domingo, 14 de dezembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte XI.

26 de janeiro de 1986 – as provas – II.

 

Em conversa com um seu colega de ofício, este escrevente chamava à sua atenção para a desconfiança que aquele pesquisador, sempre manifesta em relação à “memória”, uma vez que, conforme ele assevera, a “memória” é inadvertidamente elevada à condição de verdade – claramente se trata de uma compreensão equivocada do nobre colega historiador -, visto ser ela passível de manipulações e inconsistências. Em contrapartida, ele eleva o “documento” à condição de maior confiabilidade, visto não estar mais sujeito aos interditos por ele anotados em relação à “Memória”. No entanto, Jacques Le Goff (1924-2014), ao indicar que um “documento” é como que uma “monumentalização” de um momento histórico dado, permite inferir que, como tal e para tal ele foi produzido. Isto aponta para a ideia de que, embora ao chegar na mesa de trabalho do historiador algum tempo depois de produzido, portanto, impossibilitando – ou dificultando – a sua manipulação, dando uma aparência de objetividade, ele fora produzido por alguém, preservado para alguma finalidade, arquivado para que pudesse “testemunhar” de uma dada realidade, aquela que o fizera o seu autor – ou autores  - e, sobre eles uma sociedade, uma circunstância ou uma instância dada, fizera pressão para que fosse produzido. Logo, não só é preciso desconfiar da “memória”, sujeita em última instância, a aquele que lembra; mas, de igual modo, se faz necessário desconfiar de qualquer “documento”, considerando-o permeado de subjetividades intrínsecas ou extrínsecas a ele. Há um monumento deste tipo, por exemplo, que conta a “conversão de Constantino” ao “cristianismo”, que indica tal haver se dado, após um “sonho com a cruz” e, a garantia de que “por aquela cruz”, ele venceria. Tal vitória teria se dado e, como “cumprimento” da promessa feita pelo imperador romano que, caso de fato vencesse a dita batalha, se tornaria um “cristão”, torna o dito cristianismo a “Religião” oficial e única do império. Ora: quem escreveu o tal relato? Para quem e por que o escreveu? Parece mais uma justificativa forjada para explicar a romanização do cristianismo até então perseguido pelo próprio Constantino; fica-se com a impressão que é um texto feito para aplacar qualquer questionamento a respeito do modo como se deu a “cristianização” do paganismo romano, sem que se fizesse qualquer exigência, tal como o “crer” e o “se arrepender”, o que proporcionaria o  “Novo Nascimento”, por exemplo, uma prerrogativa inerente à conversão. Tal prerrogativa, evidentemente, não é contemplada pelo decreto imperial. Ora: por que a “narrativa” documentada ou, no dizer de Le Goff “monumentalizada” pôde ser tomada como “verdade” ao longo dos séculos e, a “memória”, ainda que sujeita à falhas, inconsistências e/ou descontinuidades, não pode ser tomada, ao menos,  como parte de uma “verdade?

Conforme assevera Maurice Halbwachs (1877-1945), “[...]. A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo,  pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACHS, 2003, P. 69). Isto quer dizer que a “memória” não é estática, portanto, passível de ressignificações, ao contrário do “documento” que é “monumentalizado”, em sentido estrito, não mais sujeito à manipulações, adequações e inserções, pois tal já fora feito, quando da sua produção e/ou arquivamento. Logo, ambos devem ser constantemente interrogados, pois, como já é cediço, não falam por si.

Assim sendo, é uma vez mais, através das lembranças levantadas de um tempo que já vai remontando a algumas dezenas de anos, que este garatujador tem procurado trazer aos seus fiéis leitores, algumas facetas do caminhar de José Mário. Nelas, o rapaz é percebido como quem precisa constantemente embater-se contra obstáculos os mais diversos, com o fito de empreender o seu processo de escolarização e, nos arrazoados que até aqui vem sendo desenvolvidos, ele aparece enfrentando as intempéries de se imiscuir no processo de formação superior.

Conforme já se apontou em páginas anteriores, tendo saído de casa por volta das seis da manhã e, tendo percorrido a pé todo o trajeto que o levaria ao seu já bem conhecido prédio do “Estadual”, José Mário chegara ao local das provas um pouco antes do horário da abertura dos portões. Ali, já se encontrava um bom número de outros vestibulandos, que, por certo, também estavam ansiosos pelo momento que ingressariam nas respectivas salas, receberiam o caderno com as questões que precisariam responder, no prazo pré-determinado de cerca de quatro horas, tempo em que, além das respostas às questões propostas, também precisariam desenvolver uma redação, por meio da qual discorreriam sobre um tema indicado e, que, por meio dela, precisariam demonstrar a coerência e a consistência da exposição de ideias, bem como, seriam avaliados em sua capacidade de realizar uma discussão através de  um texto com uma ordenação lógica e exposição escrita de um pensamento concatenado.

Quando enfim foram abertos os portões e autorizado o ingresso dos candidatos ao recinto onde tomariam parte do tão esperado primeiro dia do certame que poderia lhes abrir vagas para os cursos de licenciaturas ofertados na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, algumas centenas deles se dirigiram às salas onde estavam alocados. José Mário, enquanto se dispunha a fazer o mesmo, de posse do seu cartão de identificação, acabou por ter o seu caminhar interrompido por pessoas ligadas à organização do certame, que o conduziram a uma sala no prédio onde funcionava a direção e a biblioteca daquele estabelecimento de ensino, onde, segundo fora informado, ele ficaria para desenvolver a sua atividade avaliativa, uma vez que, ele utilizaria máquina de datilografia comum, o que poderia acarretar em desconforto para os demais avaliados, devido ao barulho da dita, que poderia dificultar a concentração dos demais. Além disto, pelo fato de o material estar impresso em Braille – o que aliás foi um ganho inestimável –, o mobiliário estudantil existente nas salas reservadas para a realização das provas, talvez dificultasse o manuseio do material.

Portanto, José Mário ficou alocado na sala da direção, acompanhado de uma funcionária para oferecer suporte, quando necessário. Ali, ele teve diante de si e sob os seus dedos, o caderno de questões propostas para a prova de língua portuguesa, de literatura, de língua estrangeira – por acaso e por presunção, o francês fora a língua por ele escolhida, visto possuir pequenos rudimentos adquiridos ainda na quinta e na sexta séries, cursadas ali mesmo –, bem como algumas questões que compunham a prova de redação, além do tema sobre o qual ele deveria dissertar.

Depois de ter procurado ler com atenção cada enunciado; depois de ter procurado responder as proposições de acordo com aquilo que entendera ter aprendido e apreendido acerca das matérias postas à prova; depois de se esforçar por interpretar os trechos de obras e autores inseridos como mote para as questões propostas; depois de procurar intercalar a sua compreensão com a elaboração de respostas plausíveis e, de pretender demonstrar a sua compreensão do que lera, por meio das aplicações feitas no formato de escolha de uma das sentenças dentre cinco delas, dispôs-se a discorrer sobre o tema que fora proposto para a elaboração de um texto dissertativo: “A Televisão como janela para o mundo”, proposição com a qual divergira por todo o escrito, talvez, influenciado pela sua condição de cegueira, que o fazia não entender que a “televisão” tivesse um tal papel, bem como, pelo seu pertencimento a uma instituição religiosa que “reprovava” a posse e a utilização daquele instrumento “perigoso” para a fé – ainda que apenas retoricamente –, que poderia desencaminhar aqueles que a tivessem como norteadora de modo de agir e de pensar.

De toda a sorte, ele estribara-se na perspectiva de que aquele meio de comunicação seria capaz de direcionar – para bem ou para mal –, a construção social de um pensamento hegemônico fundamentado quase que exclusivamente nas imagens – muitas vezes manipuladas para alcançar os objetivos de seus formuladores –, limitando a construção de um pensamento plural, tirando partido daquele modus operandi, com objetivos nem sempre consoantes à construção de um processo social baseado no equilíbrio e na equidade. É claro que ele temera muito por ter divergido daquilo que acreditava ser a forma dominante de pensar que o propositor do tema viesse a querer que fosse, por assim dizer, referendado, não obstante o seu receio – que posteriormente se mostraria infundado –,José Mário não recuou um único milímetro daquilo que se propusera a dissertar sobre o tema ali proposto.

 

Alagoinhas – 14 de dezembro de 2025 – primavera brasileira

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com 

domingo, 7 de dezembro de 2025

O TEMPO DA GRADUAÇÃO - 1986-1991 - Parte X.

26 de janeiro de 1986 – as provas – I.

 

Em mais um arrazoado construído a partir de fragmentos de memórias de um tempo já pretérito que ainda não se fez passado já passado, uma vez que os seus sedimentos ainda podem ser escavados nas diversas camadas que compõem a memória, este escrevedor traz a tantos quantos se dignem a ler as linhas que se seguem, mais um tratado em que o caminhar de José Mário se faz reconstruir, ainda que fragmentariamente, apontando para o seu empreendimento no concurso de pavimentar o caminho que o leve a ingressar no ensino superior, com vistas a uma busca por implementar um processo formativo que lhe dê as ferramentas de trabalho no campo do ensino, bem como as condições de sua inserção econômica e social. Conforme assevera Paul Ricöeur (1913-2005), “[...] a memória continua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no tempo, sem que nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem solução de continuidade. É principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade. [...]” (RICÖEUR, 2007, p. 108). Este escrevedor procura desenvolver os tratados que constrói a partir da memória, tomando a proposição acima transcrita, como fundamento basilar em que se estriba.

Era chegado o domingo, dia em que José Mário estaria pela primeira vez, diante de um certame em que igual a um bom número de outras pessoas, faria um conjunto de provas por meio das quais, sendo aprovados, ingressaria em um curso superior, ministrado por uma entidade pública de ensino. Portanto, se aproximava a hora em que tudo aquilo que buscara aprender – ou revisar; ou ainda, reaprender – durante todo o tempo transcorrido entre o dia em que fizera a inscrição para se habilitar a participar do desafio que era, sobretudo para ele, o intento de se fazer imiscuir entre os aprovados e, o momento em que se daria o combate pelas quarenta vagas no curso de licenciatura em História, seria posto à prova.

A noite anterior àquele 26 de janeiro foi de sono agitado, iniciado ainda cedo, quiçá antes das vinte e uma horas; noite longa, quase interminável; madrugada que se fazia arisca e, não chegava; alvorada marcada pela algazarra alegre da passarada que parecia teimar em não se apresentar aos ouvidos atentos daquele quase insone rapaz; o cheiro do amanhecer que se fazia fugidio, esquivando-se do nariz que tanto esperava poder o aspirar e, finalmente, perceber que ali sim, era chegada a hora de se levantar. As horas que não dormira, foram marcadas pelos ruminares das últimas lições; foram inundadas por perguntas que não se conseguiria respostas: qual será o tema da redação: Qual será a modalidade da redação: será uma “dissertação”? Será uma “descrição”?... Assim pensava; mas também, procurava se esforçar por reconciliar o sono, visto que a manhã que tão ansiosamente esperava chegar, seria longa e, exigiria concentração, atenção e cuidado para melhor apreender a leitura das questões, compreender o que se cobrava do candidato a partir dos enunciados nelas propostos e, sobretudo, entabular as respostas com lógica e coerência.

Enfim chegada que fora aquela manhã, José Mário se pusera de pé; tomara sua ducha fria; se encaminhara para o café. Aquele, saliente-se, fora um tanto diferente do padrão de café, uma vez que, sua mãe, entendendo que ele teria que estar por toda a manhã envolto na tarefa de fazer as provas; e ambos, não dispondo de recursos que permitisse a aquisição de lanches ou frutas para enganar a fome, lhe pusera um apetitoso prato de feijão com mocotó que ela acabara de preparar ainda antes do nascer do sol, que ele, evidentemente, se deliciara com a iguaria, entendendo que aquilo seria, sim, suficiente para aguentar todo o tempo que teria de provas, visto, como se disse, não ter outra maneira de mitigar a fome, no caso de se apresentar antes que pudesse terminar a sua realização.

Desta forma, tendo terminado o “almoço antecipado”; tendo tomado a sua xícara de café, vestiu-se, apanhou os seus instrumentos de que se valia para execução daquele tipo de tarefa – máquina de escrever Olivetti; reglete e punção para escrita em Braille – e partira em direção ao local das provas, que seriam aplicadas no espaço do seu velho conhecido “Estadual”. Saíra pouco antes ou pouco depois das seis da manhã; solitário, como quase sempre o fizera, percorrera o caminho habitual que o levara para o Centro Integrado Luís Navarro de Brito por tantos anos; todos que ali cursara o primeiro e o segundo graus. Fizera o trajeto a pé, pois, por ser um domingo, temia não passar ônibus em um horário que lhe permitisse chegar por volta das sete, quando seriam abertos os portões, procurando assim, fugir de algum transtorno que o impedisse de ter acesso ao local das provas. Quase fardado e calçado no seu tênis do tipo Kichute, aquele mesmo  dos últimos anos do segundo grau, andara sempre seguro do que fazia e do porquê fazia aquele trajeto, que, embora seu já conhecido, nunca lhe parecera tão longo e o seu fim esperado, tão demorado de se completar.

Portanto, logo após se distanciar cerca de quatrocentos metros do seu espaço de moradia, atravessara a via férrea e depois, a precária ponte sobre o rio Catu, ali, ele andara sentindo todo o frescor daquela manhã de verão, quando o sol se apresentava mais condescendente com o viajor, sem contar com o aspirar dos muitos cheiros do longo caminho, até então, pouco transitado por automóveis; aquele Luís Viana quase interminável, ainda era um bairro residencial, que, em uma quase madrugada de domingo, se mostrava bem mais silencioso, permitindo que se pudesse ouvir os chilreares dos muitos pássaros que povoavam a grande diversidade de árvores que ali existia e os últimos zunidos daqueles bichinhos noturnos que se refugiavam nos arbustos que formavam a paisagem do caminho que José Mário percorrera confiante, ansioso e temeroso, a um só tempo. Assim, embevecido pelos cheiros diversos vindos das chácaras que floresciam aqui e ali, deixando exalar os seus aromas tão suaves em delicados fragores de verão, ao longo dos cerca de dois quilômetros que foram sendo percorridos, seguia ele, procurando relembrar os ensinos de língua e literatura que recebera até aquele instante que se aproximava o momento de testar o quanto ele os apreendera. Ele, saliente-se, estava longe de apreciar todo aquele conjunto sinfônico que aquela orquestra da natureza lhe oferecia enquanto caminhava mergulhado naquela preocupação que quase o fizera indiferente à tão assombrosa harmonia estacional que o Eterno generosa e graciosamente lhe propiciava.

Enfim, pouco antes das sete horas, ele já lá estava, juntamente com uma multidão de outros seus concorrentes, certamente de origens sociais, econômicas e culturais bem diversas, que aguardavam a abertura dos portões, para então, darem início à jornada para a qual se inscreveram e dispuseram a enfrentar. Talvez, alguns já se conhecessem de outras jornadas; outro tanto, se encontravam pela primeira vez; José Mário, por sua vez, não fora reconhecido nem encontrara ninguém que lhe fosse conhecido. Ao serem abertos os portões, todos, absolutamente todos se dirigiram aos seus respectivos locais de prova, sem qualquer atenção àquele que, tal qual eles, também procurava se dirigir à sala indicada no seu cartão de inscrição, para lá, tomar contato com as provas e buscar responder as questões nelas propostas.

 

Alagoinhas – 07 de dezembro de 2025 – verão brasileiro.

 

Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com