domingo, 19 de janeiro de 2025

Seis digressões sobre uns tempos idos Parte II

Ele estava só, mesmo em meio à multidão.

 

Conforme aludido na digressão anterior, José Mário, embora houvesse estado em todo o transcurso daquela sessão da câmara que impossara os seus treze edis, bem como o prfeito e vice-prefeito para o exercício de 1977 a 1981, depois ampliado até 1983, dali saíra, do mesmo modo como entrara: anônimo e invisível em relação a grande parte daquela gente que também ali estivera. Do mesmo modo, este escrevente também afirmara não ter conseguido atinar, sobre o que tivera levado José Mário a comparecer a dita reunião, visto não ser ele iniciado nas lides políticas locais; não dispor de credenciais sociais ou econômicas para estar ali; não fazer parte de quaisquer grupos inseridos no azáfama político da cidade, que quase sempre se encontravam nos poucos bares e restaurantes existentes àquela época, lugares por excelência das confabulações e das construções de compromissos, essencialmente estruturadas em torno e em favor das elites sociais dirigentes do município.

Concluída a cerimônia e realizados os cumprimentos de prache, a talvez centena de pessoas que ali se glutinara, rapidamente se dispersara, cada uma ou cada grupo delas, se dirigindo a outras festas, comemorações e/ou, como fora o caso de José Mário que, talvez houvesse circulado ali pelo entorno do prédio onde estavam instalados o gabinete do prefeito, que fazia as vezes de porta central, a câmara municipal, de onde acabavam de sair e o fórum da cidade.  Eles, talvez, tentassem encontrar algum conhecido ou mesmo, alguém, ainda que não conhecido, com quem pudesse vir a trocar algumas ideias, sendo alguns bem sucedidos naquela busca de dividir as impressões daquilo que presenciaram alguns minutos antes. Não ocorrendo o mesmo com aquele que ali se encontrava como se fora um forasteiro em seu próprio lugar de nascimento, fez com que ele se dirigisse à residência de algum parente ou, provavelmente, regressado à sua própria, com uma sensação de grande vazio, na medida em que, estivera agrupado em torno de mais ou menos uma centena de pessoas e, logo, logo, estaria absolutamente só, sem ter com quem dividir uma impressão que fosse, a respeito de tudo que houvera presenciado junto a toda àquela gente.

No entanto, não foi aquele o primeiro momento de sua vida em que aquele sentimento de solidão em meio à multidão, se lhe apresentou ao espírito. Alguns dias antes, por ocasião da celebração do Natal de 1976, ele até que tentou ir à Missa do Galo, como todos ou quase todos, foram. Ele acreditara estar vestido e calçado adequadamente para a ocasião, se perfumara e saíra, tomando a direção do centro da cidade, onde se localizava a Igreja Matriz e, igualmente, estava localizado o Parque de diversões, bem como as barracas onde comidas e bebidas eram vendidas, àqueles que dispusessem dos recursos monetários para a sua aquisição. O leitor deste arrazoado pode tranquilamente rir e caçoar de quem o escreve, considerando óbvia, a observação acima. No entanto, considere o impaciente leitor de agora, que, evidentemente José Mário sabia perfeitamente que, precisaria possuir recursos monetários para ter o direito de provar alguma daquelas iguarias. O que ele talvez não atinasse, quando faltavam três dias para ele  completar dezesseis dezembros, é que ali estava uma divisão social da religiosidade, formatada pelo ter ou não ter os meios para adquirir os bens produzidos pela sociedade. Tratava-se de uma festa religiosa; tratava-se de uma manifestação “Cristã”. Porém, nela, estava embutida a contradição a partir da qual, uns seriam mais “cristãos” do que outros; ali, ficava estampada a face perversa da pobreza – ou uma dentre elas -, em que, a despeito de estar se comemorando o “Natal” de Cristo, nem todos poderiam desfrutar de tudo aquilo que ali estava posto, como sendo parte daquela comemoração. Em suma: era preciso dispor de recursos monetários para ter participação plena naquelas comemorações, pretensamente cristãs. O “ganhar” ou o “dar” presentes, é uma das facetas de uma tão flagrante perversidade.

Mas, retome-se o caso da “Missa” do galo – que não é nem se remete ao conto de Machado de Assis. José Mário, vestido e perfumado, saíra da sua moradia modesta, decidido a participar ativamente daquela celebração que acreditava ser franqueada a tantos quantos dela quisesse, indistintamente, quer do ponto de vista social, quer do ponto divista econômico. Afinal, pensava, não se paga para entrar na Igreja e, nela, rezar, comungar, celebrar... Não sabia o neófito, que a missa do galo era uma prerrogativa da Igreja Matriz. Por isto, ele fora mais cedo a uma igreja que era situada perto do seu lugar de morada e, lá, fora informado que a celebração pela qual estava interessado, só seria realizada no centro da cidade, para onde ele acabara se dirigindo mais tarde.

Tendo enfim chegado ao recinto religioso, ele se imiscuíra ali, quase aos empurrões, dado ao espaço que acabara por se tornar exíguo, diante do afluxo de fiéis. Espremido e oprimido pelos demais que se acotovelavam a procura de lugar onde assentar-se, acabou por ficar em um lugar desconfortável, de onde sequer pudera ouvir a dita missa, por conta do enorme barulho que chegava, oriundo dos brinquedos oferecidos pelo Parque de diversões instalado ao largo da Igreja e no seu entorno, o que dificultava e, para dizer bem a verdade, impedia, aqueles que não tivessem conseguido assento mais à frente, acompanhar o desenrolar do ofício religioso ali produzido. Isto é: ali estivera; ali, fora cercado por um bom número de pessoas. No entanto, de nada adiantara ter estado ali; nada aproveitara: nem mesmo a companhia daqueles que estavam ali com ele, no mesmo espaço, com o mesmo objetivo e, quiçá, vivenciando a mesma frustração que ele estava vivenciando, naquele tempo e lugar. Não se poderia estar posto ali, mais um feixe de contradições? A resposta, deixa-se para a reflexão de quantos venha a ler este tratado.

Depois de circular um pouco entre a multidão que ocupava o espaço externo à Igreja, multidão que conversava, bebia, ria, desfrutava dos folguedos e das atrações oferecidas pelo Parque de diversões, José Mário tomou o caminho de volta para o seu lugar de residência e, ao longo do trajeto, observava que, a cada passo que dava, ele se distanciava do burburinho das pessoas aglomeradas nos espaços que ele acabava de deixar para trás e dos rumores da “Festa Magna da cristandade”, o que lhe fazia sentir que, mesmoquando estava ali, ele estava só; sem qualquer tipo de companhia, ainda que fosse para conversas banais. E, cada vez mais perto de chegar em sua casa, em uma rua apertada, empoeirada, sem qualquer tipo de tratamento urbano, teve a sensação de que, não teria feito qualquer diferença, se ele houvesse permanecido em casa, deitado em sua cama patente, dormindo profundamente. Quiçá, poderia ter pensado, tivesse sido até melhor não ter saído para ir tentar assistir a “Missa do Galo”; ao menos, não saberia que era só “mais um na multidão”, tanto dos fiéis, quanto dos que se divertiam no largo e no entorno da Matriz.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – Alagoinhas, 20 de Janeiro de 2025 – historiadorbaiano@gmail.com 

5 comentários:

  1. Sua personagem José Mário é um dentre os milhares ou milhões de indivíduos sem conexão social. Indivíduos que procuram algo, mas não sabem o que é. Ávidas de experiências. Essas criaturas não conseguem atraurva atração de outras para interações como bate papo ou troca de opiniões.

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  2. Por que e em que medida as pessoas não enxergam José Mário? Que tipo de relação social ele busca no grande tecido urbano?

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  3. Acertadamente, José Mário é uma personagem que não se encontrou ainda no mundo. Precisa ter consciência de si mesmo antes de querer ou exigir relacionar-se com os outros. Ele parece ser puramente ingênuo.

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  4. Gostei do procedimento textual da intertextualidade com Machado de Assis. Lá na missa dele, um adolescente não consegue interpretar as ações insinuantes de uma senhora, óbvio, mais velha que ele. José Mário é personagem de reflexões mais sérias.

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  5. Apesar de ter-se deslocado até aglomerações e ter estado perto e dentro dela, José Mário é sujeito pudibundo, talvez sem saber que o é.

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