrofe seguinte, ele, mais contundente e devastador, segue adiante com a sua insatisfação com os ditames sociais e com as imposições de posições que tornam a vida insuportavelmente tediosa! Não se pode querer ficar no seu canto quieto; não se pode ficar circunspeto e calado em um ambiente de “festas” ou repleto de pessoas, coisas, sons, ..., que logo os psicólogos/terapeutas –modalidades em grande moda nos últimos anos e nas quais todos se sentem especialistas, entendidos, experts e, tem sempre a última palavra -, cravam os seus diagnósticos: está deprimido; é depressivo; precisa fazer terapia - aliás, eu acabei de fazer uma terapia de pratos, panelas, copos... A pia lá embaixo está limpíssima! A grande descoberta que agora se fez é que, quem escreve estas heresias sociais, é um sujeito tão inteligente, quanto ignorante! Ora, me façam uma garapa de limão, mas, por favor: sem açúcar.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Um "Diário Tardio" Parte II

Histórias e Memórias de um convite surpreendente: um diário tardio – segunda parte. Sábado, 20 de maio de 2023 – Era por volta das dezessete horas, quando aquele recém chegado à capital sergipana, volta a estar ao lado daquela senhorita tão perfumada e encantadora, quanto especial, depois de algumas horas de deslocamento e de grande expectativa. Depois de se reencontrarem no portão do seu prédio, trocarem cumprimentos e se deixarem envolver por aquela atmosfera de um fim de tarde outonal, ela, confiante e resoluta, o acompanhara até o veículo que os aguardava há poucos metros, para nele se dirigirem ao local que ela sugerira que fossem, para sentarem e desfrutarem da companhia um do outro. Distava poucos quarteirões do seu lugar de residência, o espaço que ela escolhera para efetivar aquele reencontro, onde poderia confortavelmente conversar e frente a frente, depois de longos anos que as conversas deles só se puderam desenvolver mediante aparatos tecnológicos. Foi assim que eles se fizeram conduzir à uma mesa situada um pouco mais reservada, para que pudessem vivenciar aquele momento tão ímpar, de modo a poderem permutar ideias e impressões de forma um tanto mais privativa. Aquele desejo há muito alimentado por ele e, soube depois, também por ela, por fim se fazia concretizar, em meio à xícaras de café expresso, sorrisos e sentires que penetrava profundamente em seu ser. Aquele momento fora por ele vivido, como tendo sido uma parte de sua vida elevada à uma condição de uma espécie de “romance” já lido, porém, nunca escrito. A leitura era feita ali, no instante mesmo do seu desenrolar. Sentados lado a lado, sentindo o aroma que vinha de sua agradável companhia, ele sequer se importava com a marcha do tempo que passava indiferente a eles; chovera torrencialmente, conforme a estação em que se encontravam; mas eles sequer se deram conta disto, a não ser quando foram arrancados de seu enlevo e precisaram interromper aquelas horas tão fulgurantes que ali passaram, abrigados que estavam naquele ambiente, guardados das intempéries do clima lá de fora. Seria inútil tentar reproduzir em um diário assim, tão simplório e tardio, o que e o quanto eles conversaram. As palavras lhes fluíam; principalmente, aquelas que brotavam dos lábios dela, pois se sentia bem solta e descontraída, ao contrário do seu interlocutor, que ela até o percebera, estava tenso e procurava sorver cada sílaba que pronunciara, para não perder nenhuma das profusões de um tão mavioso falar. Era de fato aquela menina que ele conhecera dez anos antes: desprendida, tranquila e segura do seu falar, fruto de um pensar rápido e comedido, embora firme e sensato. Era aquela “menininha”, que dez anos antes fugira dele, talvez para que pudesse amadurecer e fortalecer os seus pilares em bases sólidas, com cimentação robusta, de maneira que pudesse dar o passo que viesse a dar, em solo firme e bem compactado. Ela fugira do alcance das mãos daquele homem maduro que pretendera lhe conquistar a cidadela bem fortificada, sem porém, sair da fortaleza que ele malgrado erguera com o objetivo de se resguardar dos assaltos de alguém que lhe quisesse expugnar as defesas contra o querer. Ela, embora lhe tenha fugido ao alcance, deixara porém, dentro dele, as suas marcas, as suas pegadas; vitoriosa por ter quebrado os escudos e neutralizado as defesas por ele interpostas, se vai fortalecer, no entanto, levando consigo as chaves que lhe arrebatara das mãos, sem que ele as pudesse recuperar a posse. E, assim, ela se movimentara com a segurança de quem possuía o pleno domínio do terreno e, talvez por isto, guardou para si, a surpresa com a qual pretendia impactar o seu interlocutor naquela noite inesquecível e lugar aprazível. Aproximava-se a hora em que teriam que se fazerem dirigir aos seus respectivos lugares de estada naquele dia, que fora tão maravilhoso. Era hora então de pensar o que fariam no dia seguinte; onde iriam, se encontrariam para almoçar, ou para jantar? E ela, como sempre, confiante e segura, arremata a conversa e, desfaz a incógnita: - Amanhã a gente vai almoçar em algum lugar, depois, ficamos no apartamento; passaremos a tarde lá! Que susto! Mas, ao mesmo tempo: que alegria foi receber daquela garota um tão claro gesto de confiança naquele a quem acabara de convidar para que ficassem juntos em seu espaço privativo. Ali se fez sentir o tamanho da responsabilidade que lhe era colocada sobre os ombros! Mas, nunca foi tão leve uma noite que antecedera o receber tamanha confiança de uma pessoa tão sincera e especial quanto aquela “menininha” que ocupara um coração já quase sem querer que o fosse;. A alegria daquela maravilhosa dádiva, nem pode ser contida” Alagoinhas – 17 de julho de 2024 – José Jorge Andrade Damasceno

sábado, 13 de julho de 2024

Um Diário Tardio - Parte I.

Histórias e Memórias de um convite surpreendente: um diário tardio – Primeira parte. Sábado, 20 de maio: a noite foi de sono entrecortado; as horas custavam passar e a manhã demorava chegar; os pássaros pareciam não querer despertar para chilrear em uma manhã fria e chuvosa, afim de esperar os raios de sol que os aqueceria por todo o dia. Preguiçosamente a alvorada se fazia presente, com os seus aromas inconfundíveis às narinas de quem tão impacientemente a aguardava ansioso para se levantar e iniciar a viagem que o levaria ao reencontro daquela com quem há dez anos se encontrara pela primeira vez. Ele se levanta e prepara o seu café; o seu sentido estava inteiramente voltado para aquela garota que por todo aquele tempo, não mais encontrara pessoalmente; apenas se falaram por meio de diversas ferramentas comunicacionais que foram surgindo no transcurso daquela década. A escolha da roupa a usar; a seleção do perfume para a agradar; o barbear-se; tudo fora feito com o intuito de fazer uma apresentação a altura daquela garota, visto que ele desejava que o reencontro fosse mais do que um mero reunir de duas pessoas que há muito tempo não se tocavam as mãos; mas o seu profundo anseio era que aquele se tornasse o encontro de dois corações que guardava cada um, bem no recôndito de seu ser, um segredo e, quiçá, pudessem - ao menos ele - ter a oportunidade de o revelar. Abordo de um Versa, dirigido por um seu amigo de tantas outras viagens, inclusive para aquela cidade praiana, por volta das nove da manhã, parte naquela direção. Noite longa, quase interminável, mal dormida, fora aquela que antecedera àquele início de trajeto. Um café trivial e os preparativos logísticos marcaram aquele início de manhã outonal. Sem o menor traquejo para arrumações e escolhas, guardou em uma valise o necessário para uma estada de duas noites e, na hora aprazada, saíra da cidade, sem mais poder esperar. Já marcada há cerca de quinze dias, aquela viagem proporcionara a ele uma alegria indizível; uma ansiedade indescritível; um arroubo quase juvenil, apesar do viajante já haver passado a marca dos sessenta verões. À medida em que a estrada era percorrida e, enquanto os amigos trocavam ideias, conversavam os mais diversos assuntos, aquele viajante só pensava no quanto a queria perto de si; mas também, o que lhe diria que não fosse “clichê”, como ela mesma dizia; no que estaria ela pensando; o que ela estaria a esperar dele; qual gesto lhe poderia fazer, indicativo do seu querer, do seu sentimento há muito represado; qual seria a reação dela, se ele acidentalmente deixasse escapar alguma palavra que a fizesse perceber o quanto ele a queria para si, para ser parte de sua vida... E ela, por outro lado, como se encontrava? O que se passaria naquele cérebro verdejante, pleno de capacidade cognitiva, veloz como os “pássaros de prata”, que singram os céus, em busca de vencer as distâncias e de alcançar os mais longínquos lugares? O que pensaria ela a respeito daquele sujeito que tanto persistia no desejo de que ela o recebesse e se sentasse ao seu lado, em algum lugar? Ah, isto ele sequer poderia cogitar. Ele talvez até desejasse que ela pensasse nele; mas, temia que ao menos suspeitasse dos seus desejos e afetos a ela inteiramente dedicados; que ela ao menos fizesse caso do seu coração, embora despedaçado pelas agruras vivenciais, a ela pertencia desde que nele se instalara. Isto era o que ele cogitava; mas, nenhuma certeza poderia ter de absolutamente nada. Ela não se deixava “ler” em suas “linhas”, escritas de si para consigo; ela não permitia que se penetrasse nos seus suspirares; sequer os externara!; sequer permitira saber se eles teriam existido! Tudo isto desfilava em seu cérebro, tão veloz quanto se deslocava aquele veículo em que viajava; as vezes ele se confundia com os seus próprios pensamentos, conforme se desenrolavam dentro de si; por vezes ele temia o fato não ser efusivo e caloroso, deixar a impressão de indiferença; outras vezes, acreditava que se fosse excessivamente prolixo – característica sua, indisfarçável -, ela o pudesse interpretar como um galanteador desmedido e vulgar; ah, quantas eram as proposições que surgiam e, do mesmo modo, desapareciam em sua cabeça, já quase atordoada com tantas projeções... do que seria, do como seria... E a viagem seguia o seu curso; as mensagens; a parada para o almoço; a chegada na cidade e o acomodar-se no hotel; o banho; a expectativa... Enfim, chegava o momento de outra vez trocarem abraços; de se tocarem as mãos; de ouvirem a voz um do outro, sem quaisquer outras mediações; o sentir os perfumes: ela trazia um aroma envolvente, um perfume que logo fizera aflorar todo o sentimento que nele estava retido, reprimido, guardado por todos aqueles anos; anos passados por outras vivências; vivências infrutuosas e desgastantes; agora, ela estava ali, ao seu lado; ao seu alcance; permitindo que o seu cheiro lhe assomasse o cérebro e lhe trouxesse tão deliciosa sensação de indizível alegria! Ah, senhorita: como foi reconfortador ter sido por ti recebido naquela tarde chuvosa, à frente do teu prédio; sob aquelas árvores que gotejavam sobre nós aquela água por elas retidas, quiçá, para nos brindar por aquele momento! Não tens ideia do quanto aquele teu aceitar receber este viajante em tua cidade naquela tarde, lhe revigorou não só o espírito; não só o corpo já vergado pelo peso da idade e dos viveres; mas, lhe revigorou a capacidade de acreditar ainda haver gente que se comporta como gente; que fala como gente; que recebe como gente; que trata como gente aqueles que como tu, é feita de carne, osso , sentimento e sensibilidade – por vezes aflorada e exacerbada -; e não, conforme ele mesmo vivenciou em grande parte de sua vida , como máquinas de moer gente... Alagoinhas 13 de julho de 2024 - José Jorge Andrade Damasceno

domingo, 23 de junho de 2024

Já passados cinquenta anos

Alagoinhas – junho 1974-2024 – Já se passaram 50 anos. Em um 23 de junho como o de hoje, porém de 1974, uma senhora cruel, implacável e indiferente às dores e agonias de quem por ela fosse visitado, esteve nesta casa e, levou inexoravelmente Zé Carlos, arrancando-o furiosa e inapelavelmente dos braços da sua mãe, que ainda não houvera completado quarenta anos e, já recebia o golpe mais funesto e acabrunhador de toda a sua vida, o que fora perpetrado pela tal “senhora de preto”. A vida da genitora do rapaz, ainda moço, mal tendo completado a sua segunda década de existência, àquela altura, já sujeita a ser vivida sob avalanches e tempestades, ali em sua casa, recebera o vento frio da morte que lhe soprara desfavorável, levando para longe dos seus cuidados, aquele seu filho primogênito, que, até então, lhe fora arrimo para ajudar a criar outros dois. Aquele dia, como todos os demais transcorridos desde que Zé Carlos fora mandado para casa em alta hospitalar, se erguera sem sobressaltos; correra no seu passo marcado pelo levantar do sol, pela sua chegada ao meio dia e pelo seu caminhar para se pôr no horizonte, sem qualquer indicação de borrasca, exceto no coração de dona Amanda, que se lhe apertava diante de sonho a ela contado pelo filho convalescente – sonhara com lugar gramado em que chegara por um acesso aladeirado, lugar que a ela pareceu ser um cemitério -, que lhe despertara a suspeita de um desfecho que ela não queria imaginar, mas sabia que mais dia menos dia, seria aquele: o seu filho não sobreviveria àquela “doença ruim”, que pouco a pouco lhe tragava as forças e os sinais vitais. Talvez fosse a segunda quinzena de março, quando chegara em casa de volta do hospital – para morrer em casa, dissera dona Amanda tempos depois, que para isto fora alertada pelos médicos, que aliás, aos quais nunca perdoou -, na perspectiva de se recuperar de cirurgia para remoção de um tumor no intestino. Dali para a frente, era cercado de cuidados não só na ministração dos remédios – quase sempre para lhe mitigar as muitas dores -, como também na elaboração e administração de alimentação em horários e medidas bem definidas. Este seu irmão que ora rememora um pouco daqueles dias, fora induzido a acreditar que logo o teria de volta para juntos irem para os lugares que costumavam ir – cortar o cabelo na “Boca do Corte”, para o Brasilino Viegas no quadro da sua bicicleta, cujo trajeto era feito pela rua Luiz Viana -; fazer as travessuras que juntos fizeram – a despeito dos seis anos que os separava -; ele acreditava que logo os dois voltariam a ouvir e a cantarolar as músicas que compartilhavam no rádio... Mas, por outro lado, recebia a advertência materna para que se comportasse e não brigasse tanto com a sua irmã – aliás, com quem nunca se dera bem, até o fim da vida dela -, para não entristecer o irmão maior e para não dificultar a sua recuperação... Assim, todos aqueles dias foram vividos quase como os demais que lhe antecederam, marcados somente pela ansiedade de logo ter de volta à normalidade daquela casa e do jornalhar da sua mãe, que, na condição de lavadeira de ganho, não poderia deixar de desenvolver aquela atividade laboral, sob pena de não ter sequer como fazer frente às necessidades corriqueiras já estabelecidas, tanto pior, aquelas necessidades criadas pela convalescença daquele filho. Terminou o verão; veio o outono e com ele uma tristeza incompreensível para aquele adolescente que precisava continuar o seu ir e vir para a escola, sem poder ficar todo o tempo perto do seu irmão; e, de nada adiantando isto, visto que nada havia que ele pudesse fazer em favor do enfermo, a não ser, evitar os constantes atritos com a outra irmã, para não aumentar ainda mais a tristeza de dona Amada. Tristeza aliás, já notória e, que por mais que ela se esforçasse, já não conseguia disfarçar. Talvez, apenas o enfermo e o seu irmão menor, acreditassem em uma recuperação de sua saúde, o que forçava dona Amanda a procurar se manter “confiante”, embora já soubesse que aquilo não se daria, mesmo, evidentemente, ela desejando ardentemente que se desse o contrário: que o seu filho se recuperasse e retomasse o viver saudável e alcançar um “futuro”, mesmo sem saber o que de fato aquilo seria. E os meses e as estações se arrastaram e passaram pesadas; os dias cada vez mais encobertos e as noites cheias de sobressaltos para quele menino que tinha medo de mortos; mas, ele não acreditava que o seu irmão, ainda tão moço, viesse a ser um dentre aqueles; dias, semanas e meses passavam...; já se não ouvia rádio; já se não cantava as músicas de sucessos que tocava no fim de tarde, como o fizera junto com aquele seu irmão, por pelo menos aqueles quatro anos; nem os jogos do campeonato; nem as corridas de formula 1; tudo era sombrio e frio; inclusive o clima, ainda mais denso e tenso, dentro da casa do que fora dela, em razão dos receios que envolviam aquela atmosfera outonal: maio, junho... e, com ele, chegara o inverno, aquela tão temida estação do fim “da vida”, do murchar das folhas que ainda se mantiveram nas árvores por todo o outono; aquela estação chuvosa que obriga o humano a vestir casacos, capotes, capas de chuva; a fechar as janelas para que os ventos e a umidade não deixem o ambiente ainda mais taciturno... nem se diga que a casa não possuía teto nem forro; a cobertura era de telha vã, o que quase neutralizava os esforços para se proteger das baixas temperaturas típicas de junho e dos meses subsequentes, até que chegue a Primavera... mas, para Zé Carlos, aquela primavera não chegou; sobre ele e sobre a sua vida, o inverno implacável prevaleceu e, por volta das seis da tarde, o seu corpo deixou de ter vida, não teve mais calor: um corpo frio se tornou e em um caixão foi deitado, para logo no dia seguinte ser sepultado... Naquele domingo de inverno, fim de tarde fria, aquela casa contrastava com as demais casas em que os seus moradores e visitantes festejavam efusivamente o São João com comidas, bebidas, fogueiras, foguetes e folguedos; com licores, laranjas, milhos – assados ou cozidos - e amendoins; onde dançavam ao som de sanfonas, zabumbas, triângulos, ou de músicas tocadas em suas radiolas, a despeito das lágrimas de dor, tristeza e de saudade que rolavam quentes e abundantes pelos rostos da mãe e dos irmãos de Zé Carlos, cuja vida fora interrompida há apenas alguns minutos. Hoje, cinquenta anos depois de ter vivido aquela experiência tão traumática, ousa-se concluir que tudo está rigorosamente igual: muitos dançam, cantam, bebem, folgam, sempre e como sempre, indiferentes a aqueles que, por alguma razão, de qualquer ordem, não tem o que comemorar, do que se alegrar, nem por que folgar. Ao mesmo tempo em que tudo isto se dá, há tantos que agora choram, sofrem; se angustiam; se entristecem e padecem suas dores – físicas ou psíquicas -, sem que ninguém se dê conta disto. Uma música que bem ilustraria aquele e este momento, fora grande sucesso à época que acima se descreveu em rápidas linhas. Trata-se de “Por que chora a tarde”, de Antônio Marcos, que dá uma boa ideia do que se pode passar na vida de alguém, a despeito de muitos indiferentes, folgarem e festejarem, enquanto há rostos envoltos em chorares e, almas em desespero, muito gritarem. Mas, gritar? Para quem ouvir? Quem deixaria os seus festejares para acudir a quem grita por socorro, por ajuda? https://youtu.be/7hajrnEvusQ?si=C6L-zkvv7W9UmGRM José Jorge Andrade Damasceno – professor titular na Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas. 23 de junho de 2024.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Uma homenagem ao Apolinho

O Rádio ainda mais pobre: morre o “Apolinho”. Em escritos pretéritos, já se disse que este escrevedor teve o rádio como sua escola, sua revista, seu jornal, seu dicionário, sua gramática; que para ele o rádio atuava como professor de política, sociedade, economia, de comportamento; que funcionara enfim, como o meio que lhe forjara o modo de ler o mundo e, grande parte do seu modo de pensar. No rádio se aprendeu a gostar de música, a falar bem, a refletir a respeito das coisas à sua volta; também aprendera com o rádio o que viria a ser cultura, uma vez que o acesso aos livros e outros materiais de leitura lhe eram extremamente restritos, tanto do ponto de vista da possibilidade de os comprar, quanto do ponto de vista da possibilidade de os ler, de modo independente e autônomo. Pois bem. Ao longo dos sessenta e três anos até aqui vividos, ele ouviu grandes vozes, grandes locuções realizadas por repórteres, apresentadores de programas de entretenimento; noticiaristas e comentaristas que traziam o cotidiano do “Brasil e do Mundo” para os seus ouvintes. AS guerras, os conflitos, as crises sociais e econômicas eram dados ao conhecimento daqueles que, em grande medida, só o alcançariam mediante as audições de programas de rádio. Algumas daquelas emissoras em transmissões na faixa de “Amplitude Modulada (AM)” ou em ondas curtas, se fizeram memoráveis para este escrevente: rádio Jornal do Brasil – com “O Jornal do Brasil Informa”, que era ouvido por este radioescuta, nas edições das 18:30h e das 00:30h, com Maurício Figueiredo (1944-2011) e Márcio Seixas (1945-) -, rádio Globo 1220KHZ, Rádio Eldorado, rádio Tamoio, rádio Mundial, e rádio Tupi, entre outras, Rio de Janeiro; rádio Bandeirantes, rádio Cultura, rádio Capital, entre outras, São Paulo; programas como Haroldo de Andrade (1934-2008) – programa que contava com o seu “Bom-Dia”, com a sua “Pesquisa do Dia” e com os seus “Debates Populares”, onde se pôde ouvir grandes temas debatidos por gente como Artur da Távola (1936-2008, Carlos Bacelar (1944-2005), Lúcia Hipólito (1950-2023), João Pinheiro Neto (1928-2003), Edgar Flexa Ribeiro (1940-), entre outros -; aos domingos , logo depois do “Domingo Mobral”, a partir das onze e quinze da manhã, se poderia ouvir “Mário Luiz é uma parada”, vindo a seguir o “Enquanto a Bola não Rola”, apresentado no início da tarde, por importantes nomes da crônica esportiva carioca como Loureiro Neto, Eraldo Leite, Cleber Leite, Sergio Noronha, Washington Rodrigues, Gerson “Canhotinha de Ouro”, Francisco Horta, Luiz Mendes, entre outros -, O Seu Redator Chefe, as edições de “O Globo no Ar” e do “Correspondente Globo”, na rádio Globo Rio – que ainda contava com vozes marcantes como as de Edmo Zarife (1940-1999), o já mencionado Mário Luiz (1929-2009), Guilherme de Souza (1929-2019), Sérgio Nogueira (1947-2010), Roberto Figueiredo (1933-2021) -; na rádio Nacional do Rio de Janeiro, também era possível ouvir o “Tabuleiro do Brasil”, com Geraldo do Norte, o programa “Alô Daisy” na agradabilíssima apresentação de Daisy Lúcidi (Daisy Lopes Lúcidi Mendes 1929-2020) – uma das seções do programa era o “Agora que são Elas”, com excelentes debates mediados por ela, cuja mesa era formada apenas por mulheres; também havia aquele outro debate, desta vez, com uma mesa formada só por homens e, também mediado pela própria apresentadora -, programa MusiShow, com Cirilo Reis, programa Luiz Vieira- alientando-se que parte da programação da rádio Nacional do Rio de Janeiro só era possível ser captada a partir das suas ondas curtas de 31 metros -; o Pulo do Gato, com José Paulo de Andrade, Jornal Primeira Hora e Jornal da Bandeirantes Gente, na Rádio Bandeirantes, jornal Ouça com Heródoto Barbeiro na rádio Excelsior, foram basilares na construção cultural e na formação do linguajar deste que ora traça estes escritos de nostalgia. No entanto, o rádio – principalmente o rádio AM - nos últimos anos vem perdendo importância e protagonismo no campo da comunicação de massa, pelos motivos os mais diversos. Entre os tantos, este escrevente apontaria a baixa qualidade daqueles que passaram a compor a “ala moça” do setor, fazendo cair vertiginosamente o nível da linguagem, muitos deles demonstrando pouquíssima capacidade de fazer simples leituras de textos. Prenhes de técnicas comunicacionais, grande parte está vazia de domínio do vernáculo, se diria, semianalfabetos no que respeita ao uso daquela ferramenta tão essencial na tarefa de comunicar, não mais propiciando aos ouvintes uma firmeza no campo da articulação entre transmissão e recepção de mensagens. Além do desligamento daquela faixa de propagação que permitia o rádio ser ouvido a longa distância – submetendo os ouvintes às emissoras de frequência modulada (FM”, de menor qualidade e, felizmente, também de menor alcance -, desde a pandemia de Covid19 tem-se assistido a morte daqueles locutores mais bem formados e mais talhados para um rádio versátil e diverso. Alguns deles poderiam aqui ser mencionados, como foi o caso de José Paulo de Andrade (1942-2020), já aludido acima, que fora tragado pela Covid19; radialista esportivo Gilson Ricardo (1948-2023), que por muitos anos apresentou o seu “Panorama Esportivo” e, em 15 de maio de 2024, o rádio e a radiofonia brasileira perdem um dos seus maiores representantes, no que respeita à cultura, a elegância e ao trato com o vernáculo, âncoras tão necessárias para se fazer um bom rádio. Morre o “Apolinho” ou o “Velho Apolo”, Washington Rodrigues (1936-2024), homem de rádio por mais de sessenta anos. Primeiro como repórter esportivo, passando a comentarista – chegando a ser dirigente e treinador do seu clube esportivo de coração, o Flamengo -, o Apolinho foi ouvido por quem ora escreve estas páginas, desde sua tenra idade, ainda quando ele fazia dupla com Deni Meneses (1939-), formando a dupla que tornou célebre o jargão “Os Trepidantes”. Desde então, o ouviu nos diversos espaços que ocupou no rádio, inclusive o último deles, o de apresentador de programa de variedades e entretenimento – o Show do Apolinho na rádio Tupi por quase 25 anos -, sempre com competência e qualidade de locução e domínio das formas de falar. É assim que o tempo implacável e o câncer, um dos seus principais aliados, vai levando os grandes nomes que atuaram no rádio por todo o tempo de vida deste garatujador, deixando cada vez mais paupérrimo o meio de comunicação que sempre lhe foi por escola: o rádio. Fiquem com a emoção de Luiz Penido, ao anunciar a morte do companheiro e amigo, em plena transmissão do jogo do Flamengo, no Maracanã. https://youtu.be/2IcVH-J_Hjk?si=25p-SdTHguWES7s0 José Jorge Andrade Damasceno – professor Titular na Universidade do Estado da Bahia, lotado no colegiado de História, Campus II, Alagoinhas. E-mail: historiadorbaiano@gmail.com