26 de janeiro de 1986 – as provas – II.
Em conversa com um seu colega de ofício, este escrevente
chamava à sua atenção para a desconfiança que aquele pesquisador, sempre
manifesta em relação à “memória”, uma vez que, conforme ele assevera, a “memória”
é inadvertidamente elevada à condição de verdade – claramente se trata de uma
compreensão equivocada do nobre colega historiador -, visto ser ela passível de
manipulações e inconsistências. Em contrapartida, ele eleva o “documento” à
condição de maior confiabilidade, visto não estar mais sujeito aos interditos
por ele anotados em relação à “Memória”. No entanto, Jacques Le Goff
(1924-2014), ao indicar que um “documento” é como que uma “monumentalização” de
um momento histórico dado, permite inferir que, como tal e para tal ele foi
produzido. Isto aponta para a ideia de que, embora ao chegar na mesa de
trabalho do historiador algum tempo depois de produzido, portanto,
impossibilitando – ou dificultando – a sua manipulação, dando uma aparência de
objetividade, ele fora produzido por alguém, preservado para alguma finalidade,
arquivado para que pudesse “testemunhar” de uma dada realidade, aquela que o
fizera o seu autor – ou autores - e,
sobre eles uma sociedade, uma circunstância ou uma instância dada, fizera
pressão para que fosse produzido. Logo, não só é preciso desconfiar da “memória”,
sujeita em última instância, a aquele que lembra; mas, de igual modo, se faz necessário
desconfiar de qualquer “documento”, considerando-o permeado de subjetividades
intrínsecas ou extrínsecas a ele. Há um monumento deste tipo, por exemplo, que
conta a “conversão de Constantino” ao “cristianismo”, que indica tal haver se
dado, após um “sonho com a cruz” e, a garantia de que “por aquela cruz”, ele
venceria. Tal vitória teria se dado e, como “cumprimento” da promessa feita
pelo imperador romano que, caso de fato vencesse a dita batalha, se tornaria um
“cristão”, torna o dito cristianismo a “Religião” oficial e única do império.
Ora: quem escreveu o tal relato? Para quem e por que o escreveu? Parece mais
uma justificativa forjada para explicar a romanização do cristianismo até então
perseguido pelo próprio Constantino; fica-se com a impressão que é um texto
feito para aplacar qualquer questionamento a respeito do modo como se deu a “cristianização”
do paganismo romano, sem que se fizesse qualquer exigência, tal como o “crer” e
o “se arrepender”, o que proporcionaria o “Novo Nascimento”, por exemplo, uma
prerrogativa inerente à conversão. Tal prerrogativa, evidentemente, não é
contemplada pelo decreto imperial. Ora: por que a “narrativa” documentada ou,
no dizer de Le Goff “monumentalizada” pôde ser tomada como “verdade” ao longo
dos séculos e, a “memória”, ainda que sujeita à falhas, inconsistências e/ou
descontinuidades, não pode ser tomada, ao menos, como parte de uma “verdade?
Conforme assevera Maurice
Halbwachs (1877-1945), “[...]. A sucessão de
lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se
produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em
definitivo, pelas transformações desses
ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACHS, 2003, P.
69). Isto quer dizer que a “memória” não é estática, portanto, passível de
ressignificações, ao contrário do “documento” que é “monumentalizado”, em
sentido estrito, não mais sujeito à manipulações, adequações e inserções, pois
tal já fora feito, quando da sua produção e/ou arquivamento. Logo, ambos devem
ser constantemente interrogados, pois, como já é cediço, não falam por si.
Assim sendo, é uma vez
mais, através das lembranças levantadas de um tempo que já vai remontando a
algumas dezenas de anos, que este garatujador tem procurado trazer aos seus
fiéis leitores, algumas facetas do caminhar de José Mário. Nelas, o rapaz é
percebido como quem precisa constantemente embater-se contra obstáculos os mais
diversos, com o fito de empreender o seu processo de escolarização e, nos
arrazoados que até aqui vem sendo desenvolvidos, ele aparece enfrentando as intempéries
de se imiscuir no processo de formação superior.
Conforme já se apontou em páginas anteriores, tendo saído de
casa por volta das seis da manhã e, tendo percorrido a pé todo o trajeto que o
levaria ao seu já bem conhecido prédio do “Estadual”, José Mário chegara ao
local das provas um pouco antes do horário da abertura dos portões. Ali, já se
encontrava um bom número de outros vestibulandos, que, por certo, também
estavam ansiosos pelo momento que ingressariam nas respectivas salas,
receberiam o caderno com as questões que precisariam responder, no prazo pré-determinado
de cerca de quatro horas, tempo em que, além das respostas às questões
propostas, também precisariam desenvolver uma redação, por meio da qual
discorreriam sobre um tema indicado e, que, por meio dela, precisariam
demonstrar a coerência e a consistência da exposição de ideias, bem como, seriam
avaliados em sua capacidade de realizar uma discussão através de um texto com uma ordenação lógica e exposição
escrita de um pensamento concatenado.
Quando enfim foram abertos os portões e autorizado o
ingresso dos candidatos ao recinto onde tomariam parte do tão esperado primeiro
dia do certame que poderia lhes abrir vagas para os cursos de licenciaturas
ofertados na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, algumas
centenas deles se dirigiram às salas onde estavam alocados. José Mário,
enquanto se dispunha a fazer o mesmo, de posse do seu cartão de identificação,
acabou por ter o seu caminhar interrompido por pessoas ligadas à organização do
certame, que o conduziram a uma sala no prédio onde funcionava a direção e a
biblioteca daquele estabelecimento de ensino, onde, segundo fora informado, ele
ficaria para desenvolver a sua atividade avaliativa, uma vez que, ele
utilizaria máquina de datilografia comum, o que poderia acarretar em desconforto
para os demais avaliados, devido ao barulho da dita, que poderia dificultar a
concentração dos demais. Além disto, pelo fato de o material estar impresso em Braille
– o que aliás foi um ganho inestimável –, o mobiliário estudantil existente nas
salas reservadas para a realização das provas, talvez dificultasse o manuseio
do material.
Portanto, José Mário ficou alocado na sala da direção,
acompanhado de uma funcionária para oferecer suporte, quando necessário. Ali,
ele teve diante de si e sob os seus dedos, o caderno de questões propostas para
a prova de língua portuguesa, de literatura, de língua estrangeira – por acaso
e por presunção, o francês fora a língua por ele escolhida, visto possuir
pequenos rudimentos adquiridos ainda na quinta e na sexta séries, cursadas ali
mesmo –, bem como algumas questões que compunham a prova de redação, além do
tema sobre o qual ele deveria dissertar.
Depois de ter procurado ler com atenção cada enunciado; depois
de ter procurado responder as proposições de acordo com aquilo que entendera
ter aprendido e apreendido acerca das matérias postas à prova; depois de se
esforçar por interpretar os trechos de obras e autores inseridos como mote para
as questões propostas; depois de procurar intercalar a sua compreensão com a
elaboração de respostas plausíveis e, de pretender demonstrar a sua compreensão
do que lera, por meio das aplicações feitas no formato de escolha de uma das
sentenças dentre cinco delas, dispôs-se a discorrer sobre o tema que fora
proposto para a elaboração de um texto dissertativo: “A Televisão como janela
para o mundo”, proposição com a qual divergira por todo o escrito, talvez,
influenciado pela sua condição de cegueira, que o fazia não entender que a “televisão”
tivesse um tal papel, bem como, pelo seu pertencimento a uma instituição
religiosa que “reprovava” a posse e a utilização daquele instrumento “perigoso”
para a fé – ainda que apenas retoricamente –, que poderia desencaminhar aqueles
que a tivessem como norteadora de modo de agir e de pensar.
De toda a sorte, ele estribara-se na perspectiva de que
aquele meio de comunicação seria capaz de direcionar – para bem ou para mal –, a
construção social de um pensamento hegemônico fundamentado quase que
exclusivamente nas imagens – muitas vezes manipuladas para alcançar os objetivos
de seus formuladores –, limitando a construção de um pensamento plural, tirando
partido daquele modus operandi, com objetivos nem sempre consoantes à
construção de um processo social baseado no equilíbrio e na equidade. É claro
que ele temera muito por ter divergido daquilo que acreditava ser a forma
dominante de pensar que o propositor do tema viesse a querer que fosse, por
assim dizer, referendado, não obstante o seu receio – que posteriormente se
mostraria infundado –,José Mário não recuou um único milímetro daquilo que se propusera
a dissertar sobre o tema ali proposto.
Alagoinhas – 14 de dezembro de 2025 – primavera brasileira
Professor Jorge Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com