sábado, 13 de julho de 2024
Um Diário Tardio - Parte I.
Histórias e Memórias de um convite surpreendente: um diário tardio – Primeira parte.
Sábado, 20 de maio: a noite foi de sono entrecortado; as horas custavam passar e a manhã demorava chegar; os pássaros pareciam não querer despertar para chilrear em uma manhã fria e chuvosa, afim de esperar os raios de sol que os aqueceria por todo o dia. Preguiçosamente a alvorada se fazia presente, com os seus aromas inconfundíveis às narinas de quem tão impacientemente a aguardava ansioso para se levantar e iniciar a viagem que o levaria ao reencontro daquela com quem há dez anos se encontrara pela primeira vez. Ele se levanta e prepara o seu café; o seu sentido estava inteiramente voltado para aquela garota que por todo aquele tempo, não mais encontrara pessoalmente; apenas se falaram por meio de diversas ferramentas comunicacionais que foram surgindo no transcurso daquela década.
A escolha da roupa a usar; a seleção do perfume para a agradar; o barbear-se; tudo fora feito com o intuito de fazer uma apresentação a altura daquela garota, visto que ele desejava que o reencontro fosse mais do que um mero reunir de duas pessoas que há muito tempo não se tocavam as mãos; mas o seu profundo anseio era que aquele se tornasse o encontro de dois corações que guardava cada um, bem no recôndito de seu ser, um segredo e, quiçá, pudessem - ao menos ele - ter a oportunidade de o revelar.
Abordo de um Versa, dirigido por um seu amigo de tantas outras viagens, inclusive para aquela cidade praiana, por volta das nove da manhã, parte naquela direção. Noite longa, quase interminável, mal dormida, fora aquela que antecedera àquele início de trajeto. Um café trivial e os preparativos logísticos marcaram aquele início de manhã outonal. Sem o menor traquejo para arrumações e escolhas, guardou em uma valise o necessário para uma estada de duas noites e, na hora aprazada, saíra da cidade, sem mais poder esperar.
Já marcada há cerca de quinze dias, aquela viagem proporcionara a ele uma alegria indizível; uma ansiedade indescritível; um arroubo quase juvenil, apesar do viajante já haver passado a marca dos sessenta verões. À medida em que a estrada era percorrida e, enquanto os amigos trocavam ideias, conversavam os mais diversos assuntos, aquele viajante só pensava no quanto a queria perto de si; mas também, o que lhe diria que não fosse “clichê”, como ela mesma dizia; no que estaria ela pensando; o que ela estaria a esperar dele; qual gesto lhe poderia fazer, indicativo do seu querer, do seu sentimento há muito represado; qual seria a reação dela, se ele acidentalmente deixasse escapar alguma palavra que a fizesse perceber o quanto ele a queria para si, para ser parte de sua vida...
E ela, por outro lado, como se encontrava? O que se passaria naquele cérebro verdejante, pleno de capacidade cognitiva, veloz como os “pássaros de prata”, que singram os céus, em busca de vencer as distâncias e de alcançar os mais longínquos lugares? O que pensaria ela a respeito daquele sujeito que tanto persistia no desejo de que ela o recebesse e se sentasse ao seu lado, em algum lugar? Ah, isto ele sequer poderia cogitar. Ele talvez até desejasse que ela pensasse nele; mas, temia que ao menos suspeitasse dos seus desejos e afetos a ela inteiramente dedicados; que ela ao menos fizesse caso do seu coração, embora despedaçado pelas agruras vivenciais, a ela pertencia desde que nele se instalara. Isto era o que ele cogitava; mas, nenhuma certeza poderia ter de absolutamente nada. Ela não se deixava “ler” em suas “linhas”, escritas de si para consigo; ela não permitia que se penetrasse nos seus suspirares; sequer os externara!; sequer permitira saber se eles teriam existido!
Tudo isto desfilava em seu cérebro, tão veloz quanto se deslocava aquele veículo em que viajava; as vezes ele se confundia com os seus próprios pensamentos, conforme se desenrolavam dentro de si; por vezes ele temia o fato não ser efusivo e caloroso, deixar a impressão de indiferença; outras vezes, acreditava que se fosse excessivamente prolixo – característica sua, indisfarçável -, ela o pudesse interpretar como um galanteador desmedido e vulgar; ah, quantas eram as proposições que surgiam e, do mesmo modo, desapareciam em sua cabeça, já quase atordoada com tantas projeções... do que seria, do como seria...
E a viagem seguia o seu curso; as mensagens; a parada para o almoço; a chegada na cidade e o acomodar-se no hotel; o banho; a expectativa... Enfim, chegava o momento de outra vez trocarem abraços; de se tocarem as mãos; de ouvirem a voz um do outro, sem quaisquer outras mediações; o sentir os perfumes: ela trazia um aroma envolvente, um perfume que logo fizera aflorar todo o sentimento que nele estava retido, reprimido, guardado por todos aqueles anos; anos passados por outras vivências; vivências infrutuosas e desgastantes; agora, ela estava ali, ao seu lado; ao seu alcance; permitindo que o seu cheiro lhe assomasse o cérebro e lhe trouxesse tão deliciosa sensação de indizível alegria!
Ah, senhorita: como foi reconfortador ter sido por ti recebido naquela tarde chuvosa, à frente do teu prédio; sob aquelas árvores que gotejavam sobre nós aquela água por elas retidas, quiçá, para nos brindar por aquele momento! Não tens ideia do quanto aquele teu aceitar receber este viajante em tua cidade naquela tarde, lhe revigorou não só o espírito; não só o corpo já vergado pelo peso da idade e dos viveres; mas, lhe revigorou a capacidade de acreditar ainda haver gente que se comporta como gente; que fala como gente; que recebe como gente; que trata como gente aqueles que como tu, é feita de carne, osso , sentimento e sensibilidade – por vezes aflorada e exacerbada -; e não, conforme ele mesmo vivenciou em grande parte de sua vida , como máquinas de moer gente...
Alagoinhas 13 de julho de 2024 - José Jorge Andrade Damasceno
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