domingo, 23 de junho de 2024

Já passados cinquenta anos

Alagoinhas – junho 1974-2024 – Já se passaram 50 anos. Em um 23 de junho como o de hoje, porém de 1974, uma senhora cruel, implacável e indiferente às dores e agonias de quem por ela fosse visitado, esteve nesta casa e, levou inexoravelmente Zé Carlos, arrancando-o furiosa e inapelavelmente dos braços da sua mãe, que ainda não houvera completado quarenta anos e, já recebia o golpe mais funesto e acabrunhador de toda a sua vida, o que fora perpetrado pela tal “senhora de preto”. A vida da genitora do rapaz, ainda moço, mal tendo completado a sua segunda década de existência, àquela altura, já sujeita a ser vivida sob avalanches e tempestades, ali em sua casa, recebera o vento frio da morte que lhe soprara desfavorável, levando para longe dos seus cuidados, aquele seu filho primogênito, que, até então, lhe fora arrimo para ajudar a criar outros dois. Aquele dia, como todos os demais transcorridos desde que Zé Carlos fora mandado para casa em alta hospitalar, se erguera sem sobressaltos; correra no seu passo marcado pelo levantar do sol, pela sua chegada ao meio dia e pelo seu caminhar para se pôr no horizonte, sem qualquer indicação de borrasca, exceto no coração de dona Amanda, que se lhe apertava diante de sonho a ela contado pelo filho convalescente – sonhara com lugar gramado em que chegara por um acesso aladeirado, lugar que a ela pareceu ser um cemitério -, que lhe despertara a suspeita de um desfecho que ela não queria imaginar, mas sabia que mais dia menos dia, seria aquele: o seu filho não sobreviveria àquela “doença ruim”, que pouco a pouco lhe tragava as forças e os sinais vitais. Talvez fosse a segunda quinzena de março, quando chegara em casa de volta do hospital – para morrer em casa, dissera dona Amanda tempos depois, que para isto fora alertada pelos médicos, que aliás, aos quais nunca perdoou -, na perspectiva de se recuperar de cirurgia para remoção de um tumor no intestino. Dali para a frente, era cercado de cuidados não só na ministração dos remédios – quase sempre para lhe mitigar as muitas dores -, como também na elaboração e administração de alimentação em horários e medidas bem definidas. Este seu irmão que ora rememora um pouco daqueles dias, fora induzido a acreditar que logo o teria de volta para juntos irem para os lugares que costumavam ir – cortar o cabelo na “Boca do Corte”, para o Brasilino Viegas no quadro da sua bicicleta, cujo trajeto era feito pela rua Luiz Viana -; fazer as travessuras que juntos fizeram – a despeito dos seis anos que os separava -; ele acreditava que logo os dois voltariam a ouvir e a cantarolar as músicas que compartilhavam no rádio... Mas, por outro lado, recebia a advertência materna para que se comportasse e não brigasse tanto com a sua irmã – aliás, com quem nunca se dera bem, até o fim da vida dela -, para não entristecer o irmão maior e para não dificultar a sua recuperação... Assim, todos aqueles dias foram vividos quase como os demais que lhe antecederam, marcados somente pela ansiedade de logo ter de volta à normalidade daquela casa e do jornalhar da sua mãe, que, na condição de lavadeira de ganho, não poderia deixar de desenvolver aquela atividade laboral, sob pena de não ter sequer como fazer frente às necessidades corriqueiras já estabelecidas, tanto pior, aquelas necessidades criadas pela convalescença daquele filho. Terminou o verão; veio o outono e com ele uma tristeza incompreensível para aquele adolescente que precisava continuar o seu ir e vir para a escola, sem poder ficar todo o tempo perto do seu irmão; e, de nada adiantando isto, visto que nada havia que ele pudesse fazer em favor do enfermo, a não ser, evitar os constantes atritos com a outra irmã, para não aumentar ainda mais a tristeza de dona Amada. Tristeza aliás, já notória e, que por mais que ela se esforçasse, já não conseguia disfarçar. Talvez, apenas o enfermo e o seu irmão menor, acreditassem em uma recuperação de sua saúde, o que forçava dona Amanda a procurar se manter “confiante”, embora já soubesse que aquilo não se daria, mesmo, evidentemente, ela desejando ardentemente que se desse o contrário: que o seu filho se recuperasse e retomasse o viver saudável e alcançar um “futuro”, mesmo sem saber o que de fato aquilo seria. E os meses e as estações se arrastaram e passaram pesadas; os dias cada vez mais encobertos e as noites cheias de sobressaltos para quele menino que tinha medo de mortos; mas, ele não acreditava que o seu irmão, ainda tão moço, viesse a ser um dentre aqueles; dias, semanas e meses passavam...; já se não ouvia rádio; já se não cantava as músicas de sucessos que tocava no fim de tarde, como o fizera junto com aquele seu irmão, por pelo menos aqueles quatro anos; nem os jogos do campeonato; nem as corridas de formula 1; tudo era sombrio e frio; inclusive o clima, ainda mais denso e tenso, dentro da casa do que fora dela, em razão dos receios que envolviam aquela atmosfera outonal: maio, junho... e, com ele, chegara o inverno, aquela tão temida estação do fim “da vida”, do murchar das folhas que ainda se mantiveram nas árvores por todo o outono; aquela estação chuvosa que obriga o humano a vestir casacos, capotes, capas de chuva; a fechar as janelas para que os ventos e a umidade não deixem o ambiente ainda mais taciturno... nem se diga que a casa não possuía teto nem forro; a cobertura era de telha vã, o que quase neutralizava os esforços para se proteger das baixas temperaturas típicas de junho e dos meses subsequentes, até que chegue a Primavera... mas, para Zé Carlos, aquela primavera não chegou; sobre ele e sobre a sua vida, o inverno implacável prevaleceu e, por volta das seis da tarde, o seu corpo deixou de ter vida, não teve mais calor: um corpo frio se tornou e em um caixão foi deitado, para logo no dia seguinte ser sepultado... Naquele domingo de inverno, fim de tarde fria, aquela casa contrastava com as demais casas em que os seus moradores e visitantes festejavam efusivamente o São João com comidas, bebidas, fogueiras, foguetes e folguedos; com licores, laranjas, milhos – assados ou cozidos - e amendoins; onde dançavam ao som de sanfonas, zabumbas, triângulos, ou de músicas tocadas em suas radiolas, a despeito das lágrimas de dor, tristeza e de saudade que rolavam quentes e abundantes pelos rostos da mãe e dos irmãos de Zé Carlos, cuja vida fora interrompida há apenas alguns minutos. Hoje, cinquenta anos depois de ter vivido aquela experiência tão traumática, ousa-se concluir que tudo está rigorosamente igual: muitos dançam, cantam, bebem, folgam, sempre e como sempre, indiferentes a aqueles que, por alguma razão, de qualquer ordem, não tem o que comemorar, do que se alegrar, nem por que folgar. Ao mesmo tempo em que tudo isto se dá, há tantos que agora choram, sofrem; se angustiam; se entristecem e padecem suas dores – físicas ou psíquicas -, sem que ninguém se dê conta disto. Uma música que bem ilustraria aquele e este momento, fora grande sucesso à época que acima se descreveu em rápidas linhas. Trata-se de “Por que chora a tarde”, de Antônio Marcos, que dá uma boa ideia do que se pode passar na vida de alguém, a despeito de muitos indiferentes, folgarem e festejarem, enquanto há rostos envoltos em chorares e, almas em desespero, muito gritarem. Mas, gritar? Para quem ouvir? Quem deixaria os seus festejares para acudir a quem grita por socorro, por ajuda? https://youtu.be/7hajrnEvusQ?si=C6L-zkvv7W9UmGRM José Jorge Andrade Damasceno – professor titular na Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas. 23 de junho de 2024.

Um comentário:

  1. Belo texto! Não tão belas as recordações. Compartilho com o senhor a dor de perder alguém que se ama muito nessa dada festiva. Não há ano que passe sem lembrar aquele fatídico dia, embora lembre do meu pai o tempo todo. Falar como Raul: Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida!

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